Índice de Capítulo

    Depois de ter dado o remédio, o homem voltou a se apoiar na parede, braços cruzados e olhos semicerrados, como se esperasse algo dela. Por um instante, o quarto mergulhou no silêncio. No fim, foi Brigitte quem quebrou a quietude:

    — Seu sotaque é estranho. — disse, franzindo a testa. — A gente tá muito longe da capital?

    O homem inclinou a cabeça, curioso, com as orelhas de raposa se mexendo levemente.

    — Qual delas?

    Brigitte piscou, mais confusa do que antes. Pelos seus conhecimentos, Kyndral só tinha uma capital. Será que os livros que trouxe de Luminara estavam errados ou desatualizados? “Se isso for verdade, aquele vendedor me paga!”, pensou ela.

    — Uhm… a cidade de Reiken?

    Ele levantou uma sobrancelha. Parecia que aquela simples pergunta o confundiu de alguma forma.

    — Essa cidade fica em Kyndral, não em Viantel… Por acaso você estava em Kyndral?

    A garota piscou devagar, o coração acelerou um pouco pelo choque. Era como se a realidade estivesse sendo puxada debaixo dos seus pés. Como ela não estava em Kyndral? Seria mesmo possível ter parado em outro país com seu Angra Avatch? Tudo indicava que sim, mesmo que fosse difícil de acreditar.

    — …Certeza que não estamos em Kyndral?

    — Absoluta. — respondeu ele, seco, como se não houvesse qualquer espaço para dúvida.

    Ele se afastou da parede e caminhou até uma prateleira cheia de potes de barro, frascos escuros e panos dobrados. Remexeu alguns, pegando um vidro esverdeado tampado com cortiça. Abriu-o, cheirou rapidamente o conteúdo e balançou a cabeça, satisfeito.

    — Parece que o que você sofreu foi mais violento do que imaginei. — comentou. — Você atravessou vários quilômetros até chegar aqui e mesmo assim continua viva. Minha nossa…

    Brigitte recostou a cabeça contra a parede, em resposta às fortes pulsações na têmpora. O corpo inteiro ainda doía, desde o couro cabeludo até os ossos do pé. Mas agora a dor parecia mais localizada, difusa. Estava aprendendo a se acostumar com ela.

    Como vim parar tão longe…? Niko, Evelyn… onde vocês estão?

    — E como você me encontrou? — perguntou, a voz saindo baixa.

    — Pura sorte. — respondeu o homem, agachado diante da prateleira. — Eu ouvi um barulho alto, como um trovão. Quando fui investigar, encontrei uma trilha enorme de destruição. Árvores caídas, o chão todo marcado, e tudo ainda quente, soltando fumaça. Você estava bem no meio. Não parecia viva, mas resolvi arriscar. Trouxe você até aqui.

    Ele se aproximou da cama com o vidro na mão. O cheiro que escapou era pungente, uma mistura de ervas úmidas e ferrugem. Mergulhou dois dedos na mistura espessa, que tingiram o indicador e médio de verde-escuro.

    — Vou levantar sua camisa. — disse, direto.

    Brigitte estreitou os olhos e se afastou por instinto, desconfiada das intenções do homem-raposa tarado.

    — Não tudo, claro. Só até as costelas.

    Ela hesitou por um segundo, mas assentiu devagar em seguida. Ele se agachou e ergueu o tecido até metade do abdômen, revelando hematomas profundos, manchas arroxeadas que se misturavam com o amarelado da pele em recuperação. O toque foi frio como argila, mas logo veio uma ardência quente que se espalhou em ondas pelo corpo todo. Doía mas não era insuportável.

    — Isso vai esquentar. Queima, mas faz bem. — avisou.

    Brigitte cerrou os dentes, o maxilar rígido ficou, tentando não emitir som algum — embora não aguentasse e soltasse alguns gemidos de dor de vez ou outra.

    — Como é seu nome? — perguntou de repente, mais para desviar a mente da dor do que por curiosidade.

    Ele deu um pequeno sorriso, sem desviar os olhos do que fazia.

    — Alhon. E você?

    — Brigitte.

    As orelhas e a cauda dele se mexeram sutilmente para os lados, mas o olhar permaneceu impassível.

    — Realmente, você não é daqui.

    Quando terminou, abaixou devagar a camisa de Brigitte, limpou os dedos em um pano branco apoiado na cadeira, manchando-o de verde, e se levantou.

    — Certo. Já ajeitei o que dava por fora. Agora falta por dentro. Quer comer algo?

    — Não precisa. — respondeu rápido, orgulhosa. — Tô bem.

    Mas, como se o corpo a enganasse, veio o som: um rugido baixo, traiçoeiro, direto do estômago. Brigitte arregalou os olhos, corando levemente. O que a mente não admitia o corpo implorava.

    — …Talvez só um pouco. — falou, quase sussurrando.

    Alhon soltou um resmungo que lembrava uma risada curta.

    — Uhm, sabia. Vou descer pra pegar o almoço. Não sai daí.

    Antes de sair, olhou por cima do ombro e disse, com ironia seca:

    — Se não quiser esperar, tem água no jarro da mesa. Mas cuidado… pode ter veneno nela, hehe.

    Brigitte mostrou a língua em resposta, mas ele já havia descido a escada de madeira, com os degraus rangendo sob seus passos.

    Sozinha, deixou o olhar vagar até a janela coberta pelo pano grosso. “Evelyn… Niko… vocês estão bem? O que aconteceu no fim daquela luta?” Tentou imaginar como os dois estavam, mas era como tentar agarrar fumaça. Era inútil pensar em algo. Somente suposições sem sentido viriam à mente.

    Pouco depois, Alhon voltou com uma tigela fumegante. O aroma se espalhou pelo quarto, aquecendo até as paredes frias. Brigitte quase salivou só de sentir o cheiro. O homem-raposa deixou a tigela no colo dela, e ela pegou a colher com a mão trêmula — a esquerda, já que a direita ainda estava enfaixada. A primeira colherada foi devorada sem nem sentir o sabor. Só depois da terceira, lembrou que tinha dentes.

    Era uma comida simples: carne de caça — talvez de veado — legumes cozidos e um fundo de raízes. Mas, para quem passou dois dias inconsciente, era um banquete digno de reis.

    Ela comeu em silêncio, concentrada. Alhon, sentado em uma cadeira, apenas tomava café em uma caneca grande, observando-a com um olhar calmo e distante.

    Ainda faltavam algumas colheradas para terminar o prato, mas naquele ponto já se sentia melhor. Não sentindo mais fome, largou a colher dentro da tigela, encostando-se na parede em seguida, já com o estômago aquecido. A pulsação da dor diminuiu, mas não por completo. Ainda assim, algo queimava mais forte em seu peito.

    — Eu preciso ir. — disse, de repente. — Preciso encontrar eles.

    Alhon ergueu uma sobrancelha.

    — Você mal consegue segurar uma colher. Vai mesmo querer sair andando por aí nesse estado?

    — Eu não tenho escolha. — rebateu, firme, mesmo com a voz cansada. — Meus amigos podem estar lá fora, feridos ou até em situação pior. Se eu ficar aqui esperando, posso estar deixando eles morrerem.

    Ele passou a mão pelos cabelos desgrenhados, soltando um suspiro pesado enquanto dava mais um gole na caneca.

    — Ou pode estar indo pra a morte junto deles. Você nem sabe se vai conseguir encontrá-los. Pode ser um esforço inútil.

    Brigitte o olhou com dureza. Os olhos ainda estavam opacos pelo cansaço, mas cheios de convicção.

    — Pode até ser inútil. Mas eu não posso me dar ao luxo de ficar parada. Não depois do que fizeram por mim. Por isso eu tenho que me encontrar com eles o mais rápido possível.

    Por um momento, o olhar dele se suavizou. Mas logo desviou, cerrando os lábios.

    — Pelo menos… espere um pouco mais. — disse. — Até os remédios fazerem mais efeito e suas pernas terem mais força.

    Ela mordeu o lábio, pensativa. A lógica dele fazia sentido. Se Brigitte se movesse agora, os remédios iriam demorar mais para fazer efeito ou nem mesmo fariam e toda aquela dor para se curar teria sido em vão.

    Alhon colocou a caneca em cima da mesa, caminhou até a janela e afastou a cortina grossa. O brilho branco lá fora estava mais agressivo que antes e o vento uivava contra as paredes da casa e as árvores da floresta.

    — Parece que está vindo uma nevasca. Daquelas fortes. Talvez dure o resto do dia. — ele a encarou. — Tem certeza que quer sair?

    Brigitte inspirou fundo, decidida desde o momento que abriu os olhos.

    — Sim.

    Ele segurou o olhar dela por alguns segundos, como se tentasse medir se era coragem genuína ou apenas teimosia. Por fim, soltou a cortina e saiu do quarto em silêncio.

    Sozinha outra vez, Brigitte fechou os olhos. Na escuridão por trás das pálpebras, viu Evelyn sorrindo e Niko lendo um livro. Não sabia se estavam vivos, se estavam perto ou longe. Mas acreditava que sim. Precisava acreditar.

    Virou o rosto para a janela. Do outro lado, a neve já começava a cair, lenta e silenciosa, mas preparando a floresta para o branco absoluto.

    Mesmo assim, no fundo, Brigitte sabia: não importava a dor, a febre ou a tempestade lá fora. Ela iria encontrá-los. Devia encontrá-los.

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