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    Era mais um dia calmo na praça central da vila. O céu estava aberto, o sol quente e o vento soprando suavemente entre as casas de tijolos de cor creme e telhados de laje marrom. Brigitte estava em pé, em cima de um banco de pedra, de joelhos apoiados na beirada, gesticulando com tanta energia que parecia escrever palavras no ar.

    — …e foi aí que o cavaleiro saltou sobre a ponte quebrada, com o monstro logo atrás! — contou ela, de olhos arregalados com tamanha empolgação. — E ele caiu num lago de vidro! Mas o lago… o lago na verdade era um espelho! E do espelho saiu outro cavaleiro, só que com olhos vermelhos! Igual ao Umbral!

    Alix, Bastien, Céline e outras crianças menores ao redor se apertavam na sombra da grande árvore de Alzen, prestando atenção, com os olhos famintos por histórias. Até mesmo Étienne — que quase sempre inventava histórias melhores que qualquer um — estava quieto, ouvindo, enquanto comia uma maçã.

    Brigitte adorava quando faziam isso. Quando paravam para ouvi-la. Isso a fazia se sentir importante. Viva. Principalmente quando as pessoas sorriam, aquilo era algo sem preço para ela.

    A garota então se levantou no banco, com as botas sujas de terra e a capa improvisada balançando atrás.

    — …mas então, quando o cavaleiro falso ia atacar, ele sentiu uma dor no peito! Porque o verdadeiro tinha algo que o falso jamais teria si próprio e precisava roubar do cavaleiro original…

    — O quê? — perguntou Céline, inclinando-se para frente, com os olhos brilhando mesmo na sombra.

    Brigitte sorriu.

    — Um coração de verdade! — ela apontou para frente. — Que brilha como o nascer do sol!

    As crianças vibraram. Alix chegou a bater palmas, e Brigitte respondeu com uma reverência exagerada, uma mão no peito e a outra esticada para o lado — tentando imitar Janric.

    — Obrigada, obrigada, nobres senhores! A continuação é só amanhã.

    Brigitte desceu do banco com um pulo desajeitado. A poeira subiu ao redor dos pés, e ela sentiu o coração mais leve. Estava suando por ter ficado no sol, mas nem ligava para isso.

    — Ah, conta hoje, Brigitte, por favoooor… — disse Bastien, puxando o canto da capa improvisada.

    — Nada disso! — respondeu ela, girando nos calcanhares. — Senão minha cabeça vai explodir de ideias e a Alma vai começar a pifar! É perigoso brincar demais com o destino.

    Algumas crianças riram. Alix caiu no chão como se tivesse sido atingido por uma espada invisível. Céline fez cara de espanto exagerado ao ver o rosto do amigo encoberto no chão. Até Étienne soltou um “muito justo, senhorita cavaleira” com os olhos e o rosto. Brigitte olhou em volta, encheu os pulmões e, sem esperar muito disse:

    — Vamos brincar de proteger o castelo! A grande árvore é a torre, as pedrinhas são flechas e os galhos, espadas! Quem for pego pela sombra do inimigo vira um guarda corrompido!

    De um instante para o outro a praça ganhou movimento. As crianças começaram a se levantar. Alix limpou a calça de terra, Céline arrastava Bastien, e Louane — a pequena criança de tranças loiras e olhos curiosos — levantou em um pulo e pegou sua boneca de pano como se ela fosse uma relíquia mágica.

    — Eu quero ser a princesa do campo! — disse Louane, radiante de emoção.

    — E eu, o inimigo! — declarou Alix, erguendo um galho que pegou do chão como uma poderosa arma. — Trago a maldição das sete folhas secas! Mwahaha!

    — Não tão rápido, invasor! — gritou Brigitte, como uma general. — As defesas estão prontas! Princesa Louane, fique atrás das muralhas!

    Brigitte correu até atrás do banco de madeira e se ajoelhou, arrastando dois galhos longos, cruzando-os no chão como se fossem portões sagrados. Louane riu e se escondeu atrás da barreira improvisada, juntando-se ao grupo dos “heróis”.

    — Vocês nunca vão me derrotar! — berrou Louane, sacudindo a boneca no ar.

    — ATENÇÃO! — anunciou Brigitte, mão em formato de concha junto à boca. — Ouvi passos de um espião…

    Foi quando uma voz firme cortou o ar da praça — distante, mas presente:

    — Louane? Louane! Vamos embora, meu bem.

    Todas as crianças viraram o rosto ao mesmo tempo. As que estavam ajoelhadas se levantaram em silêncio curioso. Pela trilha, vinha a mãe de Louane, com passos rápidos. Usava um vestido azul-acinzentado e um lenço branco amarrado no cabelo.

    Parou a poucos passos do grupo, o olhar estava varrendo cada rosto até repousar, por fim, em Brigitte.

    — Olá, crianças… — disse, com um tom suave demais para ser verdadeiro. — Estavam se divertindo?

    — Mãe, posso ficar só mais um pouco? — pediu Louane, apertando a boneca contra o peito. — A gente ia brincar de proteger o castelo.

    O sorriso da mulher surgiu, mas não se espalhou até os olhos; parecia a máscara de quem esconde um desconforto.

    — Eu sei, querida. Mas o sol já está forte, e você não bebeu água desde hoje de manhã. Vamos? Mamãe fez torta de maçã…

    Louane hesitou. Um pé estava voltado para a mãe, outro ainda preso à sombra da árvore. O olhar alternava entre obediência e vontade de ficar.

    — Mas eu ainda nem brinquei… — murmurou.

    A mãe inclinou levemente a cabeça, mantendo aquele meio sorriso, enquanto os olhos permaneciam atentos, rígidos.

    — Podemos brincar outro dia. Não é mesmo, crianças?

    Antes que qualquer resposta viesse, já estava ao lado da filha. A mão da mãe pousou no ombro da filha, e o toque, embora leve à vista, era firme como rocha.

    — Vamos, meu anjo.

    — Mas eu só queria ficar mais um pouquinho… — insistiu Louane, tentando olhar para trás.

    — Eu disse vamos. — repetiu, agora sem margem para contestação, sem mais o sorriso no rosto.

    Virou-se, guiando a menina pela mão que prendia seu punho. E foi nesse instante que Brigitte ouviu — ou talvez tenha apenas imaginado ouvir — um sussurro escapar da boca da mulher, baixo como um segredo que não poderia ouvir:

    — …não quero você perto daquela menina. Ela mexe com magia… — o resto a menina não conseguiu ouvir.

    Brigitte não falou nada. Não perguntou, não se defendeu. Apenas ficou ali, observando Louane ser arrastada, virando a cabeça a cada poucos passos, até desaparecer de vista na trilha de terra batida.

    As outras crianças voltaram à brincadeira aos poucos, mas algo havia se quebrado no ar. A espada de galho pesava demais na mão de Brigitte. Depois de um momento, ela arrastou a ponta no chão, desenhando círculos sem forma.

    Pela primeira vez em muito tempo, não disse palavra alguma. Apenas queria ficar sozinha.

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