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    Naquele momento do dia, o sol já estava inclinado, logo atrás das casas e prédios baixos da capital, tingindo as fachadas de pedra com uma luz âmbar viva. O brilho escasso atravessava a névoa fria que pairava nas ruas e se desfazia em reflexos dourados nas janelas. A neve também refletia essa cor morna que esfriava a cada instante — apenas um lembrete que o dia estava prestes para acabar.

    A Rua Maximilian Fynhardt, naquele horário, estava bem movimentada. Rodas de carroças rangiam sobre os paralelepípedos cinzas e pessoas iam e vinham de todas as direções, saindo e entrando nos prédios, nas lojas e nos casarões. As lojas começavam a acender as luzes, uma por uma, enquanto as primeiras sombras eram projetadas para fora das vitrines.

    Entre aquele movimento cotidiano, três figuras caminhavam em fila. Niko estava no meio, sob o braço, carregava uma pasta de cor creme que guardava as — falsas — fotografia. Evelyn seguia à frente com passos firmes, a postura ereta e confiante. E, finalmente, Brigitte vinha atrás, chutando a neve a cada passo que dava, com o casaco desabotoado e as bochechas avermelhadas pelo frio.

    Durante o trajeto, Niko não disse nada. Apenas olhava para o chão, acompanhando os passos de Evelyn, e tentava ignorar o peso que sentia dos pensamentos. Cada rua parecia mais estreita que a anterior, cada ruído mais distante, como se o mundo todo diminuísse conforme se aproximavam do número quarenta e sete. Às vezes, o vento levantava alguns flocos de neve, que o fazia piscar os olhos — nesses pequenos instantes, ele percebia o quanto seu corpo tremia, mesmo que não sentisse frio.

    Ele nunca esteve em uma situação como aquela. A única vez que lembra que mentiu foi quando não disse para Evelyn que se encontrou com Väinö e Dahlia, e sim, com outras pessoas. Mas agora, todo o plano dependia dessa habilidade de mentir e fingir que nunca desenvolveu.

    O que o assustava, porém, não era a mentira em si, e sim a lembrança do que havia deixado acontecer. O som dos socos e dos gemidos abafados naquele beco ainda invadiam sua mente e seus sonhos, tirando-o da paz. Ainda via o dríade caído, cercado por sombras que ele poderia ter enfrentado, mas não enfrentou. Aquilo corroía o garoto profundamente. Era essa culpa, e só ela, que fazia ele andar adiante e cometer essa insanidade.

    Enquanto o grupo caminhava pela calçada, Niko revisava mentalmente cada detalhe do plano. As falas, as pausas, o tom de voz que deveria usar. Tudo o que dissesse lá dentro precisava soar automático e natural, mas o problema era justamente esse — nada naquilo era natural e ele nem conhecia a facção.

    Como consigo fingir algo que nem entendo direito?”, pensou ele, dando um suspiro em seguida.

    Virou o rosto de leve, olhando para Evelyn, que andava dois passos à frente.

    — E se ele desconfiar? — perguntou, baixo, como se quisesse falar seu pensamento, mas não ouvir a resposta. — O superior… o tal do chefe. Ele nunca me viu antes, nunca falou comigo. E se ele perceber que eu não sou da organização?

    Evelyn não respondeu de imediato. Continuou caminhando, com o olhar fixo no fim da rua.

    — Ele não vai. — respondeu, por fim. — Você tem o código, sabe do dríade e um pouco da facção também, além disso, as fotografias e a história que criamos são convincentes. Isso é mais do que o suficiente pra você parecer alguém de dentro do esquema.

    Niko assentiu, mas o gesto não tinha total convicção, ainda estava inseguro.

    — E se ele fizer perguntas sobre o depósito ao norte? Ou sobre a carga? Ou… sobre qualquer coisa que eu não saiba responder?

    Brigitte, que até então andava em silêncio atrás deles, deu uma risadinha curta. Chutou a neve um pouco mais forte do que as outras vezes e disse:

    — Aí você inventa, ué. É o que a gente fez o dia todo. — disse, com um tom leve demais pro momento. — Relaxa, é só continuar o teatro!

    — Não é um teatro. — respondeu Niko, a voz mais baixa, mas firme. — É uma farsa perigosa. Se eu errar uma palavra, acabou. Eu não posso ficar relaxado. Não agora.

    O silêncio voltou. Evelyn virou o rosto pra ele, ainda andando. Seu olhar era suave, como se apenas seu rosto cicatrizado e seus olhos azuis dissessem para ele: tudo vai ficar bem, o plano vai funcionar.

    — O segredo é não falar demais. Deixa que eles falem, assim você consegue mais informação enquanto parece menos suspeito… Ah, e não se esquece disso: o que você precisa não é convencer ninguém, é descobrir onde está o dríade. Depois que conseguir fazer isso, só usa sua Alma e sai. Simples assim.

    Niko tentou acreditar nisso, que era “simples assim”, mas não conseguiu. Essas duas palavras pareciam uma piada naquela situação. Respirou fundo, sentindo o ar gelado arranhar a garganta, e olhou pra frente. As luzes da rua já estavam totalmente acesas, e a cidade finalmente anoiteceu por completo.

    — E se der errado? — perguntou de repente, sem olhar para nenhuma das duas, apenas para o vento.

    Brigitte deu uma pequena corrida, ficando bem ao lado de Niko. O garoto olhou para a esquerda e viu seu rosto com seu típico grande sorriso convencido e orgulhoso.

    — A gente já pensou nisso, lembra? — disse, ajeitando o cachecol com a mão disponível. — Eu e a Evelyn vamos ficar de tocaia. Se o negócio azedar, você abre aquele seu Portal e chama a gente. Estaremos prontas para isso!

    A elfa assentiu em silêncio, apenas confirmando o plano com um olhar confiante e encorajador.

    — Só mantenha a calma, Niko. — completou ela, sem quebrar o tom. — Não posso garantir que nada vai dar errado, mas estamos bem aqui para te dar suporte e te ajudar.

    Ele tentou sorrir, mas o gesto mal se formou. Aquelas palavras eram simples e honestas, talvez por isso o afetaram mais do que qualquer promessa de que “tudo daria certo”. Havia algo reconfortante naquele tipo de coragem que não vinha dele, mas delas. Decidiu finalmente confiar nas amigas e manter-se calmo.

    O trio seguiu por mais alguns metros. No fim da rua, estava o local de número quarenta e sete: um prédio de três andares feito de tijolos escuros e as janelas eram altas e estreitas. Aquele era um edifício comum, não muito diferente dos casarões e comércios vizinhos. A fachada sem placas e sem nome denunciava que aquele era tipo de lugar que preferia passar despercebido.

    Eles pararam diante da entrada — uma grossa porta de carvalho negro. O silêncio caiu entre os três. Evelyn respirou fundo e ajeitou o próprio casaco em um gesto rápido, sem tempo a perder.

    — Se precisar, usa sua Alma, nem que seja pra fugir. — disse ela como sua última fala. — A gente vai te ajudar.

    Niko a olhou nos olhos por um momento, sério e certeiro, respondendo ela baixo:

    — Eu não vou fugir.

    A garota apenas assentiu com a cabeça, sem insistir. Havia algo no tom dele que trazia muita confiança, mesmo falando apenas quatro palavras.

    Respirou fundo e deu alguns passos. Olhou para trás, buscando ver as garotas uma última vez. Elas estavam se distanciando, indo para o outro lado da rua, onde havia um pequeno local com mesas e cadeiras ao ar livre — uma das cafeterias ainda abertas naquele fim de tarde.

    Brigitte já acenava de longe, exagerada, enquanto Evelyn apenas observava, de braços cruzados, o olhar fixo nele como quem prometia que continuaria vigiando dali.

    Niko virou-se de novo e subiu os últimos dois degraus da entrada. Empurrou a porta.

    Do lado de dentro, o ar era mais quente e quase abafado. À frente, havia um corredor comprido com tapete que se estendia por alguns metros, com lâmpadas amarelas penduradas nas paredes.

    Andou alguns metros antes de virar à direita e ver o primeiro homem, apoiando as costas na parede. Ele era alto, usando uma camisa social branca e com o pescoço coberto por uma cicatriz nojenta. Tinha um olhar de poucos amigos.

    — Quem é você? — perguntou, direto, sem emoção.

    Niko engoliu seco, sentindo o ar pesar ali e o coração bater mais forte.

    — Mandaram eu vir pra reunião das dezesseis. Sobre o incidente com a carga. — respondeu, firme, como havia ensaiado.

    O homem o encarou por alguns segundos, sem dizer nada. Então, com um leve aceno de cabeça, falou:

    — Ah… o cara das fotografias. Pensei que você fosse maior… — e um sorriso torto surgiu por um breve instante. — O chefe tá curioso pra te ver.

    O homem virou e começou a andar pelo corredor, seus passos eram pesados e ecoavam alto. Niko o seguiu, engolindo saliva para conter a ansiedade.

    O caminho parecia se estender mais do que deveria, como se o prédio fosse maior por dentro do que parecia por fora. As paredes estreitas, o ar quente e o som abafado dos dois passos davam a sensação de estar indo para um lugar onde a luz não alcançava.

    Ao final do corredor, o homem empurrou uma grande porta dupla de madeira, revelando o som das conversas baixas do outro lado.

    Aquela era uma sala enorme — muito maior do que Niko esperava. O teto alto era sustentado por colunas escuras, e as janelas estavam cobertas por grossas cortinas vermelhas. As grandes lamparinas penduradas no teto faziam sombras sobre as fileiras de mesas compridas e cadeiras de madeira.

    Havia pelo menos trinta pessoas ali dentro, talvez até mais — humanos, híbridos e até dois cães enormes de pelo escuro e caramelo, deitados próximos à parede, observando em silêncio. Havia um cheiro nojento e forte de tabaco no ar. Alguns homens conversavam em voz baixa; outros apenas o observavam; e alguns riam de leve.

    No instante em que Niko entrou, sentiu o estômago se revirar. Suas íris brancas se contraíram de forma involuntária. O lugar parecia estar sem ar, e cada som ali ecoava alto demais. O coração bateu verdadeiramente forte e ele começou a suar frio. Tentou disfarçar o nervosismo respirando devagar.

    Calma. É só mais um papel pra interpretar… um teatro…”, pensou — mas nem ele acreditava nisso.

    O capanga de antes parou na porta, deu um tapinha no ombro mole de Niko e apontou para o centro da sala, onde havia uma cadeira livre na fileira central.

    — Pode se sentar ali. O chefe vai falar com você daqui a pouco.

    Niko assentiu devagar, tentando não demonstrar sua visível ansiedade. Deu alguns passos coreografados. Quando olhou para o espaço ao redor, percebeu o quanto era pequeno diante daquilo tudo. Ele começou a se questionar se ele realmente deveria estar fazendo isso.

    O garoto se sentou na cadeira vazia, com o assento rangendo baixo. As conversas diminuíram, e o silêncio preencheu o ar. O coração dele batia alto o bastante para ele quase pudesse ouvir.

    Antes que percebesse, apenas ouviu o som da porta se fechando atrás dele. A reunião se iniciou agora.

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