Capítulo 102 - O Cinza II
Brigitte ergueu os olhos e encontrou três adolescentes chegando pela trilha de terra batida. Deviam ter quinze ou dezesseis anos, todos mais altos e mais velhos que ela. Entre eles, estava Bastien — o mesmo Bastien que, anos atrás, ouvia suas histórias com brilho nos olhos. Agora, ria com gosto das piadas contra ela.
— Ainda brincando de ser cavaleira, Brigitte? — provocou um deles, Jules, o ruivo, com um sorriso enviesado no rosto. — Ah, mil desculpas, não é brincadeira, é “treinamento”. Tinha esquecido disso.
Os dois ao lado riram baixo. Brigitte lançou um olhar frio a Jules, bufou alto e virou o corpo, devolvendo a atenção ao livro. Desta vez, apenas lendo e se imaginando nas posições de combate, sem o graveto que usava de espada.
— Own, acho que você chateou ela, Jules. — disse Denis, o mais esguio dos três, com uma voz forçadamente infantil.
— Ah não! Me perdoe, Brigitte. — disse Jules, em tom falso. — Essa não era a minha intenção.
Ela não respondeu. Nem ousou responder. As provações e risadas daquele grupinho idiota já fazia parte de sua rotina. Como resposta, ela apenas ignorava até que eles fossem embora. Funcionava quase sempre das vezes e quando não, bastava voltar para casa que o grupo iria parar.
Enquanto sua atenção estava voltada ao livro, uma sombra se projetou sobre a página. Brigitte ergueu o rosto e encontrou Jules, de braços cruzados, com a testa franzida e boca rígida.
— Não é muito legal ignorar as pessoas, sabia? — disse, com voz macia que soava como ameaça. — Você devia ser mais educada.
Nenhuma resposta. Brigitte continuou em silêncio, não podia nem queria dar satisfação àqueles três. Fechou o livro com calma, segurando-o firme contra o peito. O gesto silencioso pareceu irritar Jules, que decidiu fazer algo que era impossível da menina ignorar.
— Dá aqui. — disse ele, estendendo a mão.
Brigitte apertou o livro ainda mais forte contra si.
— Ei! Qual é o seu problema?!
— Eu disse… dá aqui! — avançou Jules, puxando com força.
Antes que ela recuasse, Jules puxou com força. Brigitte levantou em um salto, tentando agarrar de volta, mas ele já tinha se afastado, rindo.
— Que gracinha… é um manual de combate! — zombou, lendo o título em voz alta, exibindo para Brigitte como se fosse um troféu. — Será que ensina a ser menos idiota também?
— Me devolve! — gritou ela, partindo pra cima do valentão.
Tentou pegar o livro, mas Jules foi mais rápido, arremessou o livro no ar. Denis, em um pulo, pegou o volume sem dificuldade e, rindo, o abriu com um rangido seco das dobradiças gastas.
— Vamos ver… “Padrões de ataque básicos: posturas de defesa em três ângulos — superior, lateral e inferior…”? Que ridículo! Hahaha — recitou Denis, rindo, mesmo sem entender nada, apenas para provocar.
— Para com isso agora! — gritou Brigitte, avançando novamente.
Desta vez, ela quase agarrou o livro, mas Denis o lançou para Bastien. O ex-colega tentou segurar, mas o objeto escorregou de suas mãos suadas, caiu no chão e deslizou levemente na terra.
Quando o livro caiu no chão, Brigitte ouviu um som seco e horrível ecoando pelos arredores do poço: o som de papel rasgando. A cena que presenciou foi pior do que tudo que podia imaginar naquele dia. A capa da obra estava torta e as páginas amassadas e sujas.
— Ops.
Com um sorriso enjoado, Bastien se abaixou, como se fosse pegar o livro com todo o cuidado do mundo. Mas ao invés disso, empurrou-o para perto do poço. Uma parte que estava vazando um pouco de água, que, ao entrar em contato com o livro, sujou-o ainda mais.
— Que pena, Brigitte… Eu fui tentar pegar o livro pra te devolver, mas acabei sujando ele mais ainda! — disse com um sorriso falso.
No instante seguinte, o sorriso sumiu e Bastien sentiu uma forte dor explodir na lateral do rosto. Brigitte havia acertado um soco direto em seu rosto, junto de um estalo eletrizante. Um estalo seco e uma linha de luz violeta atravessaram o espaço entre os dois, atingindo seu maxilar. Bastien soltou um grito agudo, quase cômico vindo de quem se achava invencível segundos antes.
Cambaleou para trás, tropeçou nas próprias pernas e caiu sentado, com a mão tremendo desajeitadamente perto da boca. Seu olho esquerdo mal piscava direito e a parte da bochecha atingida parecia sem reação.
— Ela… ela me atacou! — gaguejou, com o lado esquerdo da boca ainda aberto e apontando para Brigitte com o indicador trêmulo.
Denis e Jules recuaram dois passos, como se tivessem diante de um animal selvagem solto no meio da praça.
— Você é um monstro… Você é a porra de um monstro! — gritou Denis, alto o bastante para a feira inteira e todos que estavam próximos ouvirem.
Os adultos nas barracas levantaram a cabeça. Os que estavam andando de repente pararam. Nesse instante, toda a atenção da vila estava em Brigitte. Todos estavam encarando-a com um pesar nos olhos.
A raiva de Brigitte evaporou no mesmo instante, substituída por medo. Todos olhavam para ela como se fosse algo impuro, perigoso.
— O que ela fez?
— Foi a faísca…
— Magia de novo…
Dois homens largaram as compras e correram para ajudar Bastien a se levantar. Uma mulher, com o rosto contorcido, puxou Denis para trás, como se ele estivesse prestes a ser atacado.
Olhares cravaram em Brigitte como lâminas. Todos os rostos carregavam a mesma expressão: medo e repulsa.
— E-eu… eu não sou… eu não fiz… — começou a dizer, com a voz tremendo.
Ninguém respondeu. Apenas continuaram olhando. Julgando.
Não conseguiu dizer mais nada. Já era difícil pensar em algo, falar no entanto, era impossível. Baixou os olhos para as próprias mãos — ainda tremiam, faiscando, forte, rápido. Queria dizer que Bastien começou. Queria explicar que não era culpa dela. Mas sabia que ninguém ouviria. Nunca ouviam. Não ouviriam dessa vez.
Sem mais escolhas, antes que alguém se aproximasse dela, virou nos calcanhares e disparou. Correu sem olhar para trás. Ainda ouvia o som dos murmúrios colado às costas, como se tentassem alcançá-la — ou era isso que ela pensava.
Tinha que correr. Tinha que fugir. Ficar segura. Fugir para o único lugar seguro que tinha: sua casa. O único lugar sem aqueles olhares de julgamento e nojo.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.