Capítulo 125 - O Plano
O dia amanheceu frio e cinzento, o exato oposto da casa de Evelyn, quente e aconchegante. As cortinas estavam meio abertas, deixando passar uma luz branca, filtrada pela neve que vinha de fora. O cheiro do café da manhã dominava o ambiente, aumentando sua sensação de conforto.
Sobre a mesa de jantar havia uma caneca de café, uma xícara de chá, um jogo de chá, um jornal e um caderno de anotações como: “C.397.D – código logístico suspeito; possível número de identificação do dríade” ou “Ardan Salier – financiador do contrabando”.
Niko estava sentado de frente para a janela, com o cotovelo apoiado e tamborilando os dedos em um ritmo irregular enquanto encarava o caderno. O vapor subia da caneca à sua frente, já quase fria. Ele não bebeu em nenhum momento o café que Evelyn o entregou, estava concentrado demais para fazer isso.
Já Evelyn o observava do outro lado da mesa, como se quisesse ler os pensamentos que passavam em sua mente. De tempos em tempos, dava um gole na xícara de chá, olhava em volta do cômodo e até mesmo lia uma parte do jornal. Estava apenas matando tempo, esperando a chegada do terceiro membro do grupo.
Depois de um gole de chá, a elfa pousou a xícara na mesa e olhou de relance para o sofá, onde Mithi dormia em cima de seu braço. A cor do gato parecia mais viva sob a luz do sol que refletia em seu pelo. Seu rabo balançava de leve a cada ronronar, em um ritmo calmo e sonolento.
— Ele dorme como se o mundo lá fora não existisse. — comentou Evelyn, distraída.
Niko levantou os olhos e moveu de leve a cabeça. No instante que viu Mithi, se imaginou como seria ser um gato. Imaginou a calma, a paz, a falta de responsabilidades e consciência de seus atos. “Queria ter sido um gato”, pensou.
— Sim… Eu invejo ele.
— Eu também. Ser um gato é levar uma vida tranquila e solta, principalmente se é domesticado como essa bolinha de pelos aí… — disse, e então deu um risinho baixo. — Ainda bem que não sou um gato.
Niko ergueu o olhar, confuso. Um ponto de interrogação se formou em sua cabeça. Ser gato era sinônimo de paz e calma, algo desejado por todos. Inclusive, pensou que Evelyn adoraria ter sido uma gata, assim não teria que passar pelas coisas terríveis que passou nos últimos dez anos.
— Por que você não queria ter sido um gato, Evelyn? Você não disse que invejava o Mithi por justamente levar uma vida calma e tranquila?
Evelyn se recostou na cadeira, cruzando as pernas. Passou o dedo ao redor da borda da xícara, como se desenhasse um círculo invisível sobre a porcelana. Pensou por alguns segundos antes de responder.
— Bem… — começou, olhando o líquido escuro do chá. — Eu realmente queria ter uma vida tranquila, principalmente depois de ter desperdiçado dez anos da minha vida nessa vida de mercenária.
A elfa ergueu os olhos e apoiou o cotovelo na mesa, inclinando o rosto um pouco para frente. A voz dela soava mais baixa, mas firme.
— Mas sinto que mudar de vida, sendo um animal e tendo uma história completamente diferente da que tive, não é o melhor caminho. — ela fechou o punho sobre o peito, e um pequeno sorriso, cansado mas verdadeiro, se formou. — Eu… realmente adoro a “Evelyn”. Mesmo que ela tenha feito besteira no passado, eu não deixo de gostar do que sou.
Ela olhou de novo para o gato adormecido no sofá e completou:
— Não quero jogar essa história no lixo.
Por alguns segundos, o silêncio pesou na sala. Evelyn então voltou o olhar para Niko.
— E você, Niko? — perguntou de repente. — Gostaria de ter sido um gato?
A pergunta pegou o garoto de surpresa. Ele desviou o olhar para o lado, voltando a tamborilar os dedos de leve na mesa. Ser um gato significaria esquecer. Significaria viver sem saber de onde veio, quem foi, o que fez — e talvez isso fosse paz. Mas também seria desistir de tudo o que restava de si.
Era exatamente o oposto do que ele queria. Se o garoto quisesse essa paz, teria de abandonar tudo o que fez até agora. Teria de abandonar a investigação que fez na floresta, de ter ido à Colvenfurt, ter feito o contrato com Hyandra e até mesmo ter conhecido Brigitte. Se esquecer e não saber significava ter “paz” então ele preferia ter “nenhuma paz”.
— Não. — respondeu, simples. — Seria hipocrisia da minha parte querer ser um.
Evelyn o encarou por um instante, sem dizer nada. O olhar dela suavizou e deu um sorriso curto, quase como se enxergasse ali o reflexo de algo que também já buscou e perdeu.
Nesse momento, o som da maçaneta girando cortou o ar. A porta da frente se abriu com um estalo e a luz amarela do corredor invadiu o apartamento. Mithi acordou assustado, arqueou o dorso, olhou para a entrada e, no instante seguinte, saltou do sofá direto para debaixo dele.
— Bom dia, combatentes da noite! — anunciou Brigitte, entrando com o casaco aberto, cabelo solto, diferente das outras vezes que estava com dois rabos de cavalo presos, e a voz animada demais para o horário.
Evelyn virou o rosto, feliz com a chegada da companheira.
— Bom dia, senhorita heroína do grupo.
Brigitte esticou os braços e fez uma pose dramática, como se subisse ao palco.
— Heroína do grupo, presente! — declarou, antes de soltar um bocejo preguiçoso. — E posso garantir: dormi o bastante pra salvar o mundo duas vezes, se for preciso.
Brigitte olhou ao redor e notou o espaço vazio no sofá.
— E o Mithi? — perguntou a garota.
— Fugiu de você — respondeu Evelyn, sem olhar.
Brigitte se abaixou, com o rosto tocando o tapete, e encontrou dois olhos dourados brilhando na penumbra.
— Ah, qual é? Eu só quero fazer carinho. — estendeu a mão, mas o gato recuou ainda mais. — Crueldade felina.
— Ele tem bom instinto. — disse a elfa, escondendo um sorriso por trás da xícara.
— Vocês são um time ingrato. — Brigitte se levantou, indo em direção a mesa. — Mas tudo bem. Eu também tenho instinto. E o meu tá dizendo que a gente devia parar de brincar de café da manhã e começar a agir.
Niko finalmente desviou o olhar do caderno de anotações, fixando o olhar na Luminar.
— Você tomou café da manhã?
Brigitte apontou o dedo para o garoto, um se sorriso materializou em seu rosto e ela respondeu com a palavra certeira:
— Não.
Evelyn soltou um suspiro demorado, apoiando a testa na mão.
— Eu imaginei. — pegou o bule, mais uma xícara e serviu mais um pouco de chá, empurrando-a na direção de Brigitte. — Toma.
— Muito obrigada!
Brigitte nem esperou o chá esfriar. Deu um gole, fez uma careta e pousou a caneca com força na mesa.
— Tá decidido. A gente vai resolver isso hoje. Chega de ficar tentando montar quebra-cabeça com metade das peças faltando.
— O que você quer dizer com “resolver”? — disse Evelyn, levantando uma sobrancelha.
Brigitte endireitou a postura, sorriu orgulhosamente e apoiou as mãos na mesa.
— Tenho um plano.

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