Índice de Capítulo

    O chão cedia um pouco sob os fortes passos das botas, com respingos de barro subindo a cada passada. O velho estava a poucos metros de distância. De costas. Brigitte aproveitou a oportunidade: deu uma forte pisada no chão, pulou do tronco e desferiu um golpe lateral com o bastão de madeira. Estava prestes a acertar Leon… Mas quando percebeu, ele já não estava lá.

    Em um piscar de olhos, ele agora surgia mais adiante, como se a clareira tivesse deslizado debaixo dele. Estava com as mãos afundadas nos bolsos do sobretudo, com uma postura de quem passeia tranquilamente — não de um lutador forte. Sem olhar para trás, soltou:

    — Você vem me atacar ou não?

    Brigitte aterrissou no chão novamente, derrapou meio passo e precisou de duas respirações até entender o que havia acontecido.

    — Como…? Como você se desviou de mim?! Você nem se mexeu!

    Leon enfim se virou para ela, exibindo um olhar convencido, as rugas dos olhos marcavam um “eu avisei” implícito.

    — Ou foi você que não conseguiu acompanhar minha velocidade. — terminou ele dando um sorriso presunçoso como provocação.

    Brigitte o encarou, bufando de preocupação. O sol mal tinha subido no céu e ela já sentia um pressentimento ruim. Tinha o pressentimento de que não iria acertá‑lo nem uma vez naquele dia.

    Apertou os dentes com força e avançou de novo. Desta vez, deu um golpe alto, depois um corte baixo, sequência em diagonal, tentando acertá-lo a todo custo.

    Seus golpes eram inúteis, sempre soltando assobios entre cada ataque — um “vupt” irritante. Leon sempre se inclinava ou dava meio passo para o lado antes do bastão encostá-lo. Seus movimentos eram curtos e silenciosos, quase preguiçosos e ainda assim, ele desviava de tudo, ela por outro lado só acertava vento. 

    — Você é velho demais pra correr assim! Como é que faz isso?! — disparou Brigitte, já irritada.

    Leon riu alto, mostrando os dentes, divertindo‑se abertamente com a indignação da garota.

    — HAHAHA! Você é uma graça! Mas tenho que admitir: tenho um truquezinho na manga.

    Tirou as mãos do sobretudo e ergueu a direita, como se segurasse algo invisível.

    Vronti Mundia. Minha Bênção. Um presentinho antigo que me deixa… um pouquinho mais rápido que o normal. — gesticulou ele, como se houvesse algo minúsculo entre os dedos.

    Antes que Brigitte piscasse, ele sumiu — ou melhor, virou um borrão no ar — e reapareceu do outro lado da clareira, sentado em uma pedra. Estava com o cotovelo na coxa e o punho sustentando o queixo.

    — Espero que isso não te atrapalhe no treinamento de hoje.

    — “Só um pouquinho mais rápido”? — Brigitte franziu os olhos. — Isso não é só “um pouco mais rápido”, é MUITO mais rápido! Claro que vai me atrapalhar no treinamento, seu velho trapaceiro!

    — HAHAHA! — Leon bateu a mão no joelho. — Você tem que aprender a trabalhar com o que tem. Reclamar não vai fazer você encostar em mim.

    Brigitte roeu os dentes com mais força que antes, sentiu o sangue pulsar nos dedos. Estava com raiva, com raiva de falhar no seu primeiro dia de treinamento. Mesmo assim, sabia que Leon tinha razão, ficar reclamando não iria fazer ela passar no teste, tinha que agir.

    A garota ajustou a pegada no bastão, baixou o centro de gravidade e deu novamente uma arrancada em direção à Leon, agora mais furiosa que nunca.

    — NGAAAH!!!

    ***

    O sol agora estava alto, tingindo de dourado as bordas das folhas, e lançando sombras compridas no chão entre raízes. Já era fim de tarde. Brigitte não sabia como, mas havia passado o dia inteiro ali, entre tentativas, tropeços e frustrações. Atacou Leon de todos os jeitos que estudou — e de vários que inventou no desespero. Fingiu um tropeço como distração, lançou o bastão em direção ao velho como lança, até mesmo tentou fazer um ataque surpresa saltando de um tronco caído. Nada funcionou.

    — Olha o ombro antes de bater — disse Leon, como quem comenta a previsão de chuva. — Você anuncia o golpe quando gira o ombro.

    — Eu… não… fupt… anuncio nada! fupt… Grrrr!

    — Anuncia, sim. Também deixa o calcanhar direito plantado. Não faz movimentos desnecessários. Sua base te denúncia muito.

    Brigitte tentou corrigir a base. Falhou. Não conseguiu se manter firme. Tentou encurtar a distância e em outro avanço. Falhou. Leon apenas se moveu para o lado, como se aquilo fosse nada para ele — o que parecia ser bem verdade.

    — E o olhar. Para de mirar o meu rosto. Mira no meu peito. O corpo todo passa pelo peito — recomendou, desviando de mais um ataque como se afastasse um mosquito.

    — Se você… fupt… parasse de sumir… o tempo todo… fupt… ajudava!

    — Se eu parar de sumir, não é treino, é caridade. E você não quer caridade, disso eu tenho certeza.

    A cada tentativa, seus braços ficavam mais pesados. Mais dor surgia nas panturrilhas. O bastão já começou a escorregar pelo suor e falta de forças. Ainda assim, não parou nem por um minuto, continuou insistindo.

    Descobriu que, se respirasse durante os golpes, o bastão ficava mais firme. Descobriu que, se fingisse mirar a cabeça, poderia baixar a arma improvisada no último instante para as costelas, um falso alvo — e, mesmo assim, Leon não estava lá quando o golpe chegava.

    Em determinado momento, Leon deixou passar sob o sobretudo uma correção minúscula: o joelho cedeu um centímetro a mais. Brigitte viu. Atacou nesse lado. Por um instante achou que ia, enfim, tocar nele. Por um instante, acreditou. O bastão assobiou rente ao tecido escuro. Nada.

    — Quase — comentou Leon. — Lembre-se disso: “quase” é o primeiro degrau do “foi”.

    Brigitte respondeu com um resmungo sem consonantes. Continuou até que as pernas não aguentaram mais. Ela tombou de joelhos, depois as costas e por fim caiu de lado, deixando a bochecha encostar na grama fria.

    O coração parecia bater no pescoço. A respiração raspava na garganta seca. Até mesmo uma risada cansada escapou da boca, não sobrou forças nem para sustentar a frustração.

    Droga…

    Foi então que Leon caminhou até a mochila encostada sob uma árvore, vasculhou-a com a naturalidade de quem já previu tudo aquilo desde a primeira estocada. Voltou para Brigitte com um pequeno embrulho de pano. Sentou ao seu lado — não muito perto, não muito longe — e esperou a respiração dela achar um ritmo mais equilibrado.

    — Aqui — disse, colocando o pacote no colo da menina. — Pão de castanha com um pouco de presunto curado. Sabia que você iria ficar assim no final do dia, então resolvi trazer isso pra você.

    Brigitte, teimosa até no chão, pagou o bastão e, com as mãos trêmulas, empurrou‑o na direção da canela do velho, em um golpe que mais parecia um toque de uma borboleta.

    — Te… acertei… — sussurrou, sorrindo torto, ainda ofegante.

    Leon olhou para o galho batendo molemente na sua perna e soltou uma gargalhada abafada.

    — É, acertou sim. Mas é tarde demais, jovem cavaleira. O inimigo já conquistou o castelo.

    Quando a madeira tocou a carne do velho, as forças se esvaziaram por completo e seu braço caiu novamente no chão. Brigitte riu da situação, uma risadinha rouca, cansada e genuína. Fazia tempo que ela se sentia tão viva.

    Leon desembrulhou o tecido e colocou o pão com presunto curado sobre seu colo. O aroma de nozes tostadas e fumaça salgada subiu no ar, acordando o estômago de Brigitte, que respondeu com um ronco sem vergonha.

    — Vai, coma — disse ele, gentil. — Primeira regra de quem quer ser forte: nunca lute de barriga vazia.

    Ela não discutiu. Sentou devagar, aceitou o pão, deu a primeira mordida com força e fechou os olhos por um segundo, saboreando cada pedaço como se fosse a melhor refeição do mundo — e talvez, naquele momento, fosse mesmo.

    Enquanto comia, ajeitou uma mecha de cabelo grudada de suor na testa. O corpo inteiro doía em lugares que tinham e não tinham nome. Mesmo assim, uma satisfação estranha vibrava por baixo das costelas — não o choque, não a Alma, mas algo tão simples quanto um “eu tentei”.

    Leon acompanhou o céu entre as árvores. Viu traços de amarelo e um começo de vinho surgir na linha do horizonte. Já era o final de tarde.

    — Você foi bem hoje — comentou, quase de passagem. — Tentou, caiu, tentou de novo, depois tentou mais ainda.

    Brigitte mastigou mais devagar, ouvindo.

    — É assim que começa qualquer coisa que vale a pena — ele continuou. — Não com talento, mas com persistência.

    Terminou ela, limpou as mãos na calça, olhou para o bastão largado e, depois, para as próprias mãos, tremendo menos do que antes. Um pequeno sorriso apareceu no canto da boca, discreto e teimoso.

    — Então… amanhã tem mais? — perguntou, meio brincando, meio temendo a resposta.

    — Amanhã, depois de amanhã, depois depois de amanhã… — Leon contou nos dedos, paciente. — Vamos treinar até você estar pronta para se tornar uma cavaleira. Para se tornar uma heroína. E isso não acontece rápido.

    Eles ficaram um tempo em silêncio. Um silêncio confortável. A dor no corpo seguia ali, mas o peito, pela primeira vez em muito tempo, não doía do jeito ruim. Era outra dor, não de tristeza, não de solidão, mas sim, uma outra dor, uma que valia a pena sentir. Uma dor que avisava que algo estava sendo construído.

    Leon ficou de pé, batendo de leve no ombro de Brigitte.

    — Vamos. Te levo até a beira da floresta. Depois disso, você sabe o caminho.

    Brigitte assentiu, inspirou fundo e, com algum esforço, se pôs de pé. As pernas pareciam duas colunas bambas que se sustentavam por algum milagre. Ela deu um passo, dois, sentindo o corpo reclamar, e riu de si mesma.

    — Parece que fui atropelada por um carro de feno.

    — Se serve de consolo, isso foi só o aquecimento… — disse Leon, sério por meio segundo, antes de deixar escapar um sorriso. — Brincadeira. Quer dizer, mais ou menos.

    Ele pegou a mochila da garota e a própria com uma facilidade quase ofensiva — como se não pesassem nada — e a lançou as duas no ombro. Caminharam lado a lado, sem pressa. A claridade ia se desfazendo atrás deles, e a trilha escurecia em azul e negro.

    — Mestre… — arriscou Brigitte.

    — Hm?

    — Quando você usa sua BençãoVronti Mundia… onde eu sei pra onde você vai?

    — Esse é o ponto: você não consegue saber. — disse ele, olhando para a trilha. — Por isso mesmo você precisa analisar onde eu posso estar. Olha o quadril, ouve o som no ar… Se treinar o ouvido, ganha meio batimento de vantagem. Meio batimento é uma vida.

    — Tá. E… quando eu ficar forte o bastante pra te acertar?

    — Quando esquecer que quer me acertar. E só fizer o certo. O acerto vem como consequência.

    Brigitte processou em silêncio, abrindo espaço para as palavras se fixarem na mente. O caminho parecia mais curto do que na ida e a cada passo, a exaustão diminuía.

    Na borda da floresta, onde a trilha se dividia entre a sombra e o campo aberto, Leon parou. Entregou a mochila a Brigitte. Ela vestiu as alças nos ombros, sentiu um peso forte, mas não insuportável.

    — Te vejo amanhã. Tenha uma boa noite. — disse ele.

    — Tenha uma boa noite também.

    — Ah, e vê se toma café antes de vir.

    — Com toda a certeza! — respondeu ela, sorrindo.

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