Capítulo 104 - Suporte II
A noite estava espessa e silenciosa, como se o mundo inteiro tivesse se encolhido para dormir. Brigitte corria, suas botas batendo forte contra o solo da trilha que levava à floresta. O vento gelado cortava sua pele, mas ela não sentia frio, na verdade, não sentia nada. Dentro de si, havia apenas um turbilhão quente de medo, raiva e dor.
Passou pela cerca da fazenda abandonada sem olhar para os lados. Correu além dos últimos campos de cultivo, atravessou a linha de amoreiras selvagens e mergulhou nas profundezas da floresta.
Depois de tanto correr, tropeçou em uma raiz escondida. O corpo cedeu e ela caiu de joelhos no meio daquele labirinto de madeira e folhas.
Ali, a escuridão parecia engolir tudo. Apenas o som da própria respiração, misturado ao choro contido, preenchia o espaço. Apertou os punhos contra a terra, tremendo não só de cansaço, mas de desgosto e ódio.
Em uma explosão de raiva, levantou-se ainda trêmula e socou a primeira árvore à frente com toda a força que tinha. Um estalo seco, seguido de um grito violento, ecoou pela floresta, junto uma faísca violeta que queimou a árvore de dentro para fora. Da casca, uma fumaça começou a sair e as folhas se desfizeram em cinzas no ar.
Brigitte caiu sentada, encostando-se ao tronco ainda chamuscado. A descarga de fúria esvaziou as lágrimas por um momento, mas logo, com a respiração mais calma, a tristeza voltou e a esmagou. Abraçou os joelhos, apoiou o rosto entre as pernas e se encolheu. Chorou. Se tornou pequena.
— Eu vou parar de usar minha Alma… — murmurou, com a voz áspera pela falta de ar. — Vou parar. Isso só me traz problema. Só traz dor. É melhor assim… Desistir de ser uma cavaleira…
Por um instante, o mundo pareceu concordar com essa ideia. As árvores eram testemunhas mudas, e até o vento se calava. Sim, desistir desse sonho bobo, é claro. Então, uma voz discordante quebrou o silêncio:
— Fazer isso seria um desperdício.
Brigitte ergueu a cabeça, saindo do casulo que ela mesma criou. Os olhos marejados procuraram a origem do som e, entre as sombras, uma figura de um homem com uma lanterna surgiu.
Ele era alto, de ombros largos, vestia um sobretudo negro, que o fazia se camuflar na escuridão. Tinha cabelo grisalho curto, uma barba espessa e uma grande cicatriz no pescoço que lhe dava um ar imponente. Mesmo sendo velho, seus olhos exibiam uma energia sem igual, como se pudesse correr uma maratona em minutos.
— Quem é você? — perguntou Brigitte, recuando instintivamente.
O homem não avançou. Apenas ficou ali, parado, como se não quisesse assustá-la ainda mais.
— Alguém que gosta de fazer caminhadas no escuro. — respondeu ele, com um meio sorriso cansado. — Meu nome é Leon. E você? Como se chama?
Em condições normais, Brigitte não responderia a um estranho. Mas naquele momento ela não se importava com nada, então por que não responder o homem? Nada iria mudar mesmo.
— Meu nome é Brigitte…
— Brigitte… — repetiu ele. — Se não me engano, esse nome significa “força”, não é?
Ela soltou uma risada curta e amarga, quase sem som.
— Que ironia…
O silêncio voltou por um instante, quebrado apenas pelo farfalhar das folhas.
— Pra mim não é nem um pouco irônico. Eu vi o que você fez. A força do teu soco e principalmente, o relâmpago que fez com os próprios punhos. Ter uma Alma é característica de alguém forte.
Ao ouvir “Alma”, Brigitte cerrou os punhos. Lembrou-se de tudo o que aconteceu naquele dia. Lembrou-se de como todos a viam como um monstro justamente por conta dessa maldita coisa.
— Eu… não quero isso. — disse, com a voz abafada. — Eu… só machuco as pessoas com isso. Elas têm medo de mim…
Leon se aproximou devagar e sentou-se em uma raiz grossa, ficando de frente para Brigitte, ainda que mantendo uma boa distância. Apoiada no chão, deixou a lanterna que iluminava seu rosto.
— A espada também machuca. Mas, se usada do jeito certo, pode salvar vidas.
— Não é a mesma coisa… — ela negou, balançando a cabeça. — Eu tentei ser boa, tentei proteger… Mas só consegui afastar todo mundo.
Leon coçou a barba, pensativo.
— As pessoas temem o que não entendem. Sempre foi assim.
— E você entende?
— Com certeza mais do que os outros.
Ambos pararam de falar por um momento, deixando o silêncio dominar a floresta.
— E agora? — perguntou Leon em um tom sereno. — O que vai fazer?
Brigitte olhou para as próprias mãos outra vez. O formigamento ainda pulsava nos dedos, como um sussurro que não queria desaparecer. Fechou as mãos fracas, escondendo-as entre os braços cruzados.
— Eu… nunca mais vou usar minha Alma.
— Pode fazer isso, se quiser. É um caminho. — disse Leon, sem julgamentos.
A resposta neutra a surpreendeu. Ele não a criticava, nem a incentivava. Apenas constatou uma das infinitas possibilidades de escolha que existiam. Como se dissesse “o céu está nublado”. Um comentário preguiçoso.
— Mas… — completou.
Brigitte ergueu os olhos. Surpresa pela continuação da frase.
— Mas?
— Mas seria um desperdício. — disse Leon, com um sorriso pequeno, quase triste. — Não é todo dia que nasce uma chama tão forte. Se você quiser apagá-la, ninguém vai impedir. Mas talvez, algum dia, lamente nunca ter visto o quanto poderia iluminar o mundo. Pelo menos você parece do tipo que gostaria de fazer isso.
O silêncio de Brigitte afirmou a suposição de Leon, quase como se dissesse “sim, eu adoraria fazer isso”. A garota tirou seus olhos de Leon, voltando a pensar nas suas escolhas e decisões, analisando a fala do velho.
— Eu não quero que tenham medo de mim.
— Então aprenda a usar sua força para proteger, não ferir. Transforme medo em confiança. É o único caminho.
Leon se levantou devagar, batendo a poeira da calça.
— Bom, não quero me exibir, mas eu já fui da cavalaria. Salvei muitas pessoas em guerras e de criminosos. Então, se quiser, posso ensinar você a controlar essa força. Fazer com que você aprenda a salvar as pessoas também.
Brigitte piscou algumas vezes, como se precisasse de um instante para processar o que acabou de ouvir. Seus olhos, ainda vermelhos e úmidos, arregalaram-se um pouco. Ninguém, até aquele momento, jamais ofereceu ajuda sabendo da sua Alma. Sempre houve medo, sempre houve afastamento. E agora… alguém que sabia estendeu a mão para ela.
Ela ergueu o rosto, insegura, mas com uma fagulha tímida de esperança.
— E… você acha que eu posso ser como você? — perguntou ela, baixinho. — Alguém que salva as pessoas?
Leon se agachou, apoiando um dos joelhos no chão, ficando à altura dela.
— Eu não acho. — disse ele, sério. — Eu tenho certeza disso.
Um nó se formou na garganta da menina, mas desta vez não era de tristeza. Era algo novo, estranho e quente. Algo que, talvez, fosse esperança.
Brigitte respirou fundo. Fechou os punhos com força. E, como se estivesse atravessando uma porta invisível dentro dela mesma, respondeu:
— Eu aceito.
Leon sorriu — um sorriso sincero, orgulhoso, como o de um agricultor ao ver a primeira semente brotar.
— Ótimo! — disse ele. — Então vamos começar com o ensino hoje mesmo.
A rapidez deixou Brigitte ansiosa, animada e com um sentimento de que não estava preparada ainda. Aquilo foi muito rápido. Mas mesmo assim não deixou de prestar menos atenção por conta disso.
— E sua primeira lição é…
Brigitte inclinou a cabeça, atenta, os olhos brilhando com a expectativa.
— …voltar pra casa. Está tarde para caramba e você vai pegar um resfriado ou ser atacada por um lobo se ficar aqui.
Ela piscou, surpresa. Ficou um segundo em silêncio… e depois soltou uma risadinha breve, abafada pela manga da blusa. Não era exatamente a primeira lição de cavaleiro que ela esperava. Mas, de algum jeito, parecia a mais certa.
Leon estendeu a mão para Brigitte, que usou o braço de apoio para se levantar. Durante o aperto de mãos, a garota pôde sentir a força do homem, que, mesmo com a idade avançada, parecia ser capaz de erguer uma montanha inteira.
— Agora vai voltar para casa que amanhã começamos de verdade. Bem aqui.
Brigitte ainda hesitou por um instante, olhando a escuridão da floresta ao redor, mas depois deu um passo firme adiante. E outro. E outro. Pela primeira vez em muito, muito tempo ela não se sentia sozinha.
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