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    A poucos metros dali, viu uma sombra caindo da escada de incêndio de um dos prédios, desabando sobre a neve. O impacto não foi forte, mas havia algo de errado no modo como a figura tombou. Os membros não se esticaram para tentar impedir a queda, nem houve algum reflexo. O ser apenas desabou, mole, como se fosse um cadáver.

    Niko parou onde estava, imóvel. Não sabia como agir. O ar frio ali estava mais pesado que antes. Por alguns segundos apenas ficou olhando a figura, se perguntado se deveria ajudá-lo ou não o ser caído.

    Mas então, em um movimento inesperado e hesitante, o corpo se moveu.

    Primeiro um ombro, que se ergueu com esforço, tremendo. Depois um braço, tentando empurrar o peso do próprio corpo para cima. A cabeça se levantou apenas alguns centímetros da neve, e foi aí que Niko viu seu rosto. Um rosto jovem. Marcado por arranhões, alguns profundos, outros apenas superficiais. A pele era de um tom verde-claro levemente acinzentado, com uma textura que lembrava a de grama viva. Os cabelos, longos e bagunçados, eram verde-escuros, grudados uns aos outros.

    O garoto respirava com dificuldade, cada inspiração saia de seu corpo de maneira irregular. Então os olhos se abriram, lentamente. De cor azul-arroxeado profundo, sem vida e escurecidos pelo cansaço, pela dor e pela proximidade da morte.

    Niko continuou parado. Nunca havia visto alguém daquela raça antes. O instinto dizia para se aproximar, era a coisa certa a se fazer, mas havia algo que o mantinha parado. Uma hesitação que colava seus pés na neve.

    O garoto olhou em sua direção. O encontro dos olhos durou apenas um instante, mas pareceu estender-se mais do que isso. Com um de seus joelho apoiado ao chão e uma perna paralisada, se esforçando para continuar vivo, disse:

    — M-me ajuda… — a voz saiu arranhada, frágil.

    O som de súplica ecoou dentro de Niko de uma forma desconfortável.

    Antes que pudesse fazer qualquer coisa, passos ecoaram pela rua. Pesados e apressados, vindos da mesma escada por onde o garoto havia caído feio. Então, dois homens surgiram. O primeiro era um brutamontes cheio de músculos — tão musculoso que as veias saltavam até sob o tecido do casaco. O segundo era um gordo, com a barriga pressionando o fecho do sobretudo de uma maneira nojenta, mesmo assim não parecia menos perigoso. Eles eram o tipo de gente que ninguém gostaria de se encontrar nesse tipo de lugar, principalmente juntos.

    — Cê tá aí, seu merdinha. — rosnou o musculoso, caminhando até o garoto como se estivesse caçando um animal ferido.

    O garoto verde tentou engatinhar para trás, mas não tinha mais forças. O movimento foi frágil, inútil. Ele ainda lançou um último olhar para Niko, um olhar desesperado, de quem implorava por ajuda à sua última esperança — o garoto chifrido à sua frente.

    Mas em questão de segundos, a luz se apagou. O azul dos olhos dele deixou de implorar. Não havia mais súplica naqueles olhos. Nem resistência. Nem medo. Apenas vazio. Ele simplesmente aceitou seu destino.

    O musculoso agarrou o braço do garoto e o ergueu como se fosse uma boneca de pano. O garoto balançou no ar, sem forças para resistir.

    — Achou que ia sair andando por aí? — o homem apertou o punho em volta do braço magro, fazendo emitir um som de algo se partindo. — Cê não escapa da gente não, ouviu?

    Antes que houvesse resposta, desferiu um soco seco no seu estômago. O impacto fez o ar escapar de seu pulmão em um gemido baixo. O garoto tombou de novo no chão, engasgando, tossindo, quase vomitando, mas sem gritar.

    — Como esse bosta conseguiu sair da cama dopado? — o brutamontes perguntou, cuspindo no chão.

    — É um dríade, seu idiota. — respondeu o gordo, acendendo um charuto com uma calma irritante. O fósforo riscou na escuridão, lançando uma faísca amarelada no rosto suado. — Nenhuma droga pega neles. Nem anestésico. — tragou fundo o charuto e soltou a fumaça pelo nariz, encarando o garoto com indiferença. — Só não exagera, tá? Vai que ele morre.

    O outro riu — um riso abafado e psicopata.

    — Relaxa. Vou dar só uma liçãozinha nele.

    Sem aviso, cravou o joelho no estômago do garoto. O dríade se dobrou, cuspindo saliva misturada a um líquido negro espesso, que respingou sobre o pouco da neve branca no beco. Gemeu baixo, mas ainda assim sem soltar um único grito. Os olhos já não viam Niko. Nem o mundo. Estavam vazios. Totalmente quebrado.

    Niko estava assistindo tudo com os olhos fixos. Suas pupilas estavam contraídas, sua respiração estava mais rápida e o estômago parecia apertado por dentro.

    Não conseguia ver isso sem sentir nada, estava ansioso e principalmente com raiva. Aqueles homens estavam espancando alguém indefeso sem motivos plausíveis. Eram só dois animais nojentos se aproveitando de alguém mais fraco.

    A mão já estava no cabo da pistola, escondida sob o manto. Bastava um movimento. Um disparo, e aqueles dois seres desprezíveis estariam caídos. Bastava um passo adiante e o movimento certo. Apenas isso.

    — E você, chifrudo? — disse o gordo, notando finalmente a presença do albocerno. — Vai ficar se metendo onde não foi chamado também? Dá o fora daqui, porra.

    O mundo pareceu congelar por um instante. Niko fechou os olhos e respirou fundo. Os dedos apertaram o cabo da arma. Mas, no instante seguinte, ficaram mais fracos, e no próximo, soltaram completamente a arma. Ele baixou a mão, desviou o olhar para o chão e recomeçou a caminhada.

    Passou pelos três. Não olhou para trás nem por um momento.

    Atrás dele, os sons desagradáveis continuaram… Outro soco… Outro impacto… O barulho abafado de algo mole sendo esmagado… E um gemido baixo e sem fôlego…

    Niko poderia ter ajudado, mas não fez. Não porque estava com medo, ou porque era fraco demais para fazer aquilo, mas sim porque estava cansado, cansado da dúvida, da proposta da Skarshyn, da pergunta incessante sobre quem ele era. “Aquilo não faz parte da minha história”, ele disse a si mesmo. Não tinha obrigação de se envolver em algo que — como o gordo disse — “não foi chamado”.

    Virou a esquina. Atrás dele, os sons ficavam cada vez menos altos até que pararam completamente. Andou por um quarteirão. Depois outro. No terceiro, o vento começou a bater mais forte, quase arrancando a sacola de livros da mão dele, sempre justificando suas ações. No quarto, ele parou. Sentiu algo em seu peito, algo que acorrentou seu coração.

    — O que eu tô fazendo? — murmurou para si. — Por que eu não ajudei ele?

    As palavras ecoaram na rua vazia. Uma carroça passou por ele, como se fosse uma resposta do mundo. Sem pensar, girou o corpo e começou a correr.

    Apertou a sacola de livros contra o peito, enquanto seus passos afundavam na neve. Durante o trajeto, quase escorregava diversas vezes, mas nunca parando. Nem pensou uma única vez em desacelerar o passo, nem em mais nada, sua única preocupação era em voltar para aquele lugar o mais rápido possível.

    Virou a esquina, voltou pela rua estreita, atravessou as calçadas. O coração batia tão alto que parecia ecoar pelos prédios. Finalmente voltou ao mesmo local de antes, mas agora ele estava sem os bandidos e o dríade. Completamente vazio.

    O chão estava repleto de pegadas bagunçadas, marcas de arrasto e no local onde o garoto foi espancado estava uma mancha no branco da neve, um líquido escuro como tinta. Espesso. Quase negro.

    Niko olhou ao redor, mas não havia nada. Nenhum sinal dos homens. Nenhum sinal do garoto. Só havia memórias de um passado que não podia ser alterado. Aquele garoto tinha pedido ajuda e ele não fez nada por puro egoísmo.

    Ele nem mesmo sabia seu nome.

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