Capítulo 154 - A Hierofante II
Gwendolyn pigarreou baixo, endireitou a postura na cadeira, apoiou ambas as mãos sobre a mesa e fez um gesto breve, mas cordial, indicando os bancos simples à frente.
— Sentem-se. Sentem-se, por favor. — disse, retomando o tom controlado, quase neutro. — Quanto mais tempo ficarem em pé, mais difícil será ouvir o que precisa ser dito.
Brigitte foi a primeira a obedecer, sentando-se com cuidado, como se estivesse entrando em território sagrado. Evelyn se sentou logo depois, mantendo a coluna ereta e os olhos atentos a cada movimento da esotérica. Niko demorou um pouco mais, mas acabou puxando o banco e se acomodando, ainda com os braços cruzados.
Gwendolyn voltou a embaralhar as cartas. Dessa vez, porém, os movimentos não eram tão fluidos e exagerados quanto antes. Pelo contrário, era um embaralhamento rápido e simples, além de que havia pequenas pausas, microhesitações quase imperceptíveis em suas ações — mas que alguém atento poderia notar.
— Não se preocupem. — disse ela, sem levantar o olhar. — A reação anterior não invalida a leitura. Apenas… torna a sessão mais interessante.
Ela colocou o baralho sobre a mesa e, com um gesto firme, cortou-o em três partes iguais.
— Começaremos pelo mais simples. — continuou. — Aquilo que cada um carrega consigo, mesmo quando finge não perceber. A persona de cada sapiente que existe, canalizada em vinte e duas cartas distintas entre si. Vocês possuem essas personas também, mas aposto que não sabem quais são…
Os olhos verdes se ergueram primeiro para Brigitte — que tentava coçar uma parte irritada por debaixo do gesso.
— Você. — disse, inclinando levemente a cabeça. — Garota de pele escura.
Assim que foi chamada, endireitou a postura, e coçou de leve o braço enfaixado. A garota piscou surpresa, aquele apelido, vindo da esotérica, parecia algum tipo de título — do qual ela gostou.
Gwendolyn puxou uma carta do monte central e a virou sobre a mesa.
— Eu diria que você é o Chariote. — anunciou. — Você parece trazer movimento, vontade e uma forte identidade.
Ela inclinou levemente a cabeça, observando Brigitte com uma maior atenção, como se estivesse lendo-a de verdade.
— Você carrega uma identidade forte, mesmo quando parece distraída. Mesmo quando finge não levar tudo tão a sério, o Chariote ainda está aí, puxando as rédeas. Você sabe quem é. Talvez não o tempo todo, talvez não com palavras… mas sabe no fundo.
Os dedos dela tocaram de leve a borda da carta.
— Sua jornada não é se descobrir. — continuou. — É afirmar. Afirmar para si mesma, e depois para o mundo, quem você é e quem escolhe ser. Você avança, mesmo tropeçando. E quando cai, se levanta com o mesmo nome.
Brigitte engoliu em seco. O sorriso animado e ansioso de antes vacilou por um instante, os olhos arregalaram um pouco, e o sentimento foi substituído por algo mais contido, mais atento.
— Garota élfica.
Evelyn não reagiu de imediato. Apenas sustentou o olhar da esotérica, como se estivesse avaliando a sessão e seus resultados. Sobre a mesa, uma nova carta foi revelada.
— A Enforcada.
O nome da carta ecoou na mente de Evelyn por mais tempo do que ela esperava. Não sabia exatamente o que aquilo significava, nem o simbolismo completo por trás da figura, mas só pelo nome em si já bastava para despertar algum incômodo — e curiosidade.
— Você tem uma identidade… mas ela ficou suspensa por tempo demais. — disse Gwendolyn, em tom mais baixo. — Fortemente abandonada. Talvez por escolha. Talvez por necessidade. Talvez porque o mundo não te deu o espaço necessário para mantê-la.
Ela apoiou os cotovelos na mesa, inclinando-se para frente, penetrando o olhar gélido da garota à sua frente como se quisesse atravessá-lo de certa forma, atravessar a janela de sua alma.
— Diferente do Chariote, você não avança. Você observa. Espera. Mal age. E quando precisa, se sacrifica. Sua identidade é mais frágil porque passou muito tempo sendo colocada de lado. Porém, ela não morreu, mas ficou esquecida.
Enquanto falava, Gwendolyn deslizou a carta da Enforcada para mais perto de Evelyn, girando-a levemente, de cabeça para baixo — em relação à Gwendolyn —, como se reforçasse visualmente o estado descrito. Seus dedos então se afastaram da mesa, e ela voltou a se recostar na cadeira.
— Ainda assim… — acrescentou. — Você está tentando reconstruí-la. Pouco a pouco. Cada escolha consciente, cada passo dado mesmo com dúvida, é uma corda sendo cortada. — concluiu.
Evelyn permaneceu em silêncio. Não havia choque visível, nem espanto teatral. Apenas mordeu os lábios de leve e deu um desvio quase imperceptível do olhar, como se tivesse revisitado alguma memória antiga. Aquilo não a assustava — a incomodava porque era preciso demais.
Por fim, Gwendolyn voltou-se para Niko. Dessa vez, ela demorou um pouco para anunciar sua leitura. Talvez o sondar fosse mais profundo, ou talvez fosse difícil de colocar em palavras. Por fim, ela começou.
— Filho de Cernuno.
Ela puxou a última carta. Não a virou de imediato. Os segundos se estenderam, densos. Após uma longa pausa, virou a carta, anunciou a persona do albocerno:
— Você é a Morte.
Não houve pausa dramática. Nenhuma tentativa de suavizar a palavra. Foi dita como um fato bruto, inevitável. Onde a informação direta era mais preferível do que a mais suave.
— A Morte fala de ciclos encerrados à força. De algo que terminou antes de estar pronto… e de um novo começo que não sabe ainda como existir, ou se deve existir para início de conversa.
Niko sentiu um incômodo forte crescendo no peito, antes mesmo de formular um pensamento claro. As íris se estreitaram, o olhar ficando mais pesado a cada palavra dita. Não era só medo, era todo um complexo de sensações desconfortáveis. Desconforto de alguém tocar em algo que não devia ser tocado.
— Algo seu foi deixado para trás. Algo fundamental. — prosseguiu ela. — Sua vida entrou em um novo ciclo, mas esse ciclo começou… vazio. Confuso demais. Sem forma. Sem nome.
Ela ergueu o olhar, firme, sustentando o dele sem hesitar. Não havia piedade ali, nem julgamento, apenas uma constatação direta demais. Niko percebeu que estava prendendo a respiração. O peito parecia apertado demais para o ar que tentava puxar.
— Diferente da garota de pele escura e da garota élfica, você não tem uma identidade. Não porque a perdeu… mas porque simplesmente parece nunca ter tido uma. Sua jornada não é sobre reforço, nem sobre reconstrução. É sobre criação.
Niko sentiu o estômago revirar. Aquilo foi diferente. Com Brigitte e Evelyn, Gwendolyn havia afirmado suas análises de forma certeira. Não havia dúvidas e nem desvios. Mas com ele, havia algo… confuso. Como se ela estivesse lendo, mas também interpretando algo bastante abstrato. Como se estivesse tentando completar um quebra-cabeça anárquico e incompleto.
— Luz e sombra. — Gwendolyn concluiu. — Você não sabe onde está. Mas sabe onde quer estar. Busca a luz mesmo sem ter certeza se pertence a ela. Esse conflito foi imposto a você desde que sua jornada iniciou, desde quando você era um Louco.
Ela inclinou levemente a cabeça.
— E esse conflito… é o seu agora.
O silêncio que se seguiu foi pesado. Brigitte olhou rapidamente para Evelyn, depois para Niko. A empolgação inicial havia desaparecido por completo, substituída por algo muito mais desconfortável. Aquilo não era mais uma leitura divertida, nem uma curiosidade mística qualquer. Parecia íntimo demais, intrusivo demais para tirar qualquer proveito da situação. Como se alguém tivesse aberto seu diário sem sua permissão.
— Ela… — murmurou Brigitte, em voz baixa, quase sem querer interromper o momento. — Ela acertou bastante coisa, né?
Havia admiração ali. Mas também um leve arrependimento por ter insistido tanto para entrar naquela tenda.
— Realmente… — concordou Evelyn, após alguns segundos. — Isso foi… impressionante…
O tom da elfa era contido, cuidadoso. Os olhos, porém, não saíam de Gwendolyn nem por um segundo.
Já Niko, por outro lado, sentia a mente girar rápido, muito rápido. Aquilo não fazia sentido. Não havia como alguém saber daquilo sem informação prévia. Ele não tinha falado em momento algum em Luminara, até antes disso. Não tinha deixado escapar. Não havia nenhum registro público, nem histórias circulando por aí. Evelyn não contaria isso para ninguém, e não havia dito informação o suficiente para Brigitte até aquele momento — apenas uma conversa breve de como conheceu Evelyn, que a mesma não demonstrou muita atenção. Sua memória era fragmentada e cada passo que deu eram conhecidos apenas por poucas pessoas — pessoas em quem ele confiava. Suas íris continuavam contraídas e o maxilar rígido. A cabeça buscava explicações:
“Coincidência estatística? Como? Alguma leitura fria direta? Como houve? Sugestão bem estruturada? Informações vazadas? Skarshyn? Algum tipo de Bruxaria? Algum tipo de rede? Algum tipo de vigilância? O que está acontecendo???”, perguntas que enrolavam sua mente em um vórtice de pensamentos, dúvidas e paranoia. Paranoia. Paranoia. Paranoia.
Mas quanto mais pensava nas respostas, nada parecia se encaixar completamente. O desconforto virou tensão. E a tensão virou urgência. Ele deu um passo para trás, afastando-se da mesa, quebrando o campo quaternário simbólico que aquela leitura havia criado.
— Evelyn… Brigitte… — disse, finalmente, a voz baixa, mas firme. — Vocês poderiam sair um pouco da tenda, por favor? Queria ter uma conversa a sós com ela.

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