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    A casa por dentro era mais escura do que Brigitte esperava. As janelas estavam cobertas com panos pesados e espessos, que bloqueavam a luz quase por completo. Apenas as lamparinas a óleo nos cantos iluminavam a sala relativamente bem. À direita, havia uma sala repleta de estantes repleta de frascos com líquidos de cores vibrantes, plantas secas penduradas e livros grossos de capa gasta — alguns pareciam ter sobrevivido a várias gerações.

    Odile puxou uma das cadeiras da mesa de jantar e indicou para que Brigitte se sentasse. A menina obedeceu em silêncio, enquanto a mãe se acomodava ao lado. Bernard sentou-se na cadeira em frente, com a postura reta, cruzando os braços sobre o colo.

    — Então? O que trouxe vocês aqui? — perguntou o homem, com voz baixa, sem pressa. Seus olhos, escuros como a noite, se fixaram em Odile.

    A mulher lançou um olhar breve para a filha, como se pedisse permissão para falar. Brigitte assentiu com a cabeça, ainda tímida.

    — A Brigitte… ela começou a fazer algo estranho com as mãos. — disse Odile, tentando escolher bem as palavras. — Um estalo. Uma faisquinha de eletricidade. Mas não é como aquelas brincadeiras de esfregar lã no braço e encostar em alguém. Não… É como se… como se fosse magia. Queria entender isso melhor e ajudar minha filha nisso.

    Bernard inclinou-se ligeiramente para a frente. A cadeira de madeira rangeu sob seu peso. Ele deu um suspiro, depois disse:

    — Quando isso começou?

    — Pelo que eu saiba, ontem.

    — Quantas vezes aconteceu?

    — Três vezes. A última foi em casa, quando ela mostrou para o pai. Queríamos entender o que estava acontecendo.

    O curandeiro, com a mão na boca, tamborilou os dedos no braço da cadeira, pensativo.

    — Três vezes em um dia… no mesmo dia que descobriu isso… e com controle parcial. Interessante.

    Então, pela primeira vez desde que se sentaram, Bernard olhou diretamente para Brigitte. O olhar dele era firme, mas não severo — mais como o de um ferreiro avaliando o metal antes de moldá-lo.

    — E você, menina? Sentiu algo diferente? Dor de cabeça, enjoo, coceira nos dedos, alguma marca que brilhe no escuro?

    Brigitte negou com um leve balançar de cabeça, quase estático.

    — N-não… só senti meus dedos formigando. E um calor… Mas não dói. Nem um pouco.

    — Certo. — murmurou Bernard, soltando um suspiro breve pelo nariz. — Melhor eu ver com os próprios olhos.

    Levantou-se devagar, caminhando até uma estante baixa nos fundos. Retornou com uma tira de pano escuro e uma pedra clara, lisa e oval, que cabia perfeitamente na palma da mão. Seu brilho parecia discreto, como se absorvesse a luz das lamparinas.

    — Encosta aqui, com dois dedos.

    Brigitte olhou para a mãe, que apenas assentiu, tranquila. A menina então esticou o braço e encostou, com cuidado, o indicador e o médio na superfície da pedra.

    No primeiro segundo, nada aconteceu. Bernard abriu a boca para dizer algo — e então… TAC! Um estalo seco cortou o ar. Uma faísca violeta percorreu a pedra como se a superfície tivesse acordado por um instante. A vibração fez até a mão de Bernard estremecer. Ele recuou ligeiramente e levantou as sobrancelhas.

    — Hum… — murmurou, mais para si do que para elas.

    Passou o polegar sobre o ponto onde a faísca surgiu. Um cheiro leve de ozônio se espalhou pela sala, se misturando com o perfume das ervas.

    Sem dizer nada, o curandeiro se dirigiu até um móvel baixo e tirou de dentro dele um livro grosso, encadernado em couro escuro. A capa exibia um símbolo circular gravado com linhas irregulares. Colocou o tomo sobre a mesa com cuidado, como se fosse um objeto sagrado.

    — Isso aqui… — começou ele, enquanto folheava. — É um compêndio de linhagens. Registro antigo de famílias com histórico de manifestação de Alma.

    As páginas eram amareladas e frágeis. Os dedos de Bernard se moviam entre as páginas, capítulos e seções com precisão, como quem já conhecia aquele livro há muitos anos.

    — Nem todas as famílias estão aqui. Muita coisa se perdeu com o tempo… Mas… — ele parou, apontando uma página com um brasão desenhado à mão. — …aqui está.

    No centro da página, havia a imagem de um raio em espiral atravessando três nuvens. Era um desenho simples, mas havia algo de imponente nele, como se transmitisse força mesmo na fragilidade do papel.

    — Família Akitna. — leu Bernard. — Linhagem antiga. Não são nobres, mas são numerosos. Sintomas típicos: faíscas azuladas ou violáceas, sensação de vibração nos dedos, estalos elétricos involuntários. Manifesta-se geralmente entre os sete e quinze anos. Parece com o que você tem, não?

    Odile mordeu os lábios de leve.

    — E isso quer dizer que a Brigitte é…?

    — Uma descendente. De algum familiar antigo. Essas manifestações podem pular gerações inteiras. Às vezes, vêm de um trisavô ou tataravô que ninguém nem sabe que existiu. E quando voltam… é sem aviso.

    Brigitte encarou o brasão com os olhos fixos, tentando assimilar a ideia. Já ouviu falar da Alma aqui e ali, em conversas de adultos ou em lendas contadas na vila, mas sempre achou que fossem exageros, histórias distantes. Mas agora, de repente, ela era parte daquilo. Parte de algo que nem sabia que fazia parte.

    Odile suspirou, ficou com os olhos atentos na filha.

    — Isso é perigoso?

    Bernard sorriu de canto.

    — Só se for negligenciado. Um raio não é mau por natureza, mas pode fazer um estrago se cair no lugar errado. O mesmo vale para ela. O poder está lá… mas precisa de um caminho certo. Não se trata da Alma, se trata do usuário.

    Bernerd fechou o livro com um estalo abafado, como se colocasse um ponto final na explicação.

    — O que ela tem não é uma doença. Nem maldição. Com orientação e treino, isso pode se tornar até uma dádiva. Agora você têm uma escolha: pode ignorar isso e torcer para que nunca mais aconteça… ou pode aceitar, aprender e preparar a menina para lidar com isso. A decisão é de você.

    Brigitte olhou para a mãe. Os olhos da menina estavam levemente marejados, não de medo — mas de algo novo: fascínio, curiosidade, e uma fagulha de orgulho contido. As pupilas violetas de Brigitte pareciam brilhar, como se o corpo dela tivesse entendido algo antes da mente.

    Odile apertou a mão da filha, firme.

    — A gente vai dar um jeito.

    Bernard se recostou na cadeira, estalando os dedos da mão com um sorriso satisfeito.

    — Isso já é um bom começo.

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