Índice de Capítulo

    — …Ev-…-el-…

    Uma voz distante ressoava alguma coisa entre as frestas de um mundo branco e vazio. Era uma voz acolhedora, calma e calorosa, quase que maternal. Mesmo não sabendo suas intenções, já era possível deduzir que ela só queria ajudar.

    “Quem é? O que tá acontecendo?”, esses pensamentos foram jogados ao ar por alguém que estava naquele local desconhecido, onde tudo parecia feito de névoa e luz.

    — …A gen-… -ir agora! El-…

    A mesma voz soou de novo, mais alto e nítido que antes. Desta vez, parecia um aviso urgente. O som trouxe um arrepio estranho à espinha de quem ouvia. E, como se a memória tivesse sentido a vibração daquelas palavras, uma suspeita surgiu. Aquela voz… não era desconhecida. Era familiar. Quente. Antiga. Nostálgica.

    — Mãe? — murmurou o ouvinte desconhecido, tão silenciosamente que mal era possível ouvi-lo.

    — Evelyn, você tem que acordar.

    Então, em um piscar de olhos, a névoa se desfez.

    Evelyn abriu os olhos. À sua frente, o mundo real voltava: a estrada, a carroça, a neve e Niko, de perfil, balançando-a preocupado enquanto segurava as rédeas da égua espectral.

    — Esse sonho de novo… — murmurou para si, com algumas partes do rosto congeladas. Passou a mão no rosto, limpou preguiçosamente os flocos de neve que tinham se acumulado em sua roupa e se espreguiçou.

    — Tô acordada. O que você estava falando, Nikoooo~? — bocejou no fim da frase, de forma tão arrastada que parecia ainda sonhar com cada sílaba.

    — A gente chegou em uma fila. Tem umas carroças na frente… o que a gente faz agora?

    Olhando em volta, Evelyn — mesmo com sono — percebeu que estavam parados atrás de seis outros veículos — a maioria era carroças cobertas e uma máquina que se movimentava sem cavalos à frente.

    — Deve ser o pedágio. Deixa que eu resolvo issoooo~ — respondeu com a voz ainda meio confusa de sono.

    Niko puxou da mochila de Evelyn uma garrafa metálica e entregou a ela sem cerimônia. Sem nem perguntar o que era, ela bebeu com naturalidade, ainda meio dormente. Ele imaginou que isso a faria despertar melhor, tirando um pouco de seu sono.

    — Valeu, Niko… espera. Como você sabia que tinha água na minha mochila?

    — Eu… procurei por mais um devaneio — respondeu Niko, encolhendo os ombros. — Desculpa…

    — Agora são trinta cêntimos. — disse Evelyn com a frieza de um agiota profissional, apontando para ele com cara de quem já anotou a dívida na caderneta mental.

    Mesmo tendo cumprido sua missão de acordá-la, Niko saiu no prejuízo.

    — Agora é só esperar chegar nossa vez. Ah, você não tem cartão de identidade, né?

    Niko balançou a cabeça negativamente.

    — Hm. Isso complica as coisas… Kyndral é bem rígido com segurança, especialmente nos últimos dez anos. Provavelmente você vai passar por um interrogatório pra conseguir entrar na cidade.

    — Como é esse interrogatório? E o que acontece se eu não for aceito?

    — Você só vai ter que responder umas perguntas e só isso. E se você não for aceito, só usa sua Alma e atravessa a fronteira ilegalmente. Fácil.

    O tom casual com que ela sugeriu invadir a capital de forma criminosa era tão absurdo que Niko nem sabia como responder. Evelyn dizia essas coisas com a mesma naturalidade de quem escolhe o sabor de um chá.

    Depois de alguns minutos, a carroça dos dois chegou à frente da fila. Um portão gigante bloqueava a estrada. Havia uma entrada lateral para pedestres e uma pequena cabine, onde um homem de aparência cansada — cabelos grisalhos e barba mal cuidada — os observava com um tédio evidente.

    — Estão transportando o quê? — perguntou o operador, com a entonação de quem já fez essa mesma pergunta centenas de vezes naquela semana.

    — Um lufador. Tá aqui a licença de transporte e meu RI. — disse Evelyn, puxando a cortina da carroça e revelando a enorme carcaça do monstro congelado. Em seguida, entregou um papel ao operador, tirado com rapidez da mochila.

    O homem checou os papéis com um olhar técnico, depois passou os olhos de Evelyn para Niko.

    — E a identidade desse aí?

    — Eu n- — Niko ia responder que não tinha nenhum, mas foi interrompido no meio da fala.

    — Esse aí é um vagabundo sem teto e sem emprego. Só deixei entrar na carroça por pena mesmo. — disse Evelyn, com o tom mais debochado e desgraçado que conseguiu.

    Niko olhou para ela com olhos arregalados de incredulidade. Aquilo era real? Tinha mesmo sido chamado de “vagabundo” no portão da capital?

    — Eu não gostei do jeito que você falou isso, Evelyn.

    — Eu menti, mendiguinho?

    Ela soltou um sorriso maldoso, satisfeitíssima com a própria piada que só ele achou de bom-tom.

    Niko bufou. Não adiantaria reclamar. Sabia que a única forma de sair por cima de uma provocação da Evelyn era ignorando — e mesmo assim, era difícil.

    — Nesse caso… preciso que responda este formulário para emissão de um passe provisório. Odeio quando isso acontece… — resmungou o operador, tirando uma folha de papel amarelado e entregando a Niko.

    Niko olhou para o documento com certo desespero. Havia quinze perguntas. Nome completo. Idade. Data de nascimento. Endereço atual. Eram perguntas simples para qualquer pessoa nesse mundo, mas não para ele. Ele não sabia metade das respostas. Como poderia responder o formulário então?

    Não adiantava de nada somente pensar e não fazer. Logo, começou a preencher com calma, suando frio a cada linha. Quando travava, pedia ajuda para Evelyn, que respondia com sugestões questionáveis, mas aceitáveis o suficiente. Na linha do endereço, Evelyn pegou o papel e escreveu de seu jeito com um sorrisinho no rosto.

    Quando terminou, ele entregou o documento preenchido ao operador. Ao ler o papel com atenção, o velho franziu a testa, completamente confuso. Na linha do nome completo, só havia “Niko”. Na idade, “não sei”. Na data de nascimento, um traço. No endereço, em caligrafia visivelmente diferente: “Na casa da linda garota ao meu lado (Rua Emma Ave, Nº14 ap37)”.

    O operador olhou para o papel, depois para Niko, depois para Evelyn. Depois de novo para o papel. Seu rosto era uma pintura viva de desconfiança, frustração, perplexidade e derrota.

    — Vocês estão me zoando? Como você não sabe o próprio nome completo?

    Evelyn suspirou, erguendo os ombros como quem diz “típico”.

    — Ele é amnésico. Esqueceu de tudo. Literalmente tudo. 

    — Isso é verdade, garoto?

    — Eu queria que não fosse… — murmurou Niko, olhando para os próprios joelhos.

    O operador ficou em silêncio. Pegou um livro grosso debaixo da mesa, folheou com velocidade surpreendente e, de tempos em tempos, olhava o papel preenchido por Niko.

    — Ele tá muito sério. — sussurrou o garoto, apreensivo. — Você acha que vou conseguir entrar?

    — Eu sinceramente… não sei. — respondeu Evelyn, cruzando os braços.

    O silêncio durou mais de um minuto. Até que o operador soltou um suspiro sonoro, limpando os olhos em seguida, como se tivesse envelhecido mais uma década só por aturá-los.

    — Tá. Podem entrar. — disse ele, resignado.

    Puxou uma manivela ao lado, fazendo o portão se abrir com um rangido mecânico longo e arrastado. Um caminho livre se abriu para a cidade de Reiken.

    — E não voltem mais! — gritou o operador, irritado e cansado.

    — Pode deixar, senhor! — respondeu Evelyn, animada, como se tivessem acabado de vencer uma prova com alta taxa de reprovação.

    Assim que cruzaram os portões, o clima entre os dois se aliviou. O nervosismo passou. E Niko se sentiu verdadeiramente empolgado. Finalmente, depois de tudo que enfrentaram, estava prestes a conhecer a capital.

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