Capítulo 82 - As Descobertas II
A neve estalava sob as botas de Niko e Evelyn enquanto atravessavam a lateral da casa principal da fazenda. Mesmo que fosse inverno, o céu estava limpo e brilhante, como se o sol quisesse exibir seus belos raios de luz para todos no dia. O vento soprava entre os galhos secos dos arbustos ao redor dos currais e a neve começava a derreter.
A fazenda contava com cinco funcionários fixos — todos contratados por Sigurd e encarregados de manter o lugar funcionando mesmo fora da época de cultivo. A maioria fazia pequenos reparos, cuidava dos animais ou mantinha as estruturas limpas e seguras até o próximo ciclo. Evelyn já havia conversado brevemente com dois deles no dia em que chegaram, mas hoje o objetivo era conseguir informações dos outros.
O primeiro funcionário estava junto ao moinho de feno, onde empilhava sacas pesadas dentro de um galpão de madeira estreito, cheio de caixas de madeira, ferramentas e sacos de pano. Era um homem baixinho mas forte, com bochechas vermelhas de frio e dedos grossos demais para as luvas de couro que usava.
Niko e Evelyn entraram dentro do galpão com a porta meio aberta, e se aproximaram do homem, que acabou de colocar um saco pesado de pano no chão, soltando um gemido.
— Uhff.
— Bom dia, senhor. — disse amigavelmente Evelyn. — Somos as pessoas contratadas por Sigurd para cuidar da investigação e da segurança da fazenda.
Ele se virou, inicialmente com os olhos arregalados.
— Ah, sim. Eu me lembro de vocês. Querem alguma ajuda?
— Sim, queremos que você responda algumas perguntas. Tudo bem?
— Mas é claro. — respondeu ele, acenando com a cabeça.
— O senhor estava aqui na noite em que o boi morreu? — perguntou Evelyn, direta.
— Tava sim. Eu e o Tomás revezamos o turno da noite. Naquele dia, era a minha vez. — respondeu o homem, esfregando as mãos para afastar o frio. — Mas eu só descobri o que aconteceu de manhã. Foi o filho do patrão quem encontrou o boi.
— O filho do Sigurd? — perguntou Evelyn.
— Isso mesmo, o Raul. O menino gosta de acordar cedo e ajudar a cuidar dos animais. Ele nem precisava fazer isso, o patrão nunca exigiu isso dele, mas o garoto é insistente. Chegou no celeiro antes de todo mundo.
— E como ele reagiu?
O homem ficou em silêncio por um segundo.
— Ficou pálido como a neve lá fora. Saiu correndo pra casa, sem dizer uma palavra. Ai, o patrão chamou a gente. Disse que o menino chegou em casa tremendo, com a camisa suja de sangue e sem conseguir falar coisa com coisa.
Evelyn e Niko se entreolharam. A resposta acrescentava um novo fator à equação.
— O Raul costuma acordar tão cedo assim todo dia?
— Quase sempre. Gosta de cuidar dos cavalos, dos galinheiros… diz que vai ser o novo dono da fazenda um dia, então precisa aprender tudo desde já. É um bom garoto. Tímido. Vive no mundo dele.
— Vocês conversaram com ele sobre o que viu?
— Ele mal quis falar disso depois. Só disse que o boi tava, bem, morto. Não falou mais nada. Nesses últimos dias nem vi ele chegar no celeiro. Isso deixou ele nervoso de verdade.
Niko ficou parado por um instante, encarando o chão do galpão como se esperasse que alguma resposta brotasse dali. O garoto era reservado, isso já sabiam. O fato de evitar o celeiro, ficar em silêncio depois do ocorrido era um claro sinal de trauma. Talvez Raul pudesse ter visto quem o que fez matou o boi — ou só não estava preparado para ver aquele tipo de brutalidade mesmo. Mas uma coisa era certa: Raul era o próximo passo da investigação.
— Obrigado pela ajuda. — disse Niko, já se virando para sair.
— Só um conselho… Se forem falar com ele, sejam gentis. Ele pode ser mais frágil do que parece.
Do lado de fora do galpão, o vento soprava mais gelado. Evelyn ajustou o cobertor no pescoço, aquela era uma maneira dela pensar melhor.
— Então foi Raul quem encontrou o cadáver. Isso muda um pouco o cenário…
— Sim, acho que deveríamos tentar falar com ele hoje, antes do fim do dia.
— Concordo. Mas com cuidado.
A dupla continuou a caminhar pela propriedade, prontos para conversar com o próximo funcionário.
O segundo funcionário estava próximo ao estábulo, recolhendo estrume congelado com uma pá. Era um homem alto e magro, tinha os cabelos pretos, com um gorro e um lenço vermelho em volta do pescoço. Seus olhos eram fundos e pareciam ter visto poucos cochilos na última semana.
— Você é o Tomás? — perguntou Evelyn, ao se aproximarem.
— Sou. — respondeu ele, jogando mais uma pá de sujeira para o carrinho de madeira ao lado. — Aconteceu alguma coisa?
— Só queremos fazer algumas perguntas. Você tava aqui na noite do ataque, certo?
Ele assentiu lentamente, apoiando o peso sobre a pá.
— Era o turno do Alfredo naquela noite, mas eu tava acordado. Dormi mal… acabei saindo do quarto e dando uma volta. Fui até o poço, depois sentei perto da estufa um tempo. Vi até o Raul sair de casa bem cedo, umas sete da manhã, como ele sempre faz, depois, voltei a dormir.
— Você viu ou ouviu alguma coisa estranha no dia? — perguntou Niko.
Tomás hesitou. Encarou a pá por um momento, depois respondeu:
— Na hora eu não dei muita atenção… Tava frio e eu tava meio sonolento. Mas… ouvi uns mugidos vindo do celeiro. Fortes. Achei que fosse só algum dos bois incomodando os outros, às vezes acontece. Eles se estressam com o frio ou com algum rato passando. Nem fui checar… Agora me sinto um idiota por isso.
— Só mugidos? Nada de mais?
— Eu ouvi umas batidas também. Barulho de madeira tremendo, como se os bichos tivessem tentando empurrar o portão.
— Viu o Raul voltar pra casa?
— Não, eu já tava dormindo. Acordei quase que de tarde, quando o chefe reuniu todo mundo e contou o que aconteceu. Só então fomos ver o boi. Horrível… Nunca vi nada igual.
Ele fez uma cara de nojo, como se a lembrança tivesse um gosto ruim.
— Foi o pior dia que já tive aqui.
— Entendido. — disse amistosamente Evelyn, tentando tirar o peso da situação. — Obrigada por responder as perguntas.
A dupla agradeceu o homem e seguiu caminho, rumo ao próximo funcionário. Enquanto andavam pela fazenda, Evelyn se espreguiçou, puxando assunto em seguida:
— Isso tá começando a me incomodar. Ninguém viu ou ouviu nada antes da cena do crime… Como?
— Realmente, é frustrante.
Niko parou por um instante, encarando os currais vazios, cobertos de neve. Uma ideia surgiu em sua mente. Uma ideia absurda, mas que era impossível de ignorar.
— Você acha que seria possível… alguém ter aparecido lá do nada?
Evelyn parou também. Ergueu uma sobrancelha, em silêncio.
— Tipo você?
— Tipo alguém como eu. Que tenha também um Portal. Entrando, matando e saindo sem deixar marcas. Eu conseguiria fazer isso.
— Isso é mesmo possível?
Niko pensou por um momento antes de responder. Era improvável, como Evelyn disse, não existia uma família com as habilidades de Niko, ele era um independente… será mesmo que era?
— Eu honestamente não sei…
Essa hipótese despertava mais do que preocupação — despertava esperança… e medo. Se fosse verdade, poderia ver alguém da sua linhagem. Alguém que compartilhasse sua Alma. Uma parte dele queria estar errado — não gostaria que alguém da sua família fizesse ou tivesse sido cúmplice desse crime. A outra queria saber se de fato era.
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