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    O quarto de Brigitte estava na penumbra, iluminado apenas pela luz pálida dos postes que se infiltrava pelas frestas da janela. Deitada de lado na cama, ela observava a capa do livro danificado pelos valentões — ainda sujo de terra e lama, principalmente entre as páginas 115 e 132, onde o barro endurecido tornava impossível ler qualquer palavra. O cheiro úmido da terra ainda impregnava o papel, isso tornava tudo muito pior.

    Do lado de fora, ouvia vozes. Não precisava olhar para saber que seus pais conversavam com alguém da vila. Reconhecia o tom baixo e preocupado de sua mãe, e a voz mais áspera do pai.

    — …o rosto dele… — disse uma voz abafada.

    — Ela é uma boa menina, nunca faria de propósito… — respondeu a mãe.

    — …atacou um deles, Odile… muito grave… — completou o pai.

    Brigitte abraçou o livro com força enquanto ouvia o resto da conversa — pelo menos, o que conseguia escutar. Se sentia triste, estava prestes a chorar, mas não conseguiu derramar uma lágrima sequer, tentou se manter firme enquanto a ansiedade batia em seu peito com força, como se quisesse quebrar suas costelas por dentro.

    As vozes finalmente pararam. Minutos depois, a porta rangeu e a silhueta calorosa da mãe surgiu parada na entrada.

    — Brigitte… vem aqui, filha. — chamou a voz triste da mãe.

    Odile recuou para a sala, com os olhos fixos no chão. Brigitte deixou o livro que ajudou-a tanto nos últimos meses na mesinha ao lado da cama e atravessou o corredor estreito. O piso de madeira rangia sob seus passos, já estava acostumada com isso.

    Chegou à sala. Os pais a esperavam à mesa. O pai, estava de braços cruzados e postura dura. Já a mãe, com as mãos unidas no colo, um gesto frágil, que revelava medo e exaustão.

    — Senta. — disse Eric, em um tom sem raiva, mas também sem afeto.

    Ela obedeceu cegamente às autoridades familiares, engolindo seco antes de sentar, sabia que uma longa conversa estava prestes a se iniciar.

    Por um instante, ninguém falou. A voz do silêncio preencheu a sala, dos móveis às portas. Depois de alguns segundos, a mãe falou:

    — Ficamos sabendo do que aconteceu hoje. Você brigou com Bastien, Jules e o Denis.

    Brigitte abaixou a cabeça. Suas extremidades estavam quentes, porém, fracas. Como um misto de raiva e tristeza.

    — Eles que começaram… — murmurou.

    — Sabemos que eles não são santos — disse a mãe, rápida para acalmar a filha. — mas, Brigitte… você usou sua Alma contra eles. Ela é perigosa. Machucou Bastien. Assust-

    — Eu não queria fazer isso! — cortou Brigitte, erguendo o rosto. A voz tremia e os dentes rangiam. — Eles pegaram meu livro sem minha permissão, jogaram na lama, rasgaram ele… Eu agi sem pensar. Eu só queria que parassem.

    — Não é assim que se resolve as coisas. — cortou a voz do pai como uma lâmina. — Você poderia ter matado aquele garoto, já pensou nisso? Um choque um pouco mais forte ou no lugar errado seria fatal.

    — Eles sempre zombam de mim! — insistiu ela, com a garganta apertada. — Sempre zombavam de mim. Eles faziam isso todo dia comigo. Eu não aguentava mais… Me desculpa, tá?

    Brigitte se sentia culpada, arrependida, não por ter machucado Bastien, mas por tudo o que estava passando no momento. Se ela pudesse voltar no tempo, não teria impedido o soco, apenas teria se certificado que Denis, Bastien ou Jules não iriam denunciá-la.

    Odile trocou um olhar breve com o marido, incerta. Parecia querer dizer algo, mas se conteve.

    — Você tem que aprender a se controlar. Controlar seus poderes. — disse Eric. — E, sinceramente… talvez seja melhor você parar de usar essa maldita Alma.

    Aquela frase caiu como um soco no estômago. Brigitte ficou boquiaberta. Completamente sem reação. Sentiu que, se respirasse mais fundo, podia desabar em lágrimas. Seu pai, seu próprio pai, abertamente falou para ela abrir mão de seu poder. Abrir mão de seu sonho.

    — Mas… mas eu sou uma Akitina… — protestou, com a voz falhando, apertando a calça. — É isso o que eu sou! Eu jurei usar a minha Alma pra proteger os outros!

    — E por acaso você protegeu o Bastien? — retrucou o pai, dando um olhar afiado para a filha. — Isso não é uma bênção, Brigitte. É um fardo. Um risco. Pra você e pros outros da vila.

    A garota olhou para a mãe, esperando que ela a defendesse. Mas Odile apenas abaixou os olhos, para o colo, apertando as mãos.

    — Só queremos proteger você… — murmurou. — E proteger os outros também…

    — Proteger… de mim? Vocês têm medo de mim?

    O silêncio respondeu por eles. Foi pior, doeu mais do que qualquer resposta. Aquilo destruiu o coração de Brigitte. Sabia que todos da vila tinham medo dela, mas não esperava que até mesmo seus pais fizessem parte desse grupo. 

    Eric se levantou, empurrando a cadeira para trás com um arrastar seco.

    — Você vai prometer. Agora. — disse ele. — Prometer que nunca mais vai usar sua Alma. Nem para treino, nem para nada. Para o bem de todos.

    Em resposta, Brigitte também se levantou, derrubando a cadeira, fazendo o impacto forte ecoar pela casa.

    — Eu não vou prometer isso! — gritou ela. — Eu sou uma Akitina. Eu recebi esse dom… Isso é parte de mim!

    — Se é parte de você, então esconda! — gritou o pai de volta. — Finja que não existe! Porque se continuar desse jeito, mais cedo ou mais tarde você vai machucar alguém de verdade. E aí… não vamos poder te proteger.

    Brigitte olhou para os dois. Odile estava quieta e com os olhos cheios de lágrimas. E Eric, continuava sério e implacável, decidido.

    Um nó se formou em sua garganta. Algo se rompeu ali, de forma irreversível. Ela conseguia sentir isso em seu peito. Algo despedaçando dentro de si. Confiança.

    Sem pensar duas vezes, correu até a porta da frente. Atrás dela, ouviu a mãe chamando seu nome, mas não parou. Não conseguia parar. Empurrou a porta com força e saiu correndo para a noite fria, chorando a cada passo que dava. O frio cortava seu rosto, mas doía menos que aquelas palavras.

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