Capítulo 111 - O Descanso
Brigitte sentiu um incômodo nos olhos. Estava claro demais, como se o próprio sol tivesse decidido invadir sua cabeça. Ainda com os olhos fechados, piscou várias vezes, tentando afastar o excesso de luz, mas cada movimento vinha acompanhado de uma dor pulsante quente que corria por todo o corpo. Parecia que todos os seus músculos e ossos queriam se separar de si. Além disso, o colchão duro sob as costas pouco ajudava, transformando cada centímetro de pele em mais um ponto de desconforto.
Quando conseguiu abrir os olhos de verdade, viu um teto que não reconhecia. De madeira escura, cortado por vigas desalinhadas, tinha o cheiro de resina velha. Sua visão ainda estava embaçada, e ao tentar levar a mão direita à testa, o braço não respondeu. Estava preso, como se estivesse amarrado. Testou o esquerdo: esse se moveu, lento, mas obedeceu o comando.
Com esforço, levou-o até a testa e soltou um suspiro dolorido, abafado por um gemido que escapou antes que pudesse impedir. O ar entrou pesado em seus pulmões, como se até respirar fosse uma tarefa difícil.
Se acostumando com a enxaqueca, abriu os olhos novamente, agora conseguindo ver tudo com mais nitidez. O quarto era pequeno, feito de paredes de tijolos cinzentos. À esquerda, havia uma janela coberta por um pano grosso que deixava passar apenas uma fresta de luz, o suficiente para iluminar a poeira suspensa no ar. Havia uma mesa simples encostada na parede, uma cadeira gasta e uma estante baixa repleta de frascos, potes e panos dobrados com cuidado. Pouca coisa, mas organizada.
Ela tentou se mover de novo, agora com mais calma. Primeiro, as pernas, e a resposta foi um choque agudo subindo pelo fêmur, as costelas e até o quadril. Teve de prender a respiração e morder forte para não gritar. O ombro direito latejava, preso por faixas de pano.
“Por que meu corpo dói tanto?”, se perguntou. Só então as lembranças vieram em fragmentos: a luta, a mulher, o ataque e depois nada, um completo apagão na memória. “Ah, verdade. Foi isso que aconteceu. Eu quase morri…”
Então, ouviu um barulho. Um ranger de madeira, que anunciava a chegada de alguém. A porta se abriu devagar, e uma figura humanoide entrou no quarto.
Era um homem alto e magro. Tinha a barba cheia e bagunçada, usava óculos quadrados que escondiam parcialmente os olhos amarelos. O olhar dele era cansado, sem pressa de expressar nada. Mas o que chamava atenção eram as orelhas: grandes, peludas, saindo do topo da cabeça como as de uma raposa. Moviam-se de leve, reagindo ao ambiente. Atrás, parecia ter uma cauda volumosa e felpuda que balançava com a mesma preguiça do dono, quase escondida sob um sobretudo creme.
— Ah. Você acordou. — disse ele. Sua voz grave e levemente arrastada, com um sotaque estranho, totalmente diferente do de Evelyn e Niko.
Brigitte não respondeu, apenas encarou o homem-raposa.
— Ainda parece meio morta… — completou, coçando a barba. — Mas, considerando o estado em que te encontrei, é um progresso bem grande.
— Onde… — a voz dela saiu lenta, arranhada. — …eu tô?
— Na minha casa. — respondeu o homem, apoiando-se de lado na parede. — Um canto no meio do nada, onde somente árvores são minha companhia. Você teve sorte de eu te encontrar. Duvido que teria sobrevivido se eu não morasse aqui perto.
A garota tentou erguer o tronco. As costas reclamaram, o braço enfaixado protestou, mas conseguiu se apoiar contra a parede. O esforço trouxe de volta a dor de cabeça, obrigando-a a fechar os olhos e pressionar a testa com a mão esquerda.
— Minha cabeça dói… — murmurou. — Há quanto tempo tô apagada?
— Dois dias inteiros. — ele abriu os olhos. — Já tava começando a pensar que ia precisar cavar uma cova.
Brigitte soltou um leve “hnng” irritado, e recostou as costas de novo. Não queria dar a ele a satisfação de vê-la tão vulnerável, mas seu corpo não obedecia. O homem pareceu reparar nisso, porque se afastou da parede e foi até uma mesa no canto.
— Espere aí. — disse, mexendo em frascos e potes. — Tenho algo que pode ajudar.
Ele foi para a cama com um jarro de porcelana branca, uma tigela com pequenos grãos e um pano dobrado. Deixou o jarro sobre a mesa ao lado e ofereceu duas pílulas brancas para Brigitte.
— Aqui. É um remédio para dor. Não faz milagres, mas já ajuda. — apontou para o jarro. — E também tem outro que serve para ajudar na cicatrização das suas feridas.
Brigitte segurou as pílulas com os olhos estreitados, totalmente desconfiada, voltando sua atenção para o homem-raposa em seguida.
— E como eu sei que não tá tentando me envenenar?
O homem a encarou como se tivesse ouvido a pergunta com a resposta mais óbvia do mundo.
— Se eu quisesse te envenenar, não teria esperado dois dias. Teria feito enquanto você dormia. Seria bem mais fácil. Anda logo e toma o remédio. Quanto mais cedo tomar, melhor você fica.
— Você pode ser um assassino que gosta de ver o sofrimento da vítima, por isso não me matou, pra ter o prazer de me ver morrendo lentamente!
A possibilidade disso ser verdade era mínima. Nem ela acreditava no que tinha dito. Mas não podia dar a satisfação ao homem de realmente estar errada.
— …Toma logo o remédio.
Ela revirou os olhos. No fim aceitou, engoliu os comprimidos, junto da água em goles curtos, ainda com os olhos semicerrados de dor. O líquido estava morno, e refrescou a garganta ressecada. Só que então, um gosto extremamente amargo surgiu na língua, se infestando para todos os cantos da boca e da garganta.
A garota arregalou os olhos e sentiu um arrepio percorrer sua espinha.
— Blaaah! Que gosto horrível! Isso é veneno, eu sabia! — exclamou, fazendo uma careta tão exagerada que quase esqueceu a dor.
O homem cruzou os braços, totalmente impassível.
— Não é veneno. O gosto só é ruim mesmo. Como dizia minha mãe: “Remédio bom tem gosto ruim.”
Brigitte limpou a língua contra a manga do casaco, mas o gosto ainda persistia, fazendo Brigitte sofrer.
— Tem gosto de ferrugem… de erva podre… e arrependimento… Eca. — resmungou, batendo o pé fraco contra o colchão.
Um dos cantos da boca do homem-raposa se ergueu em algo próximo de um sorriso.
— Perfeito. Está funcionando, então.
Após terminar seu teatrinho, ela colocou o jarro na mesa, sofrendo outro pequeno arrepio em seguida, que a fez chacoalhar todo o corpo.
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