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    — A gente precisa chegar no depósito de carga da Linha 06 logo. Sabe onde fica, Evelyn?

    Niko não virou o rosto ao perguntar. Andando depressa na direção por onde os bandidos tinham fugido,com o corpo ainda tenso, dando pequenos espasmos sob o manto. Naquele momento, os passos dos criminosos já tinham sumido na noite, estavam bem longe do grupo.

    Alguns segundos de silêncio se passaram. Quando percebeu que Evelyn não o respondeu, olhou para trás. Ela e Brigitte ainda estavam imóveis do outro lado da rua, com os rostos confusos, sem entender direito no que haviam acabado de se meter. A briga, o interrogatório, a urgência repentina — tudo ainda parecia desconexo para elas.

    — Niko… — disse Brigitte, em um tom misto de receio e curiosidade. — Quem era aquele garoto de que você tava falando?

    — Você conhece ele? — perguntou Evelyn, com os olhos franzidos. — De onde?

    Niko hesitou, não respondeu de imediato. Apenas passou a mão sobre a nuca, encarando o chão, como se o silêncio fosse mais fácil de sustentar do que qualquer explicação. 

    A vergonha de ontem ainda rastejava em suas costas — por ter parado e seguido adiante quando alguém implorou por ajuda. Como iria admitir isso para Evelyn, que o acolheu desde a primeira vez que se encontraram? Ou para Brigitte, que tinha um forte espírito heroico e detestava qualquer tipo de injustiça? Como elas entenderiam?

    Brigitte deu mais dois passos, aproximando-se do garoto ansioso. Evelyn cruzou os braços, observando a situação, curiosa. Nenhuma delas parecia zangada — apenas confusas. Tinham acabado de lutar em um beco contra homens perigosos e sequer sabiam o motivo.

    — Olha, eu sei que a gente te ajudou ali porque você precisava de ajuda, e… tudo bem. — disse Evelyn, agora em um tom mais neutro. — Mas dá pra explicar agora o que tá acontecendo? De quem você tava falando pra aqueles caras? E o que aconteceu com essa pessoa?

    O garoto abaixou a cabeça outra vez. Não sabia como expor tudo aquilo para as duas. Não sabia se devia mentir ou dizer a verdade. Mas elas eram suas amigas; já o tinham ajudado sem saber sobre o que se tratava a briga entre ele e os homens. Omitir ou mentir agora seria — além de rudeza — covardia.

    Evelyn estudava a hesitação de Niko com atenção e cuidado. Uma parte dela até mesmo começou a pensar se aquilo não tinha relação com seu passado. Pensou que talvez ele tivesse se lembrado de alguma coisa, alguma memória fragmentada, alguém importante ou alguma ferida antiga.

    Por fim, Niko ergueu o rosto. O olhar carregava culpa, mal conseguindo se fixar nas duas.

    — A verdade é que eu não conhecia ele. — falou baixo, como quem confessa um crime. — Ontem, quando voltava pra sua casa, Evelyn, eu vi um garoto. Caído e… machucado… quase morto. E os mesmos caras de hoje estavam espancando ele. E eu… eu só fiquei parado. Olhando e não fazendo mais nada, além disso.

    As palavras caíram como uma avalanche. Não eram dramáticas, nem altas. Só pesadas. Brutalmente honestas.

    — Ele olhou pra mim. Pediu ajuda. E eu… Eu simplesmente ignorei. Virei as costas e continuei andando como se aquilo não fosse problema meu.

    Brigitte e Evelyn se calaram. Não porque não queriam falar, mas porque não sabiam como reagir. O silêncio entre eles era denso. Não de julgamento. Não de choque. Mas sim de outra coisa. Era o peso da verdade dita sem defesa, sem desculpa.

    — Eu fiquei pensando nisso o dia todo. — continuou Niko, com a voz rouca. — Durante o jogo… enquanto vocês riam, comiam, faziam piadas… ele ainda podia estar lá. Preso, ferido ou até algo pior. E eu continuei vivendo como se nada tivesse acontecido. Como um covarde egoísta.

    Ele levantou parte do olhar, revelando de leve seus olhos, agora cheio de raiva — não dos bandidos, mas dele mesmo.

    — Eu deixei alguém que podia ter salvo pra sofrer… Eu não sei o nome. Não sei quem é. Mas sei que precisa de alguém. E…

    Ele respirou fundo. A voz ainda tremia, mas agora havia um peso de uma decisão certeira nela. Como se o medo e a determinação se misturassem dentro de seu espírito.

    — …eu vou encontrar ele. — disse ele, firme. — Eu deixei ele pra trás. Deixei alguém… que implorou por ajuda. Pela minha ajuda.

    Por fim, apertou os punhos por dentro do manto, como se tentasse segurar a própria vergonha ali, na palma da mão.

    — Então não importa quanto tempo leve. Nem quantos becos, depósitos ou fronteiras eu tenha que atravessar. Nem se eu tiver que enfrentar um exército no meio do caminho.

    Finalmente levantou o rosto, mostrando seus olhos negros com as íris brilhando em determinação. O frio batia contra o seu rosto, mas aquele olhar queimava como fogo.

    O olhar determinado do garoto foi substituído pela vergonha e tristeza novamente. Suspirou fundo, desviou os olhos para o lado e engoliu seco.

    — Eu entendo se vocês não quiserem me ajudar nisso… Então eu só peço para você, Evelyn, me dizer onde fica a estação. Isso me ajudaria de verdade e faria eu poupar bastante tempo…

    Um silêncio se instalou após o discurso do garoto. Nenhuma das partes sequer emitiu sequer um grunhido e a respiração dos três se misturavam com o vento frio, o vapor branco escapando das bocas de Brigitte e Niko como se fosse um cronômetro para que algo acontecesse.

    Foi então que Evelyn se aproximou, quieta, com passos curtos e o olhar baixo. Sua próxima ação era uma incógnita para Niko, que esperava qualquer coisa vindo dela: um sermão, um soco, ou até um enforcamento.

    Ela estendeu a mão e… deu um tapa seco na parte de trás da cabeça dele.

    — Ai! — reclamou ele, encolhendo os ombros.

    — Isso é por ter sido um idiota ontem. — disse ela, cruzando os braços, sem sequer mudar o tom. — Não me faz querer repetir isso.

    Niko esfregou a nuca machucada, mais confuso que ofendido.

    — O que isso quer dizer?

    — Que eu vou te ajudar, seu bobão. — Evelyn sorriu de leve, desviando o olhar, como se não quisesse admitir o quanto se importava. — Afinal… não tenho nada melhor pra fazer.

    Brigitte riu baixo, cobrindo os lábios com a mão.

    — Vai ver é por isso que a gente tá se dando tão bem. — disse, se aproximando. — Você não precisava pedir, Niko. Se você vai atrás dele, eu vou também. Afinal, heróis não deixam os outros sofrerem sozinhos! — terminou ela em uma pose cerrando o punho ao peito.

    Niko olhou para as duas, com os olhos brilhando entre surpresa e gratidão. Desde que tomou a decisão de ajudar o dríade, não sentia o peso inteiro do mundo nas costas.

    — …Obrigado. — disse, simples e sincero.

    Evelyn passou direto pelos dois, seguindo para a próxima rua, acenando com o queixo.

     — Vambora antes que o tal depósito de carga fique vazio. — disse a elfa. — Linha 06 no distrito de Gerin. … Sei exatamente onde fica, hehe.

    Niko seguiu as duas. Seus passos, antes pesados, agora soavam mais leves. Ainda carregava a culpa, mas vinha acompanhada de propósito. Eles não sabiam o nome do garoto, nem se ainda estava vivo. Mas a decisão estava tomada: iam encontrá-lo. Não importava quanto custasse.

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