Índice de Capítulo

    O som de um apito de trem ecoava ao longe, misturado ao ranger metálico dos trilhos. As ruas do distrito de Gerin estavam quase desertas, iluminadas apenas pelos lampiões de luz alaranjada que projetavam sombras distorcidas sobre as paredes. A maioria das lojas já estava fechada, e nuvens de fumaça saíam dos canos nos prédios das fábricas. O vento carregava um cheiro de carvão queimado, ferrugem úmida e água parada — pesado demais para respirar sem desconforto. Era um lugar desagradável, diferente de qualquer local que Niko e as garotas estavam acostumados a frequentar.

    Niko caminhava à frente, liderando o grupo com os olhos fixos no chão, como se houvesse algo escondido nas rachaduras da calçada. Dentro de sua cabeça, as frases dos homens se repetiam em eco: “Linha 06… depósito perto do cruzamento de Gerin… trem de carga… vagão trancado…” Aquilo era tudo que tinham. Não era muita coisa, mas suficiente para que cada passo dele soasse mais pesado do que o anterior.

    O albocerno apertava as mãos de leve contra o manto, com o corpo reagindo à tensão, ficando de ombros duros, respiração curta e mandíbula travada. A cada esquina, se questionava se encontraria outros inimigos como os de ontem.

    Atrás dele, Evelyn andava com as mãos enfiadas nos bolsos, a cabeça levemente baixa enquanto observava os prédios ao redor. Já Brigitte caminhava ao lado, com a lança presa às costas, rabiscando ideias em seu caderno de anotações. Apesar do clima tenso do lugar, foi ela quem quebrou o silêncio primeiro:

    — Isso tá parecendo até uma missão de infiltração. — comentou, soprando ar quente do pulmão contra as mãos geladas.

    — Bom… tecnicamente é uma missão de infiltração. — disse Evelyn, sem emoção. — A gente vai invadir um local à noite, procurando pistas pra avançar na nossa busca. Sim, é totalmente uma missão de infiltração.

    Brigitte riu com o nariz enquanto guardava seu caderninho no bolso, riu tanto pela análise de Evelyn quanto pela emoção da missão que estavam prestes a fazer.

    — Sabe… — continuou ela. — Eu nunca pensei que a gente ia terminar uma noite de RPG caçando traficantes de pessoas. Isso parece coisa de livro de mistério. Tipo… “A Busca do Garoto Sem Nome”. — Juntou as mãos e depois as afastou, como se revelasse um cartaz invisível diante dela. — Pronto, já tenho o título do meu próximo conto.

    — Acho melhor transformar em uma saga em vez de histórias soltas. — sugeriu Evelyn. — Assim os leitores não se perdem no caminho.

    — Nesse caso… — “As Crônicas da Lança e da Foice”, talvez? — disse a garota, com um sorriso animado. — Volume dois: “A Busca do Garoto Sem Nome”.

    — O título ficou mais elegante assim. Tenho certeza que vai ser um sucesso de vendas agora!

    Niko soltou um som abafado pelo nariz, mas não levantou o olhar, ainda estava atento durante a caminhada.

    — Só espero que o final não seja trágico. — murmurou, baixo demais, quase só para si.

    — Se depender da gente, não vai ser.

    O grupo seguiu em frente, entrando cada vez mais fundo no coração do distrito. As ruas pareciam ficar mais apertadas e os prédios mais rústicos e a umidade do local grudava na pele como uma fita pegajosa.

    — Essa parte da cidade fede a óleo e carvão, argh. — reclamou Evelyn, puxando o cachecol sobre o nariz. — Como alguém consegue viver aqui?

    Brigitte observou ao redor, os olhos percorreram os prédios baixos de tijolos vermelhos manchados de fuligem. Muitas das janelas eram estreitas, reforçadas com grades, e em alguns pontos grandes chaminés cuspiam fumaça escura contra o céu noturno. O cheiro era denso, pesado, e um gosto metálico quase amargo se instalava no fundo da boca. 

    Horrível”, era a única palavra que conseguia descrever a sensação. O distrito de Gerin era literalmente a antítese da vila de Alzen. Enquanto o primeiro era um inferno industrial repleto de fumaça, poluição e — provavelmente — barulho na manhã, a segunda era uma vila calma, silenciosa e pacífica.

    Estar naquele lugar trazia mais saudade de casa para Brigitte. Não entendia como era possível pessoas deixarem aquilo existir como parte de suas vidas.

    — Talvez ninguém more aqui de verdade. — comentou, vendo um gato magrelo sumir entre os becos. — Só vejo fábricas… galpões. Aqui parece não ter nenhuma casa ou prédio.

    — Tem gente que mora, sim. — disse Evelyn, indicando discretamente com o queixo um prédio estreito com escada externa e varais improvisados. — Fundos de indústria. Normalmente o espaço que não é usado no armazém os donos alugam como dormitório. Já conheci algumas pessoas que moravam por aqui.

    — E o aluguel aqui, quanto será que é? — Brigitte perguntou, com um tom que flutuava entre curiosidade e sarcasmo. — Só um lugar muito barato pra fazer alguém cogitar viver aqui.

    — Com esse cheiro de fumaça, e essa paisagem maravilhosa de caldeiras e engrenagens quebradas… parece um lugar ótimo para desenvolver um câncer de pulmão. Então deve ser baratinho mesmo. — Evelyn respondeu com uma careta leve, mostrando a língua.

    Brigitte riu pelo nariz, encarando o chão rachado e os trilhos de trem que cortavam parte da rua.

    — Verdade. Imagina morar aqui? Nem sei se eu conseguiria escrever sobre heroísmo morando perto de uma fábrica barulhenta. “Capítulo Um: O Martelo Não Parava de Bater

    — Capítulo Dois: “A Sirene da Fábrica Toca às Quatro da Manhã” — completou Evelyn com um sorriso torto.

    As duas riram baixinho, aliviando por um momento o clima opressivo da missão, mesmo que Niko não participasse da conversa. Ele apenas seguia à frente, com passos ritmados e olhos atentos, com um turbilhão dentro da cabeça.

    O grupo virou uma esquina, atravessou uma ruela entre dois prédios de armazenamento e, logo à frente, viram o objetivo da missão. Uma ampla construção cercada por grades de ferro, com uma entrada principal reforçada por portões fechados. O letreiro de ferro sobre o arco de entrada dizia “DEPÓSITO DE CARGA DE GERIN – LINHA 06”. Ao lado, um pequeno posto com uma janela acesa, onde um homem de casaco grosso, chapéu e coberto de pelos fofinhos estava encostado, fumando um cigarro e segurando uma lanterna apontada para o chão.

    O trio parou alguns metros antes do local, encostados a uma parede de tijolos escuros, evitando serem vistos. Apenas observavam o alvo em silêncio.

    — Então… como a gente entra? — sussurrou Brigitte para os outros dois.

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