Índice de Capítulo

    — General Aamerta. — ele nem fingiu respeito formal. — Clyve disse que você faz tudo certinho.

    O olhar dele desceu para a única espada na mão dela.

    — E eu achando que ia enfrentar a defensora de Pyrco. — inclinou um pouco a cabeça na direção da lâmina dela. — É ela que luta com duas, não é?

    Aamerta não respondeu.

    Cedric girou o punho esquerdo e enfiou a espada daquela mão na bainha presa ao quadril, num gesto solto, quase preguiçoso. Ficou só com uma lâmina erguida, corpo aberto demais para o gosto de qualquer instrutor de Taeris.

    O pé da frente de Aamerta avançou meio corpo, o calcanhar de trás firmou na pedra. A estocada saiu direta, limpa, eixo reto do ombro ao alvo: o espaço entre as costelas de Cedric.

    Ele pareceu surpreso.

    Levantou a espada tarde demais. A lâmina subiu torta, num ângulo estranho, e ainda assim encontrou a dela. O som metálico ecoou pela arena. A força dela empurrou o braço do homem para trás; Cedric cedeu dois passos, o corpo quase girou.

    Aamerta não se animou. Só ajustou a base, recolheu a espada ao eixo e repetiu.

    De novo meio passo, de novo estocada reta. O manual inteiro em um gesto: sem floreio, sem enfeite. Entrava, recuava, cobria a linha.

    Cedric tornava a defender tarde.

    O tronco dele inclinou para o lado, o pé de trás quase escorregou, a lâmina parou a dela num baque que parecia sorte. O braço dele tremeu, a cabeça ficou exposta por um segundo inteiro. Nenhum contra-ataque.

    Ela viu a abertura e não entrou.

    Está me medindo, pensou.

    Manteve a disciplina. O objetivo era encurralar, não matar num golpe precipitado.

    Repetiu o padrão.

    Passo, parada, estocada no mesmo eixo. O som das lâminas montou um ritmo simples: ataque, choque, recuo. A respiração dela começou a aquecer o peito, sopros regulares pelo nariz. Ouviu a própria armadura bater, ouviu o couro das botas de Cedric arranhar a pedra.

    A respiração dele não mudava.

    Ele segurava o punho com firmeza, mas o peito mal subia. Os olhos não piscavam demais. O detalhe que mais incomodou Aamerta veio pelos pés: cada passo dele caía no mesmo tempo, como se marcasse um compasso invisível.

    Ela empurrou.

    Forçou a linha aos poucos, como treinara em Cabrycg desde os dez invernos. Um avanço forçado, depois outro, cada vez que o braço dele recuava demais. O centro da arena ficou para trás. A borda interna se aproximou, dois pilares quebrados à esquerda desenharam um estreitamento.

    — Mais. — murmurou.

    Pisou mais fundo.

    Cedric recuou, recuou, até o calcanhar bater na pedra irregular perto das colunas. Fingiu tropeço; o corpo pendia para trás, o ombro encostou na pedra, a espada entrou na defesa num arco desengonçado.

    Aamerta sentiu o peso da expectativa, mas não se deixou levar. O cotovelo dela manteve o ângulo exato. A lâmina avançou pela linha central mais uma vez.

    Cedric travou o golpe no limite anterior.

    Ela percebeu ali.

    A defesa parecia tardia, mas a ponta da espada dele parou a dela no mesmo ponto no ar, no mesmo espaço de dois dedos à frente da garganta dele. Uma batida, depois outra, sempre ali. Nunca mais perto, nunca mais longe.

    Ela rosnou baixo.

    Mudou o ritmo. Ao invés da sequência reta, puxou o braço para trás, fez o ombro girar, encaixou uma estocada longa seguida de um corte lateral. A lâmina riscou o espaço, tentou pegar o flanco dele.

    Cedric cruzou a defesa.

    Usou o dorso da própria espada para empurrar a lâmina dela ao lado e baixou o punho na sequência, cobrindo o caminho da volta. Braço firme, sem espaço para resposta dela.

    Ele ainda não atacava.

    Só aparava, desviava, cedia em linha, sempre um pouco depois, sempre no mesmo limite de segurança. Ele era um homem se salvando por pouco contra uma general em pleno vigor.

    Uma gota de suor escorreu da têmpora de Aamerta até a linha do queixo.

    Ela sentiu a perna aquecer, o ar entrar mais rápido. O braço segurava bem, mas o volume de golpes já acumulava peso no ombro. Cedric continuava inteiro. Nenhum sinal visível de cansaço.

    — Cansando? — ele perguntou, a voz leve.

    — Em silêncio. — ela respondeu, sem mexer o rosto.

    Nova estocada.

    Ele defendeu.

    De novo a lâmina dele travou a dela naquele exato centímetro à frente da carne. Olhos dele nela, sem pressa. Aamerta fechou ainda mais a distância e encaixou o corpo pela diagonal, buscando o espaço entre as armas.

    Cedric não recuou dessa vez.

    Ela sentiu um desconforto leve no peito, algo parecido com a sensação de pisar onde não via o chão.

    Ele inclinou a cabeça de lado, como quem observava um exercício em treinamento.

    — Clyve não mentiu. — o canto da boca subiu. — Vocês realmente não saem do manual.

    Aamerta avançou antes da frase terminar.

    Estocada reta ao esterno, impulso de perna inteira. O movimento veio automático, exatamente o que ele acabava de descrever.

    Cedric defendeu.

    Só que, naquele instante, a defesa não trouxe esforço nenhum. O braço dele girou com elegância; o aço afastou o aço com um giro seco. Ao mesmo tempo, a mão esquerda dele desceu à cintura.

    Aamerta viu.

    Não conseguiu impedir.

    O som do metal saindo da bainha cortou o ar. A segunda espada apareceu no espaço entre eles, alinhada na diagonal, já com ponta pronta para interceptar qualquer tentativa de corte.

    Ele não abriu guarda.

    O corpo continuou compacto, os cotovelos colados aos flancos, a linha do pescoço protegida pelas duas lâminas cruzadas.

    — Sempre pude. — ele comentou, quase num suspiro.

    Aamerta fechou o maxilar e reajustou a base.

    Ela já tinha lidado com duplas, lanças em formação e escudos fechando espaço. Duas lâminas na mesma guarda só mudavam a conta: menos vazio, mais precisão. Nada ali era novo o bastante pra travar a mão.

    Ela testou.

    Corte de fora para dentro, mirando o ombro direito. Cedric levantou a espada da direita num parry mínimo, só o suficiente para empurrar, enquanto a espada da esquerda já ocupava o espaço à frente do peito dele. Ela tentou inverter o golpe no meio do caminho, mas bateu no bloqueio gêmeo.

    Ele tinha encaixado um eixo.

    As duas pontas apontavam para o rosto dela, sem avançar, só presentes. O recado era claro: qualquer erro de alcance entregaria a própria cara.

    Ela tentou variar.

    Estocada mais baixa, depois alta, depois um falso recuo e entrada no flanco. Cedric acompanhou com ajustes quase imperceptíveis, sempre um quarto de passo, sempre o mesmo metrônomo. Os pés marcavam o tempo, nunca fora de compasso. As lâminas mexiam pouco; o que mudava era o espaço.

    Aamerta sentiu a frustração raspar o estômago.

    Ela era a general, treinada na Academia de Taeris, formada em comando e técnica. Aquele homem lutava como alguém que crescera em rua sem regra, braço solto, ombro relaxado, mas a ordem verdadeira estava nele.

    Ela decidiu forçar uma brecha.

    Simulou um respiro a mais, deixou o ombro afundar como se o braço pesasse demais. Cedric avançou um passo, teste. Ela respondeu com uma estocada explosiva, mirando a axila esquerda aberta.

    Ele já estava lá.

    A espada da direita dela bateu na dupla defesa montada a meio caminho. As duas lâminas dele formaram um V fechado, prenderam a dela num canal estreito. Antes que ela puxasse de volta, sentiu o peso torcer seu punho, a ponta desviar.

    O contra-ataque veio.

    Não pelo braço que segurava a lâmina presa, mas pela outra mão. Cedric soltou a pressão com a primeira espada e entrou por baixo com a segunda, num arco baixo e direto.

    Aamerta viu o brilho. Tentou recuar a perna, mas era tarde.

    O metal riscou a coxa exposta, um traço oblíquo que abriu tecido e pele em uma linha só. O sangue saiu na mesma hora, quente, escorrendo pela lateral da perna até o joelho.

    A perna quase falhou. O corpo quis descer.

    Ela não deixou.

    — Em pé. — a voz saiu entre os dentes, para si mesma.

    Firmou o calcanhar, puxou o peso para a outra perna, obrigou o corpo a obedecer. A mão não tremeu. A espada continuou alta, apontada ao rosto dele.

    Cedric deu um passo atrás, só um, para voltar à distância ideal.

    Intacto.

    Nenhuma marca na roupa, nenhum corte visível, a respiração igual à do início. As duas lâminas descansavam numa linha baixa, prontas, sem rigidez.

    O sangue de Aamerta pingou na pedra, desenhando um pequeno arco.

    Ela avaliou a própria situação com a frieza que a fizera general. Perna funcional, mas mais lenta; mobilidade quase inteira, só com menos impulso em arrancadas. A dor queimava, mas obedecia. Não havia surpresa: um corte em combate valia menos do que uma decisão errada.

    Cedric examinou a mancha na coxa dela com o olhar atento de alguém que avaliava uma peça recém-forjada.

    — Agora estamos no mesmo capítulo. — ele comentou. — Você sabe quanto move e eu sei quanto corto.

    Ela não respondeu.

    Aproximou meio passo, testou o peso na perna ferida, recuou um centímetro, ajustou a base. A espada longa descreveu um círculo curto no ar, reposicionando a guarda para cima.

    Aamerta percebeu que qualquer avanço naquele instante obedeceria à cadência que ele criara desde o primeiro golpe. Desde a primeira defesa “torta”, desde o tropeço encostado na coluna. Ele a colocara ali.

    Ele ditou tudo desde o início.

    Inspirou fundo, controlou o ar até o centro do corpo, deixou a dor se encaixar num canto mental onde não atrapalhava. A espada baixou um pouco, só para tirar a leitura perfeita dele.

    Cedric ergueu o queixo, quase curioso.

    — Vai continuar conforme o manual, general? — a voz saía sem esforço.

    Ela manteve o olhar preso no dele.

    — Vou continuar em pé. — respondeu.

    A perna latejava.

    Cedric não avançou.

    Ficou no próprio círculo, dono do espaço, as duas lâminas respirando com ele. Ombros soltos, corpo inteiro pronto. Um leve sorriso apareceu num canto da boca, sem alegria, sem deboche aberto; só a marca de quem via o jogo nos termos que queria.

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