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    Ansiosa e preocupada, ela pegou a mochila e decidiu ir até a casa de Leon. Caminhou pela estrada de terra enquanto a floresta ficava para trás, abrindo espaço para pequenas colinas que subiam e desciam como ondas imóveis.

    A cada passo, apertava as alças da mochila. Uma parte dela esperava vê-lo surgir a qualquer instante, rindo alto, dizendo “pegadinha!” ou “duas horas me esperando. É um recorde!”. Mas a estrada seguiu vazia, e o silêncio cresceu até se tornar sufocante.

    Finalmente chegou à casa do mestre. Por um momento, ficou de frente para a porta, parada. O coração batia forte, não de cansaço, mas de medo. Medo do que iria encontrar, medo do futuro. O silêncio ali era mais pesado do que qualquer treino, como um fardo de feno esmagando seus ombros.

    Brigitte respirou fundo, ergueu o punho e bateu contra a madeira. Toc toc… Nenhuma resposta… Ela esperou. Então bateu outra vez, mais forte… Nada.

    O ar parecia grosso, difícil de respirar. Com a mão trêmula e o coração disparado, empurrou devagar a maçaneta. Estava destrancada. A porta rangeu um pouco quando abriu, deixando-a entreaberta enquanto olhava de relance para dentro interior.

    — Leon…? — chamou, com a voz presa na garganta.

    O interior estava escuro e o cheiro específico que só existia na casa de Leon — uma mistura de mistura de couro, fumaça e mofo — estava mais fraco. O feixe de luz da porta iluminou o sofá pequeno, coberto por um cobertor de lã grossa. Ali, deitado, estava um homem velho, grande porém frágil, era Leon, que quase não cabia no móvel. As pernas compridas estavam dobradas de lado. A barba parecia maior. O rosto, antes firme, agora parecia murcho. E a respiração pesada e irregular, como se cada movimento do peito fosse uma batalha.

    Ao ver o mestre naquele estado, Brigitte não pensou o que faria em seguida, apenas agiu por instinto. Correu até ele, tropeçando nos móveis, com o tapete amarelo e preto abafando seus passos apressados.

    — Leon! — ajoelhou-se ao lado dele, segurando a borda do sofá. — Por que você tá assim? O que aconteceu?

    Os olhos do velho se abriram lentamente, pesados como pedra. Ao ver a silhueta com dois extensos rabos de cavalo, um sorriso surgiu em seu rosto, fraco, mas sincero.

    — Achei que fosse demorar mais… — murmurou, com voz baixa e fraca.

    Brigitte pegou a mão dele sem pensar. Estava frágil o bastante para que o vento pudesse parti-la e fria, tão fria que ela se perguntou como ainda podia haver vida ali. O peito dela afundou no medo e na tristeza.

    — V-você está doente… muito doente. — disse, engolindo o nó na garganta. — A gente precisa ir até a vil- não. Eu vou chamar o Bernard… ou alguém da vila que possa te ajudar, q-qualquer pessoa.

    Leon balançou a cabeça devagar, em negação, um gesto que parecia exigir todas as forças.

    — Não adianta… — fechou os olhos por um instante, respirando fundo. — Meu velho corpo já deu tudo o que tinha… agora ele só quer descansar…

    As palavras atravessaram Brigitte como uma lâmina. A boca dela se abriu, tremendo, mas nada saiu. Mordeu o lábio com força, abaixando a cabeça para esconder os olhos marejados.

    — Não fala assim… — implorou, com a voz falhando. — V-você ainda tem muita coisa pra fazer. Ainda nem viu… eu… eu ficando forte de verdade.

    Leon soltou uma risada rouca, abafada no peito, que logo virou duas tosses pegajosas.

    — Mas eu vi, sim, Brigitte… — disse, entrecortado. — Eu vi você crescer… Vi você quebrar as correntes que tentaram te prender… Vi você ser mais forte do que eu jamais fui.

    Brigitte apertou a mão dele com mais força, como se quisesse impedir o tempo de passar. E era isso que ela queria no fundo, ficar estagnada naquele momento para sempre, porque se o tempo passasse, sabia que não seria agradável.

    — Mas isso foi tão rápido… — murmurou, trêmula. — Parece que… começou ontem no treinamento. Eu ainda não tô pronta para ficar sozinha…

    Leon abriu novamente os seus olhos azuis cansados. Cada piscada parecia arrancar-lhe mais de sua vida.

    — Nunca estamos prontos para nos separarmos de quem importa… — sussurrou. — E é por isso que levamos essas pessoas especiais conosco… Dentro de nossas memórias… Dentro de nossos corações. — com esforço, apontou para o peito de Brigitte.

    O silêncio que caiu depois foi denso, até que o velho cavaleiro puxou um ar mais longo, quase um suspiro.

    — Quero te dar uma coisa… Um presente de despedida.

    — Um presente…?

    Brigitte o encarou, sem entender, com lágrimas rolando pelo rosto. Leon esticou o braço trêmulo e tocou o pulso dela. A grande mão, envelhecida, fechou-se com esforço em torno da pele da jovem.

    De repente, ela sentiu algo. Um calor diferente atravessou sua pele, como ondas profundas que vinham de muito longe tocassem sua carne. Não era choque, não era força bruta. Era uma vibração contínua, antiga, como o tambor invisível de um coração que não era o dela.

    Brigitte arfou. O calor se espalhou dos dedos das mãos até os dos pés, fundindo-se a algo dentro dela.

    — Eu… te passei a minha Bênção. — Leon disse quase em sussurro. — Ela é sua, agora.

    Ela piscou, sem acreditar. Nunca soube como Leon havia recebido sua própria Bênção, ele nunca contou essa parte da história — mas, naquele instante, Brigitte imaginou que tivesse sido em uma situação parecida à dela, entre dor e despedida. Aquela chama antiga não era apenas um poder, era uma confiança depositada nela. Apertou o pulso, como se pudesse guardar aquilo no fundo do coração para sempre.

    — Leon…

    O velho soltou uma risada muito fraca, quase inexistente.

    — Agora você pode correr… até o mundo acabar, se quiser. — brincou ele. — Eu quero te fazer um pedido, Brigitte… Pode considerar isso como seu último teste…

    Brigitte ergueu a cabeça. Os olhos ardiam, mas se fixaram nele com extrema atenção, não querendo perder nenhuma palavra, não podia se deixar fazer isso. Leon respirou fundo, puxando as forças restantes do pulmão para continuar.

    — Quero que você vá… — disse, sereno. — Saia dessa vila… Desafie o mundo… Veja com seus próprios olhos o que existe além dessas árvores… Afinal… esse lugar é pequeno demais para alguém tão grandiosa como você…

    Brigitte apertou o cobertor que cobria Leon. Não queria aceitar aquilo. Não queria aceitar o futuro. Ela queria tempo. Precisava de mais tempo. Tempo ao lado de seu mestre. Mas era inútil clamar por isso, nada iria fazer seu desejo se realizar.

    — Mas… e você?

    Leon sorriu de leve.

    — Meu caminho já acabou há muito tempo… Mas, o seu está só começando… Se ficar aqui tudo o que você, que nós passamos, terá sido em vão…

    Ela virou o olhar para baixo, sufocada, incrédula, negando a realidade opressiva caindo sobre si.

    — Eu… não sei se consigo sozinha.

    Leon fechou os olhos por um segundo, como se estivesse buscando forças para dar sua última lição.

    — Você nunca vai estar sozinha… Eu estarei com você em todo lugar que for, dentro de suas memórias… E se o paraíso existir mesmo… estarei te observando lá de cima. — terminou ele, sorrindo.

    Brigitte sentiu algo apertar dentro dela. Uma vontade de gritar, de se jogar no chão e dizer que não queria, que não podia. Mas também sentiu outra coisa: uma pequena chama, tímida, mas viva, sendo passada de uma tocha para outra

    Leon moveu a mão, com esforço, e apontou para a porta.

    — Vá… Conheça cidades… Ajude pessoas… Seja a heroína que nasceu para ser… E, um dia, volte… volte e me conte todas as suas aventuras…

    Entre lágrimas, Brigitte deixou escapar uma risada curta e trêmula, mais de nervosismo do que de humor. Não havia nada de engraçado naquilo, mas a ironia do velho ainda a fazia reagir, como se o corpo dela risse sozinho, sem pedir permissão ao coração.

    — Você fala como se fosse estar aqui daqui a anos.

    — Eu estarei, Brigitte. — disse ele, firme o bastante para soar verdadeiro.

    Brigitte riu outra vez, um som rouco e breve que logo se partiu em um soluço. O riso se desfez, engolido pelo começo de um choro que ela já não conseguia conter. Baixou os olhos, incapaz de sustentar o olhar do mestre, encarar a verdade era doloroso demais.

    — Seu mentiroso… — disse, com a voz afinando.

    Leon apertou a mão dela uma última vez, depois deixou-a escorregar. Os olhos se fecharam, exaustos demais até para sorrir.

    Brigitte ficou imóvel por um instante, como se o tempo tivesse parado. Então, o corpo dela cedeu. O choro veio, sacudindo os ombros, arranhando a garganta.

    Ela agarrou o cobertor, afundando o rosto nele com força, como se pudesse segurá-lo no mundo só por mais um pouco, só mais um instante. A dor queimava. Não era só tristeza, era pior que isso. Era como se algo tivesse sido arrancado de dentro do peito à força. Ela sentiu dor. Ela sentiu perda.

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