Capítulo 117 - Arrependimento
As tochas do castelo queimavam com uma intensidade anormal naquela noite sem luar, onde as trevas dominaram o mundo por inteiro. No chão, uma névoa roxa e espessa rastejava preguiçosamente, envolvendo as colunas e degraus como se fossem mãos espectrais. E no centro do corredor ao saguão principal, uma trilha de sangue seguia até o trono do último andar, onde uma figura feminina se erguia de forma orgulhosa.
Era Evelyn. Estava coberta por vestes sombrias, uma tiara feita de ossos dos outros heróis derrotados sobre seus cabelos grisalhos. Seus olhos, agora vermelhos como o sangue de um demônio, encaravam os dois heróis à sua frente com superioridade e arrogância. Em sua mão direita, ela empunhava uma espada negra, com detalhes em escarlate, pulsando como se estivesse viva.
— Vocês chegaram tarde demais… — disse ela, com a voz arrastada e exibindo um sorriso sádico no rosto. — O ritual está completo. Evelyn se foi.
Brigitte deu um passo adiante, colocando-se na frente de Niko, com o corpo queimando em fúria e justiça. A espada prateada em sua mão refletia as luzes da sala, e o brasão dourado na empunhadura brilhava: o símbolo da Ordem dos Guardiões Eternos.
— Evelyn, você não é assim! — disse, com a voz ecoando pelo salão, carregada de emoção e peso. — Lembre-se de quem você é!
Evelyn fechou os olhos por um instante… e sorriu. Um sorriso maligno, que deixou à mostra presas pontiagudas. Riu alto, o eco trazendo desesperança a todos que ouviam a gargalhada.
— Ah, acho que vocês ainda não entenderam bem… — ela ergueu a espada até o rosto. — A verdadeira Evelyn se foi. O que resta agora… é Evelilith! A aristocrata demoníaca do leste!
Ela ergueu a mão até a boca, deu um corte no ar com sua arma, e a risada explodiu:
— UHAHAHAHAHAHA-
— Eu não entendi. Por que você virou vilã? — Niko levantou a mão, tímido.
Brigitte fechou os olhos, levou a mão à testa e suspirou fundo.
— Niko… — disse ela em um tom cansado.
— De novo não… — Evelyn cortou a própria cena, interrompendo a risada. Arrancou a tiara da cabeça e colocou-a sobre a mesa. — Você não tá prestando atenção de novo, né?
De repente, o cenário do castelo sumiu como fumaça, revelando o mundo real: uma sala com paredes cobertas por quadros épicos e estantes com dados, miniaturas de madeira e livros de capa dura. Os três estavam sentados ao redor de uma mesa redonda de madeira, coberta por fichas, anotações e pratos ainda sujos de comida.
— Eu te expliquei isso já faz tipo umas três vezes. — Evelyn ajeitou-se na cadeira. — Eu fui infectada no combate anterior pela Lilith, lembra? Aquela demônia de olhos vermelhos. A história é que ela se fundiu comigo e pronto, eu virei uma vilã.
— Mas… por que você aceitou a corrupção? Não dava pra resistir? — Niko inclinou a cabeça para o lado, genuinamente confuso.
— Eu não aceitei. Foi um resultado de falha no teste de Resistência. Eu precisava tirar um quinze e rolei um dois.
— Ah…
Brigitte, com um olhar mais paciente, bateu levemente na mesa para trazer a atenção de volta.
— Gente, foco. Ainda precisamos impedir o culto do Rei Demônio antes que eles sacrifiquem a rainha de Urdinia.
Evelyn se recostou na cadeira e fechou os olhos, voltando ao papel de vilã. Cruzou os braços e sorriu com arrogância.
— Vocês até podem tentar… mas Evelilith já invocou o Dragão das Profundezas! — ela ergueu as mãos exageradamente. — E ele está faminto!
Brigitte pegou os dados no mesmo instante, com os olhos brilhando de empolgação.
— Então vamos ver se ele continua faminto depois que eu cortar o rabo dele fora! Golpe Sagrado: Espada de Ouro!
Ela sacudiu a mão com confiança, jogando os dados na mesa. Os cubos rolaram, bateram na madeira, giraram algumas vezes… e pararam.
Um.
Um silêncio constrangedor caiu sobre a sala. Brigitte congelou, sem reação. Evelyn se escondeu atrás da ficha, tremendo de tanto segurar o riso. Já Niko, coçou a cabeça, genuinamente tentando entender se aquele número era bom ou ruim.
Evelyn então jogou seu próprio dado. Um sete.
— Crítico… — murmurou Brigitte, sem emoção. — De fracasso.
Evelyn explodiu em uma forte gargalhada, quase caindo da cadeira.
— Hahaha! Quando você tentou dar o golpe esqueceu das palavras do feitiço sagrado, o rabo do dragão girou e te acertou com uma rabada tão forte que você entrou direto em estado de morrendo! Hahaha!
— Ah, qual é?! — disse Brigitte se inclinando sobre a mesa, totalmente indignada. — Não tem como eu ter levado tanto dano assim! Eu ainda tinha onze pontos de vida!
— Como você tirou um, o dano aumenta em quatro pontos! E adivinha só? Ficou com três pontos de vida! Hahahaha! — Evelyn respirava entre as risadas.
Niko levantou a mão, tímido.
— Eu posso usar meu feitiço de tempo e… voltar no turno anterior?
Brigitte e Evelyn se entreolharam.
— Niko… — Brigitte começou, calma. — Isso é uma habilidade de nível quinze. Seu personagem é nível três.
— Ah…
— Tá bom. — disse Evelyn se esticando na cadeira. — A gente encerra por hoje. Acho que já traumatizamos o suficiente os heróis do jogo.
— E a mesa. — comentou Brigitte, olhando a bagunça de fichas, migalhas e copos.
Os três começaram a recolher tudo que bagunçaram: as anotações, os sete dados espalhados em diferentes cantos da mesa, o tabuleiro e as miniaturas de madeira. Brigitte guardava as peças com uma única mão, já que o outro braço ainda estava enfaixado sob a manga do casaco.
Quando terminaram, Evelyn levou a caixa de volta para a estante cheia de jogos. Entre os títulos, havia uma estatueta de dragão que chamou a atenção de Niko quando chegaram. Ele a observou de novo — curioso sobre como era o tempo em que os dragões ainda não estavam extintos — antes de seguir as duas para fora da sala.
Na recepção, uma funcionária simpática devolveu as armas ao grupo. Uma grande foice para Niko e uma lança para Brigitte. Ambos guardaram as armas em suas bainhas nas costas.
— Muito obrigada pela vinda. Voltem sempre. — disse a funcionária com um sorriso.
O trio atravessou a porta, e uma rajada gelada os recebeu. A rua, embora quase deserta, estava iluminada por lampiões e pelas vitrines das lojas ainda abertas. A neve refletia as luzes, brilhando em tons quase dourados, tão branca quanto as nuvens.
Sem pressa, eles seguiram pela calçada. Brigitte ajustou a lança nas costas com cuidado, para não puxar o ombro ferido. E Evelyn, distraída, observava os flocos que caíam sobre as lâmpadas, derretendo e sumindo no fogo.
— Sabiam que a neve não é realmente branca? — disse ela de repente, quebrando o silêncio.
Niko virou a cabeça, confuso.
— Como assim?
— A neve mesmo é transparente, mas como os flocos têm um monte de microestruturas internas, a luz entra, reflete por dentro e se espalha em todas as direções. É uma ilusão. A neve não é branca, ela parece ser branca.
Brigitte riu baixo, ajeitando o ombro.
— Gostei da explicação, professora Evelyn.
A elfa fez um gesto exagerado, como quem recebe aplausos invisíveis.
— Ao seu dispor.
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