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    Um pouco afastados, escondidos entre a parede de uma casa, cinco figuras observavam a cena em silêncio. Eram rostos familiares, já não mais crianças, mas jovens que haviam crescido junto de Brigitte: Clarisse, Céline, Alix, Louane e Étienne.

    — Ela vai mesmo embora. Deixar a vila toda pra trás… — disse Céline, com a voz baixa, abraçando os braços. — Eu não sei como ela consegue fazer isso.

    — Ah, não é tão difícil assim. — Alix respondeu, com um sorriso entre irônico e triste. — Basta ser mais teimosa do que todo mundo junto. Isso, ela sempre foi.

    Clarisse bufou, desviando os olhos.

    — Não tem nada a ver com teimosia. É… é só sorte. Afinal, ela tem uma Alma. Não vale a pena ficar aqui. É um grande desperdício.

    — Sorte? — disse Louane, a mais nova, levantando a sobrancelha e cruzando os braços. — Isso é simplificar muito as coisas. Não importa ela ter ou não uma Alma, ela continuou seguindo aquele sonho bobo, mesmo com a gente sendo babaca com ela…

    Houve um silêncio breve. Não havia nada que pudessem dizer. Se sentiram profundamente culpados naquele instante. Céline mordeu o lábio, hesitante, e falou:

    — Eu acho que devíamos… pedir desculpas pra ela.

    — Pedir desculpas como? — Clarisse rebateu na hora, o tom mais alto do que pretendia. — “Desculpa por anos chamando você de aberração”? Você acha que isso vai mudar alguma coisa agora? Que ela vai perdoar a gente? Principalmente eu? — disse, dando um suspiro. — O que a gente fez foi imperdoável. Não acho que ela vai perdoar a gente…

    — Talvez não. — retrucou Céline, firme pela primeira vez. — Mas pode mudar a forma como ela se lembra da gente.

    Étienne, que até então apenas observava em silêncio, falou baixo, sem olhar para nenhuma delas:

    — Eu só acho… que ela nunca precisou das nossas desculpas. Ela cresceu sem a gente, e mesmo assim… olha onde está.

    As palavras dele pairaram no ar. Alix coçou a nuca, constrangido, e Louane suspirou fundo, incapaz de discordar. Aquela parecia ser a verdade, mesmo com tudo o que Brigitte passou, ela nunca deixou de ser a garota sonhadora que foi no passado. Ali, todos se questionaram se pedir desculpas mudaria algo, se eles mereciam isso de fato.

    Clarisse mordeu o lábio, sentindo a garganta apertar.

    — Eu… eu fui horrível com ela. — confessou, tão diretamente que surpreendeu até a si mesma. — Sempre achei que ela tinha tudo, uma Alma, coragem… e eu? Que não ia ter nada, que ia ser ninguém. Eu tinha inveja, foi por isso que tratei ela daquele jeito.

    Os outros a olharam em silêncio. Céline fez menção de se aproximar, mas Clarisse ergueu a mão, afastando qualquer gesto de consolo.

    — Eu sabia que era errado, sabia desde o começo, mas mesmo assim… continuei. Eu não queria que ela fosse melhor que eu. Queria que ela ficasse no mesmo buraco que eu. E agora… olha só. — seus olhos marejaram, mas a voz saiu firme. — Ela vai embora daqui. Meu plano não deu certo.

    Louane desviou o olhar, desconfortável. Étienne apenas abaixou a cabeça, sem saber o que dizer. Foi Alix quem quebrou o silêncio. Olhando em volta, percebeu algo.

    — Ué? Cadê o Bastien?

    Todos se viraram quase ao mesmo tempo. O espaço onde ele estava estava vazio.

    — Ele tava aqui agora há pouco… — murmurou Céline.

    Clarisse enxugou rápido os olhos, tentando esconder a emoção.

    — Esse idiota…

    …ouviu uma voz conhecida chamando:

    — Ei!

    Ela parou, quase contra a própria vontade. Aquele tom — nem grave, nem agudo, sempre um pouco hesitante — fez sua mente se revirar nas memórias. Virou o rosto devagar e lá estava ele. Bastien.

    Estava mais crescido, mas ainda era inconfundível. O cabelo continuava bagunçado, rebelde contra qualquer tentativa de ordem. As sardas ainda decoravam o rosto, e o jeito desengonçado de ficar parado, mãos enfiadas nos bolsos do colete escuro, entregava que ele nunca soube se comportar em público. Estava com o mesmo ar indeciso de sempre, como se não soubesse se deveria estar ali, mas, mesmo assim, estava.

    — Eu… — ele começou, pigarreando. — Eu vi você aqui. Quer dizer, vi de longe. Não que eu estivesse te seguindo, só… estava passando e…

    Brigitte cruzou os braços, com a surpresa se transformando lentamente em raiva.

    — Desembucha, Bastien. O que você quer?

    Ele ficou imóvel por um segundo. Respirou fundo enquanto coçava a nuca como fazia quando estava nervoso.

    — Tá. É o seguinte… eu queria pedir desculpas.

    As palavras ficaram suspensas no ar. O sol pareceu brilhar mais forte e até o vento cessou, como se o mundo inteiro tivesse parado para ouvir a resposta de Brigitte. A garota ergueu uma sobrancelha.

    — Desculpas? Pelo quê?

    — Ah, vá! — disse, fazendo uma careta. — Você sabe. Os apelidos idiotas, as brincadeiras sem graça, as cartas te chamando de monstro…

    — Só isso? — inclinou o rosto, afinando os olhos.

    Bastien hesitou por mais um instante. O silêncio pareceu ficar mais pesado. Ele desviou o olhar, chutou o chão com a ponta da bota, depois voltou a encará-la.

    — E… por ter estragado seu livro. Aquele de capa azul, com os desenhos à mão.

    Brigitte piscou, surpresa. Não esperava que ele lembrasse daquilo. Ele pareceu tão indiferente com a obra, não seria difícil de imaginar que fazer aquilo foi nada para ele.

    — Você se lembra disso?

    — Eu lembro de tudo. — ele suspirou. — Eu te irritava porque… eu tinha inveja. Da sua determinação, do jeito que nunca desistia de nada. Eu nunca tive isso. E também… porque todo mundo falava que o padre só gostava de você. Eu ficava com raiva. E… fiz aquelas coisas.

    Agora sobrou apenas o som da praça ao longe. Um rangido de rodas de carroça e um sino que balançava em um varal de roupas.

    Brigitte não respondeu de imediato, apenas o observou. Bastien parecia menor agora. Menor do que quando brincava com ela. Menor do que quando a caçava somente para zombar dela a todo momento. Era como se o peso daquilo ainda estivesse em cima dos ombros dele, anos depois.

    — Eu chorei o resto da tarde por causa daquele livro. — ela disse com a voz baixa.

    Ele coçou a nuca outra vez, nervoso, como se ao fazer aquele gesto, as palavras que precisava surgissem na mente.

    — Eu sei. Se eu pudesse voltar no tempo teria impedido eu mesmo de ter feito  aquilo.

    Brigitte deu um passo à frente. Depois outro. Ficou diante dele, a poucos centímetros, analisando seu rosto. Bastien se enrijeceu, talvez esperando um sermão ou até um soco. Em vez disso, ela inclinou-se levemente e, em um gesto rápido, estalou um tapa suave em sua testa. Tap!

    — Aí! — ele exclamou, levando a mão à testa. — Porquê fez isso?!

    Brigitte deu um meio sorriso, satisfeita com o merecido golpe.

    — Agora estamos quites.

    — Quê?! — ele arregalou os olhos. — Você já me deixou com o rosto paralisado por semanas e agora isso?! Eu já pedi desculpas, poxa!

    Brigitte deu de ombros, virando-se de costas novamente.

    — Considere isso juros acumulados.

    — Juros?! — ele retrucou, indignado. — Que tipo de justiça maluca é essa?

    A garota virou o rosto para trás, apontou para o próprio peito com o polegar e deu um grande sorriso.

    — A de Brigitte d’Alzen Akitna!

    Ele bufou, cruzando os braços, mas não conseguiu esconder o riso que se formava.

    — Você é impossível… — murmurou. Depois levantou a voz: — Mas vê se não desaparece do mundo, tá? A gente ainda tem uma partida de cartas inacabada. Você fugiu antes de terminar.

    — Na verdade, eu que te deixei ganhar.

    — Mentira deslavada!

    Ela sorriu de canto.

    — Então me prove um dia.

    O silêncio voltou. Só que agora não era pesado, nem doloroso. Era um silêncio leve, como uma promessa guardada no ar.

    Bastien ficou parado na estrada, olhando-a se afastar. Brigitte ajustou a mochila nas costas e retomou os passos rumo ao portão. Estava feliz que Bastien se desculpou, isso significava que ele tinha mudado e não faria mais o que fez com as outras pessoas. Aquele foi seu primeiro ato como heroína: mudar Bastien — com um soco bem dado.

    Quando atravessou o arco de madeira que marcava a saída da vila, não se virou de novo. Mesmo assim, junto com o calor do sol batendo no rosto, sentiu o olhar do antigo colega, dos pais e dos poucos que ainda a observavam. E, pela primeira vez, não se sentiu pequena nem deslocada.

    Sentiu-se pronta. Pronta para sua jornada. Pronta para viver.

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