Índice de Capítulo

    Nareth Dovar vinha na direção dela, passo firme, expressão acesa demais para o cenário em volta. O peitoral de mirthril cobria o tronco como uma segunda pele polida, as bordas marcadas por linhas de runa tão finas que pareciam gravadas a bisturi. O brilho não exagerava: um reflexo contido, pulsando perto do centro, como se o metal respirasse.

    Nareth bateu a mão espalmada no próprio peito. O som reverberou pelo corredor, grave.

    — As runas dele são inacreditáveis. — os olhos dele brilhavam de empolgação genuína. — O Império foi tolo em ignorá-lo.

    Ele. Não precisava de nome.

    Kalamera sentiu a mandíbula travar antes da resposta.

    — O Império não sacrifica os próprios soldados por “avanço”.

    A frase saiu limpa, sem levantar a voz.

    Nareth inclinou um pouco a cabeça, como quem ouve, mas não concorda.

    — Você fala isso porque só viu o começo. — Ele deu mais um leve toque no mirthril, quase carinhoso. — Agora que ele tem acesso à Espada da Chama Eterna, o que pode criar é inimaginável.

    As palavras ficaram penduradas no ar.

    Espada da Chama Eterna.

    Por um segundo, tudo ao redor sumiu.

    Kalamera viu o reflexo da chama perene nas paredes das forjas de Ga-el, o brilho constante no fundo dos olhos de Gorthen quando falava da “fonte” da Fortaleza. Imperador, seis generais, chefe do Distrito das Forjas. Só.

    Como ele…?

    O estômago dela gelou de um jeito estranho. O raciocínio fechou rápido, direto.

    Quando Gorthen caiu, a Espada sumiu. Ninguém sabia com quem estava. Ninguém deveria saber, mas Nareth falava dela como quem fala de uma ferramenta na própria bancada.

    Se a Espada foi levada quando o corpo de Gorthen ainda estava quente, e Hersperon agora a usava, a conta fechava sozinha.

    Então foi ele.

    Não Nareth, Hersperon.

    — Entendi. — ela murmurou, mais para si do que para Nareth.

    Ele nem perguntou o quê.

    Kalamera avançou.

    Base baixa, peso nos calcanhares, o corpo girando num eixo curto entre cintura e ombros. Os quatro braços trabalharam em sequência e sobreposição: dois punhos fechados no centro, vindo em linha reta; um gancho de metal buscando a costela; o último braço subindo pronto para travar qualquer contra-ataque.

    Os impactos bateram no peito de Nareth como martelos bem colocados.

    O corpo não deu um passo para trás.

    Ele só desceu um pouco o olhar para os braços dela encostados no peito dele, como quem confere um detalhe técnico.

     —  Primeiro choque, então? — a voz saiu leve.

    Kalamera recuou um passo; a vibração subiu pelos ombros e pela coluna. Em um dos braços de metal, uma sequência de peças atrasou um instante, o conjunto engasgando no meio do movimento.

    Ela corrigiu no reflexo, puxando essência para os pontos de ligação. As peças voltaram ao lugar, e o metal respondeu de novo em ritmo uniforme.

    Nareth respirou fundo.

    O brilho contido no centro do peitoral se intensificou. Não lançou clarão pelo pátio; afundou no metal. Veios de essência correram pelas runas, como se alguém tivesse girado um registro e deixado o peitoral puxar tudo de uma vez.

    — Agora eu. — ele avisou, quase educado.

    O passo que ele deu à frente pareceu pequeno. O impulso, não.

    Em um piscar, ele entrou na guarda dela. Ombro baixo, quadril alinhado, o cotovelo colado ao corpo. Não precisou de giro elaborado. Só deixou o corpo inteiro entrar no movimento e descarregou o peso, amplificado pelo buff do peitoral, no centro do tronco dela.

    O mundo virou um borrão.

    Kalamera sentiu o impacto abrindo tudo por dentro, o ar expulsado dos pulmões numa única rajada muda, a coluna recebendo a carga antes de qualquer pensamento.

    A batida ecoou alta.

    Ela bateu de costas na pedra e deslizou meio palmo antes de conseguir firmar os pés. Um gosto metálico subiu na boca; alguma coisa quente escorreu do canto dos lábios. O ruído agudo no ouvido demorou para baixar.

    Uma das próteses superiores falhou na mesma hora.

    O dedo anelar travou na metade do caminho, a articulação soltou um estalo errado e o braço inteiro ficou rígido, fora de compasso com os demais. A sensação era de peso morto pendurado no ombro.

    Kalamera prendeu o fiapo de ar que ainda tinha, fechou os olhos por um segundo e puxou essência.

    Ela visualizou o braço de metal por dentro: eixo, juntas, pinos, engrenagens. Soltou a tranca que tinha prendido em algum ponto, forçou o fluxo pelos veios de metal até o trecho emperrado, empurrou o encaixe de volta pro lugar. O braço sacudiu uma vez, duro, depois se soltou. Voltou a responder.

    Ela abriu os olhos.

    Nareth ainda estava no mesmo lugar, a poucos passos, postura relaxada. Nem parecia ter se movido tanto assim. As runas no peitoral voltaram ao brilho contido, como se estivessem satisfeitas com o teste.

    — Vê, Kalamera? — ele ergueu o queixo, sem alterar o tom. — Com isso aqui, espadas afiadas são desnecessárias.

    Ela enxugou o sangue com o dorso de um dos braços de metal e o encarou. O peito ardia por dentro, uma pontada insistente a cada vez que puxava ar.

    — Você estava lá. — falou.

    Não precisava de contexto.

    Os olhos dele só piscaram uma vez. Não confirmou, mas também não negou.

    Dessa vez, foi ele quem avançou.

    Nareth veio seco, sem aviso. O primeiro golpe não foi no rosto nem no peito: foi num dos braços de metal dela, um cruzado de antebraço que acertou bem na região das juntas. O impacto quebrou o desenho inteiro; peças voaram pelo pátio em chuva de aço.

    — Anos. — ele falou, enquanto o braço desmontava. — Anos ouvindo “Kalamera Wynrae isso, Kalamera Wynrae aquilo”.

    Ela tentou fechar a guarda com os três braços que sobravam, mas ele não deu espaço. Entrou de novo, desta vez no centro. Palma aberta no peito, o peitoral brilhando junto, empurrando a força pra frente. Kalamera sentiu o mundo recuar um passo sem que os pés dela saíssem do lugar. Costelas reclamaram alto.

    — A pequena Wynrae genial, a filha do mestre, a promessa das forjas. — a voz dele veio perto, estável demais. — Enquanto eu segurava martelo e calava a boca.

    Ela girou o corpo, tentou usar um braço de baixo pra puxar o calcanhar dele. Nareth já esperava. Levantou a perna, deixou o golpe passar por baixo e desceu o peso do pé no braço metálico dela, bem no meio.

    O braço cedeu.

    Mais peças se soltaram, rodando no chão. Ela manteve dois.

    Kalamera rosnou algo que não virou palavra e entrou mesmo assim.

    Dois braços só, corpo machucado, velocidade no limite. Ela mirou a garganta, o maxilar, a lateral do peitoral, qualquer ponto sem mirthril direto. Ele acompanhou tudo como se estivesse vendo um treinamento repetido.

    Desviou um, travou outro, usou o próprio impulso dela pra girá-la.

    De repente, o chão estava nas costas dela outra vez.

    Nareth caiu junto, joelho no abdômen, uma das mãos prendendo o punho metálico que restava, a outra segurando o “antebraço” próximo ao ombro. Bastava um pouco mais de força e ele desmontava o terceiro.

    O rosto dele ficou a um palmo do dela. O peitoral ainda pulsava, quente.

    — Eu passei a vida inteira debaixo da tua sombra. — murmurou. — Hoje, quem fica no chão é você.

    Ele apertou.

    O impacto atravessou o corpo dela, um estalo fundo nas costelas. O ar simplesmente não veio. Por um segundo, o pátio sumiu numa borda escura.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota