Capítulo 122 - Linha 06 II
Sem dizer uma palavra, Niko começou a analisar a fachada com cuidado, buscando um meio de entrar no depósito. Seus olhos varriam cada detalhe: os portões principais, iluminados demais; as janelas altas, visíveis de longe; até as áreas de carga, largas e sem qualquer sombra para se esconder. Cada alternativa parecia ruim, arriscada. Um movimento em falso ali e todos seriam descobertos em segundos.
Mas então, notou algo na lateral esquerda da estrutura. Um cano de escoamento quebrava a monotonia da parede e projetava uma sombra larga, ainda mais reforçada pela ausência de luz, onde o lampião mais próximo estava queimado. Era um ponto quase oculto, fora da visão de qualquer janela. Não era perfeito, mas era o melhor que podiam ter.
Niko se afastou um passo, retirou duas de suas facas de dentro do manto e entregou uma para Evelyn e outra para Brigitte. As lâminas estavam marcadas com símbolos de Alma, feitos à mão.
Evelyn recebeu a arma com naturalidade, como quem já conhecia aquele tipo de ferramenta. Brigitte a segurou firme, primeiro com uma sobrancelha levantada, alguns segundos depois fez uma cara de surpresa e assentiu em silêncio, entendendo o plano. Niko nem precisou explicar o plano para as duas, somente sua ação poupava a necessidade de usar palavras.
Niko se afastou em silêncio do grupo, atravessou a rua, se esgueirando pela lateral até alcançar o canto escuro. Conferiu com cautela: nada de guardas, nada de janelas próximas. Arremessou a faca por cima da muralha de concreto. O metal girou no ar e caiu do outro lado com um tilintar abafado. Sem hesitar, ativou o Portal, desaparecendo no mesmo instante.
Reapareceu do outro lado, entre sacos de areia empilhados e caixotes cobertos por lona escura. Saiu do meio das tralhas, tocando os pés no chão. Ainda não estava no interior do depósito principal, mas havia vencido a primeira barreira, agora estava dentro do pátio murado.
Um som rítmico de botas se aproximava dele. Niko prendeu a respiração e se encolheu atrás de uma estrutura de encanamento enferrujada. Não ousou nem espiar. Qualquer movimento poderia denunciar sua presença. Apenas ouviu. Esperou. O passo ritmado ecoou perto e, por somente um instante, viu o guarda passar, prendendo a respiração na hora. Depois, lentamente, o som começou a se afastar. O garoto voltou a respirar. Aliviado.
…
— Então… quanto tempo ainda vai demorar? — perguntou a luminar em voz baixa, ainda do lado de fora.
— A qualquer momento. — respondeu Evelyn.
— Mas já tá demorando tan-
Antes que terminasse a frase, ambas foram puxadas pelo Portal. Evelyn surgiu ao lado de Niko sem demonstrar espanto, apenas olhou em volta para reconhecer o novo espaço.
Brigitte, no entanto, foi engolida pela experiência. Era a primeira vez que passava pelo Portal. Durante um instante que pareceu interminável, não conseguiu ouvir o restante da sua fala, todos os seus sentidos foram arrancados: som, visão, tato, cheiro. Nada existia, apenas um breu absoluto. Aquela sensação parecia durar minutos.
Quando a consciência voltou, um grito involuntário escapou de sua garganta.
— HNN-!
Evelyn reagiu no mesmo segundo, cobrindo a boca da amiga com a mão.
— Shhh! — sussurrou alto. — Não grita assim do nada! Quer que peguem a gente agora mesmo?
Brigitte balançou a cabeça para os lados enquanto dizia com a boca fechada “nuh-uh”, com o olhar caído. Triste por ter decepcionado seus amigos com um gesto tão bobo e infantil.
Evelyn suspirou e tirou a mão lentamente, com um olhar de frustração. Brigitte abaixou os olhos, sem coragem de se justificar. Pensou em pedir desculpas, em inventar uma piada para disfarçar, mas no fim apenas permaneceu em silêncio, tentando deixar a situação embaraçosa para trás.
O trio seguiu avançando pela lateral do armazém. A área ao redor parecia um pátio de serviço: aberto, largo, com trilhos paralelos embutidos no chão e colunas metálicas sustentando cabos de carga suspensos. Vagões vazios ou semi-descarregados, estavam alinhados em um dos trilhos como se esperassem pacientemente pelo resto do trabalho dos operários. Algumas caixas de madeira e contêineres menores estavam empilhados em pontos mais escuros, como se ninguém tivesse terminado de organizar o que ficou para trás.
Apesar da hora, o local ainda estava em plena atividade. À distância, trabalhadores se moviam em grupos, alguns empurrando carrinhos com caixas lacradas, outros transportando cargas nos ombros. Entre eles, destacavam-se ogros de pele escura e braços como troncos de árvore, carregando com facilidade caixas que pareciam pesar uma tonelada.
O som dos trilhos alternando de posição, do metal se chocando e do vapor escapando das válvulas ecoava pelo pátio, dando ao armazém uma trilha sonora industrial e abafada.
— Isso aqui tá bem mais movimentado do que eu esperava… — murmurou Brigitte, abaixando o corpo atrás de uma coluna enquanto atravessava um vão exposto.
— É um depósito logístico central. — explicou Evelyn, analisando a movimentação. — Mesmo de noite, tem trem partindo e chegando a todo momento. Se tem alguma coisa escondida aqui, provavelmente tá no lado mais silencioso.
— O que significa que precisamos ir mais fundo na estação. — concluiu Niko.
Avançaram devagar, contornando o galpão principal, cada sombra observada como uma ameaça. O silêncio entre eles era apenas interrompido pelo som distante das máquinas. Em certo momento, Evelyn indicou uma porta de ferro à frente, mas ao se aproximarem, notaram que ela estava trancada com um cadeado grosso.
Niko parou, avaliando. A porta tinha um formato estranho, o metal não tinha frestas para usar Alma — como fez na casa de Clementine. Havia a possibilidade de arrombar a fechadura, mas seria barulhento demais. Mesmo se usassem a Alma de Brigitte ou Evelyn para arrombar a porta silenciosamente, algum guarda poderia perceber, o alarme soaria e a missão terminaria ali.
O albocerno mordeu o lábio inferior e balançou a cabeça.
— Não vai dar pra atravessar por aqui.
Seguiram adiante. Poucos metros depois, contornando uma segunda fileira de caixas e atravessando uma passarela estreita entre dois galpões menores, encontraram uma segunda porta, dessa vez de madeira, entreaberta, mergulhada na escuridão.
Niko foi o primeiro a se aproximar. Encostou na estrutura com cuidado e espiou. Suas íris contraíram. Um corredor de concreto e metal se estendia do outro lado, iluminado apenas pelas janelas altas que ainda refletiam alguma luz perdida de fora. Havia também algumas placas tortas nas paredes e setas apontando para setores específicos do complexo.
— Por aqui. — disse ele, entrando primeiro.
Pegou do manto e acendeu a pequena lanterna de mão, mantendo-a voltada para baixo, para que nenhum clarão escapasse pelas janelas. Brigitte entrou em seguida, com passos cautelosos, e Evelyn fechou a fila, de olhos atentos a cada sombra.
Quando Evelyn fechou a porta, o impacto foi imediato. O barulho das máquinas, o vapor, os trilhos e os gritos de operários ficaram do lado de fora. Do lado de dentro, só restou o silêncio.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.