Capítulo 1 - Encontro
Ao longo de sua longa caminhada, após horas e horas somente andando sem rumo, o ser de chifres repentinamente permaneceu imóvel. Ele experimentou algo estranho, um desconforto no seu corpo começou, começou a ficar um pouco fraco, e o desconforto anterior se transformou em uma pequena dor aguda no estômago. Ele estava com fome.
Como ele não trouxe comida consigo, teve a ideia de retornar à floresta novamente em busca de algo para poder comer. Podia ser um animal, umas frutinhas ou qualquer coisa que saciasse sua fome.
É claro que, devido à época do ano e ao bioma em que estava, seria difícil encontrar algo que pudesse comer. Entretanto, não havia outra opção a ser considerada, pois não havia nenhuma cidade ou vila próxima e, mesmo que houvesse, não tinha garantia de que alguém forneceria comida para um completo desconhecido. Era isso ou passar fome. Dessa forma, ele adentrou a floresta.
Passado algum tempo, o ser procurou por todas as direções. Procurou nos arbustos, nas árvores, até que encontrou uma caverna escura em que não era possível ver nada. Apesar da escuridão tenebrosa que se apresentava, ele parecia manter um nível de coragem.
“Acho que eu vou entrar”, pensou o ser pálido enquanto observava o lugar, totalmente escuro. Ele tinha um objetivo e ele poderia ser completado aqui e agora, dentro desta caverna. Então, com determinação, colocou seu pé na entrada da caverna e ouviu um som abafado vindo de dentro dela, que não conseguiu dizer exatamente o que era, mas aquilo foi o suficiente para ele suar frio, desistir da ideia, colocar o rabo entre as pernas e sair do local. “Melhor não”.
Passado mais algum tempo, o garoto encontrou um lago congelado. Pela espessura do gelo parecia seguro de andar por cima. Então foi o que o ser de chifres fez. Passou por cima do lago em busca de algum peixe congelado.
Ele encontrou um peixe perto da superfície, totalmente imóvel, pegou uma de suas facas e cavou um buraco no gelo ao lado do peixe, para o pegar. Colocou a mão direita no lago e, apesar do frio intenso, o garoto manteve a vontade e a paciência de pé para poder comer sua saborosa refeição. E ao encolher os dedos no peixe, o animal saiu nadando para o fundo do lago.
No final, o peixe não estava congelado, apenas estava em estado de hibernação, que ao ser tocado acordou. O garoto de chifres suspirou tristemente e tirou rapidamente o braço daquela água congelante, que parecia queimar seu braço de tanto frio.
Com fome, triste e com o braço quase congelado, ele não encontrou nada, nem sequer um coelho, ou algumas frutinhas que pudesse comer.
— Que fome… e que frio… — lamentou o garoto com a mão na barriga enquanto caminhava.
— Será que eu vou encontrar algo para comer logo? Faz horas desde que acordei… e nem sei quando foi que comi pela última vez…
Pela fome que tinha, era certeza de que estava sem comer há mais de dezesseis horas.
Nessa altura, ele tinha certeza de que seu plano terminaria em fracasso. Tendo que continuar caminhando de barriga vazia até encontrar alguma cidade, vila ou um viajante que passava pela rua, que, considerando o quão vazia ela era, seria bem difícil essa possibilidade.
— Acho que vou procurar mais um pouco e depois eu volto para a estrada.
Dessa forma, ele de repente encontrou uma fruta presa em uma árvore. A fruta era de formato oval e de cor roxa, aparentando ser um pouco pequena, mas que compensava seu tamanho tendo um aroma doce intenso.
Sua primeira reação ao ver aquilo foi de estranhamento, afinal, pelos seus conhecimentos, não havia motivos ou sentido para uma fruta dessas nascer em um lugar daqueles, se destacando muito em relação ao branco da neve. Ainda que estivesse confuso com a situação, não havia como recusar, pois estava com fome. Além disso, comida é comida. Não importa se a mãe natureza acordou em um dia ruim e resolveu criar uma aberração biológica e evolutiva dessas, ele tinha que aproveitar, afinal, era o único alimento que tinha por perto.
A fruta estava um pouco alta, cerca de três metros, então ele usou sua foice de apoio para chegar até ela. Fincou a grande lâmina no tronco grosso do abeto, escalou e retirou a fruta, entre os galhos que estava.
A fruta era hipnotizante, seu aroma era tão doce que qualquer um que o sentisse ficaria tentado a dar uma mordida. Seu cheiro, agora nas mãos do ser de chifres, era muito mais intenso do que quando estava na árvore. O aroma adocicado e suave do alimento chamava a atenção do fantasma, o chamava para morder e sentir seu delicioso suco.
O ser de chifres aproximou a fruta de sua boca e estava prestes a dar uma mordida até que…
— EI! — ouviu ele, uma voz distante.
De repente, ele parou e fechou a boca, deixando de comer a fruta. Quase que automaticamente se virou para a direção do barulho, devido ao susto, afinal, não é comum ouvir vozes no meio da floresta. No meio tempo de se virar, o garoto se perguntou se a pessoa de que veio o som era um amigo ou inimigo e o que faria alguém nesse local, tudo isso enquanto seu coração batia alto. Suas íris, que antes estavam dilatadas, se contraíram, como se fossem de um gato, ao ouvir um grito que, com certeza, era o que menos esperava na hora. Ao se virar para examinar a origem daquela voz…
— Essa fruta é venenosa, não sabia!?
Era uma mulher jovem, um pouco mais alta do que ele, cerca de 1,60 de altura e usava um sobretudo escuro e pesado, parecendo até mesmo uma armadura. Com cabelos grisalhos de tamanho médio, olhos azuis-claros e com pupilas brancas. Tinha uma presa saltada, sem contar a parte mais marcante da sua aparência, que eram as três cicatrizes no rosto, uma que descia do olho esquerdo, mesmo assim não parecia ser cega, e as outras duas na parte inferior da bochecha direita.
Apesar de ter falado alto, a moça não pareceu estar brava com ele, apenas um pouco preocupada com o ser de chifres que estava à sua frente, quase comendo aquela fruta.
Encontrando a fonte da voz, o ser sem nome se acalmou e suas íris ficaram dilatadas novamente.
Ao ouvir que aquela fruta era venenosa, ficou decepcionado, se sentindo traído pelo aroma sedutor da fruta, logo, com pesar, largou-a.
— Por que você ia comer uma fruta de vidélfrio? Todo mundo sabe que aquilo tem um veneno que pode matar até três pessoas! — suspirou a moça de cabelos que quase se disfarçavam na neve, aliviada por conta de nada de mais ter acontecido.
Foi nesse momento que o ser de chifres quase foi morto, traído pela doce tentação sedutora daquele aroma roxo.
— Ah, você deve estar com fome, né? Só uma pessoa faminta iria comer uma fruta de vídelfrio. Então, aqui, coma um girtilo.
A jovem moça retirou uma fruta de cor azul escura de sua mochila e a entregou ao garoto. Dessa vez a segunda fruta, diferentemente da “traidora púrpura”, foi assim que o garoto decidiu a chamar, era esférica e não tinha um aroma forte igual à primeira. Sua casca era fina, parecia ter muito suco dentro de si e cabia perfeitamente em sua mão.
O ser sem nome se sentiu atraído a comer a segunda fruta por conta de sua fome, mas estava receoso em experimentá-la, já que seu antigo relacionamento não foi muito agradável, quase sendo uma vítima de uma viúva negra. Porém, o sorriso amigável da mulher à sua frente o incentiva mais ainda a experimentá-la, então decidiu dar uma chance à sua nova companheira e comê-la. Mordendo a bola azulada, o ser de chifres sentiu um gosto maravilhoso. Doce e levemente ácido, com uma nota suave e refrescante no final. “Me desculpe por duvidar de você, girtilo…”, foi o que pensou.
— O que você quase acabou de comer é uma fruta de vídelfrio. É uma fruta criada por um animal chamado… vídelfrio, dãh. Ele é um bicho que chega até a altura do joelho e é bem peludo, ele cria essa fruta com esse aroma durante o inverno, com o objetivo de envenenar algum animal faminto e se alimentar dele depois. — disse a moça enquanto o ser de chifres estava comendo a fruta, parecendo que era a primeira vez que comia um girtilo, ou melhor, que comia algo na vida, não pela questão de comer rápido, mas sim, de apreciar a comida, como uma forma de compensar seu julgamento inicial.
— Ah, verdade, esqueci de me apresentar, desculpa. Meu nome é Evellyn, e você, como se chama? — a mulher de cabelos grisalhos se apresentou como “Evellyn”, esse nome se refletia bem na sua pessoa, que parecia ser bem-humorada, mas, ao mesmo tempo, forte quando era preciso.
No momento em que Evellyn perguntou ao ser de chifres seu nome, ele já havia terminado de comer a fruta e, com uma expressão facial e comportamental levemente triste, respondeu à mulher.
— Meu nome?… Eu não sei… eu só acordei debaixo de uma árvore e agora estou aqui. Eu não lembro de nada, do meu nome, dos meus amigos, da minha família, nada… Então, me desculpa, eu não sei qual é meu nome.
Ela ficou surpresa ao ouvir essa resposta inesperada da pessoa à sua frente, já que, quando se faz uma pergunta simples, como saber o nome de alguém, ninguém espera que a pessoa seja amnésica e não tenha conhecimento do próprio nome ou até mesmo da própria existência. Principalmente uma pessoa jovem, que não parece ter nenhum problema de saúde que afetasse suas lembranças.
— Que estranho… não lembra de nada mesmo? Agora faz sentido você quase ter comido a fruta…
O ser de chifres respondeu balançando a cabeça para os lados em forma de dizer “não”. Ele aparentava ser um pouco tímido em relação a estranhos ou pessoas em geral, uma daquelas pessoas que não falam muito e, mesmo que quisessem, a voz não saía de suas gargantas.
— Nesse caso, eu posso te dar um nome então, já que não ter um nome é como se você não existisse e acho que você iria querer isso, né?
O ser sem nome concordou com Evellyn, balançando a cabeça para cima e para baixo. Ele queria ter um nome, ele queria saber quem era, podia não ser sua verdadeira identidade, mas ele queria abraçar a chance de ter alguma identidade, abraçar a chance de existir.
— Que tal… — pensou Evellyn, por alguns segundos com a mão no queixo, pensando em um nome que pudesse combinar com o garoto a sua frente. Então, pensou em um nome que achasse combinar e satisfazer o ser de chifres. — …”Niko”. Que tal você se chamar “Niko”? O que acha?
— “Niko”? — o ser de chifres, ou melhor, Niko, gostou do nome, ele achou simples e agradável, um nome de somente quatro letras e duas sílabas. — “Niko” é legal. Acho que vou adotar isso.
Apesar de se autodenominar Niko neste momento, ele ainda sentiu um incômodo em relação a isso, uma vez que pensava que não era de fato Niko, mas sim uma pessoa diferente. Que, por algum motivo, não conseguia lembrar de sua verdadeira identidade.
Ao perceber que Niko gostou da sugestão de nome, Evellyn deu um sorriso fechado. Ela parecia gostar de ajudar pessoas, seja contribuindo de uma pequena ou grande forma. Apesar de o que Evellyn acabou de fazer não parecer uma grande ajuda, afinal ela somente deu uma sugestão de nome, aquilo significou algo especial para Niko, pois foi naquele momento que começou a existir.
— O que você veio fazer nesse lugar, Evellyn?
— Eu? Eu vim aqui para caçar um lufador. Hehehe, o meu contratante vai me pagar dois mil Yzakels por isso. — disse ela com um sorriso confiante enquanto mostrava o número “dois” com os dedos.
Niko piscou os olhos duas vezes, demonstrando que não sabia o que era um “lufador” e, especialmente, esses “Yzakel”. É claro que, considerando o contexto da frase, Niko concluiu que um lufador deveria ser um tipo de animal perigoso ou difícil de ser encontrado, já que Evellyn foi contratada especificamente para caçar um. Se fosse um animal sem dificuldades de caça, Evellyn provavelmente não seria contratada, a menos que o contratante fosse um indivíduo preguiçoso e não quisesse fazer isso por si. Além disso, havia a possibilidade de ter algum tipo de problema de mobilidade, o que também explicaria a situação.
Já o Yzakel era provavelmente a moeda da nação em que Niko e Evellyn estavam e, considerando que Evellyn foi contratada por um valor de dois mil, aparentemente bem alto, indicava que aquele animal tinha alguma dificuldade para ser caçado.
“O que é um lufador e esse Yzakel, Evellyn?”, era o que Niko estava prestes a falar, mas antes mesmo que ele pudesse abrir a boca, Evellyn o respondeu.
— Os lufadores são animais bem grandes e bem perigosos até. Eles também soltam uma rajada de ar comprimido muito forte que pode até se comparar com os ventos de um tornado imenso. Eles são muito fortes, por isso me contrataram.
“Como eu imaginei”, pensou Niko, cheio de orgulho, até pensando em dizer em voz alta, mas aquilo soaria estranho, então desistiu da ideia.
Evellyn respondeu uma das dúvidas de Niko, sem nem ter mesmo a falado, provavelmente dada a sua expressão de confusão. Ela somente não respondeu sobre o que seria o Yzakel. Niko até considerou perguntar a ela o que seria isso, mas provavelmente era mesmo uma moeda, então nem valia a pena perguntar. Sem contar que não queria constranger Evellyn por não entender que também não sabia o que era esse objeto de nome estranho.
— Bem… E-eu tenho um acampamento, fica perto daqui. Lá é um lugar mais confortável para conversar… — percebendo a desculpa horrível que ela fez, olhou para baixo de Niko e viu algo que poderia salvar seu estranho pedido. — S-sem contar que você está pingando embaixo da roupa, então a gente podia ir para lá acender uma fogueira, assim você poderia se aquecer, assim não vai pegar um resfriado. O que acha?
Dava para ver nitidamente que, pelo jeito trêmulo e de improvisação de baixa qualidade de Evellyn, ela estava bem tímida em relação a contar sua sugestão a Niko, mas que, do mesmo jeito, fez.
Evellyn estava com uma expressão facial simpática em seu rosto, enquanto isso, Niko tinha uma expressão completamente neutra. Desde que tinha acordado, não sorriu nenhuma vez. Ele parecia o tipo de pessoa que, mesmo feliz, não sorria facilmente, não porque era uma pessoa rabugenta ou algo do tipo, mas sim porque não tinha motivos para sorrir.
Realmente, Niko não aguentava mais aquela sensação fria que estava quase congelando seu braço, mesmo tentando se aquecer usando a sua outra mão, debaixo de seu manto. Sem contar que ela havia salvado sua vida mais cedo, o mínimo a se fazer era aceitar sua proposta.
— Pode ser.
— Que bom! Então é só me seguir, Niko.
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