Capítulo 129 - Fotografias
Evelyn puxou a trava enferrujada do vagão até a tranca ceder com um estalo seco. Depois puxou com força a larga porta de metal para o lado. O som ecoou pelo pátio vazio, alto demais para qualquer um dos três ali. O cheiro industrial de ferrugem e óleo pairava no ar e o vento passava pelas brechas da lataria à frente, fazendo o metal vibrar.
— É, acho que esse vai servir. — murmurou ela, apoiando o pé no degrau do vagão, subindo nele em seguida.
O interior era sombrio e estreito, iluminado apenas pela luz que atravessava as janelas e as pequenas frestas do metal. Lá dentro, havia caixotes empilhados e um barril caído com o símbolo da Companhia Ferroviária de Reiken pintado em um azul forte.
Atrás dela, Brigitte vinha se arrastando com o corpo curvado, a boca soltando vapor e os braços cheios de tralhas: latas de tinta, cordas, panos e uma pequena caixa de madeira que estava quase caindo de sua única mão útil.
— Por favor… me diz que esse é o último vagão que a gente vai abrir hoje. — reclamou a garota, ofegando enquanto derrubava as coisas no chão de qualquer jeito.
Niko foi o último a entrar, erguendo o manto para não enroscar no ferro enquanto subia. O ar frio do lado de fora não entrava ali, o ambiente parecia totalmente fechado para o clima gélido da cidade.
— É o último. — disse Evelyn, terminando de analisar o espaço. — Pouca luz, paredes limpas… é perfeito para as fotografias.
Brigitte passou a mão no cabelo cacheado de olhos fechados enquanto suspirava. Então, ela abriu os olhos meio cerrados, encarando as latas de tinta com um ódio mortal, como se os objetos fossem inimigas pessoais.
— “Perfeito para as fotografias” — ela repetiu. — Eu tô carregando meio armazém há três quarteirões e só ouvi “perfeito” agora.
Evelyn olhou de relance, com um sorriso presunçoso com um dos olhos fechados.
— A arte requer sacrifício.
— E pelo visto os meus braços foram as oferendas… — rebateu Brigitte, se abaixando para abrir uma das latas. — Urgh, odeio esse cheiro industrializado. Dá um nojo…
Niko se aproximou do centro do vagão, colocando o caderno sobre um dos caixotes e abrindo-o na página cheia de anotações. Seu olhar passava entre as palavras rabiscadas durante o caminho, tentando imaginar qual símbolo poderia parecer mais “criminoso”.
— Vamos precisar de algo simples. — disse ele, ainda pensativo. — Algo que pareça autêntico, mas que não chame atenção demais.
— Autêntico e discreto? Difícil. — murmurou, enquanto cruzava os braços. — Nenhuma facção quer passar despercebida. Sempre que deixam uma marca, um símbolo, sempre querem dizer algo do tipo: nós estivemos aqui.
Brigitte, ajoelhada, levantou a mão, igual uma criança dando sugestões para o trabalho em grupo do fundamental.
— E se a gente pintar uma caveira? Todo mundo morre de medo de caveira.
— Uau, que ideia original e extremamente não clichê, Brigitte. Nem parece que todo mundo iria suspeitar que é falso. — rebateu Evelyn, irônica e afiada.
A luminar somente virou a cabeça e fez beicinho, voltando a montar os equipamentos, murmurando algo que ninguém conseguiria entender. Não estava a fim de responder sobre a genialidade de sua ideia com Evelyn, que não iria entendê-la.
Por alguns minutos, o único som que se ouvia no local era o estalar das latas sendo abertas, o vento passando pelas frestas do vagão e a pequena caixa sendo aberta, revelando um mecanismo de lente — que se movia para frente e para trás com “rodinhas” — com dobradiças de couro vermelho.
Evelyn separava os pincéis e panos, enquanto Niko folheava o caderno em busca de algo que pudesse servir de referência. E Brigitte estava encostada em um caixote, observando os dois em silêncio, como se aguardasse pelo próximo passo.
Niko manteve o olhar nas páginas por alguns segundos, se perguntando se devia falar do assunto que estava em mente ou não. No fim, acabou cedendo e disse:
— Evelyn, lembra que a Clementine falou de alguns… símbolos na casa do cliente? — perguntou, erguendo o rosto.
Evelyn, que estava curvada mexendo nos pincéis e nas tintas, parou o movimento por um instante. Endireitou o corpo e olhou para o fundo do vagão, onde estava Niko. Seu olhar parecia distante e fosco.
— Lembro sim. — respondeu ela. — “Coisas bizarras na casa do cliente. Marcas nas paredes, nas portas, em todos os lugares”, alguma coisa assim. Por que disso? Quer se inspirar nesses símbolos?
Niko assentiu, pegando o caderno e o segurando contra o peito. O garoto começou a se aproximar de Evelyn para uma melhor discussão.
— O problema é que a gente não sabe quais eram os símbolos.
— Mas… a gente pode inventar algum então. — respondeu Niko, com calma e pragmatismo. — Inspirado nessa ideia, nessa… abstração. Que tal?
Evelyn ergueu o olhar, avaliando a ideia do garoto por um instante. Depois, deu um sorriso curto — o tipo de sorriso que surge quando uma ideia boa finalmente aparece.
— É… a gente pode pegar isso de base. Se for convincente o bastante, ninguém vai achar suspeito.
Enquanto eles conversavam, Brigitte os observava em silêncio. O nome “Clementine” ecoava em sua mente com uma incógnita. Nunca tinha ouvido aquele nome antes vindo deles. Era alguém importante, isso dava pra perceber, mas não sabia o que exatamente ela era para os dois. A garota pensou em perguntar sobre, chegou a abrir a boca… mas no fim a ideia morreu antes de se materializar.
A elfa se levantou, seus cabelos grisalhos balançaram de leve no ar — Niko a seguindo logo atrás. Caminhou alguns passos até uma parte livre das paredes de metal e passou o dedo sobre ela, uma camada de poeira fria envolveu sua pele.
— E se for algo ligado a Kyndral? — sugeriu, pensativa. — Pensei em algo inspirado no brasão do país. Alguma espécie de… grupo nacionalista! Seria uma justificativa perfeita.
Niko terminou de se aproximar, ficando ao lado de Evelyn. Ergueu uma sobrancelha, tentando acompanhar o raciocínio dela.
— Uma… facção kyndralina?
— Isso. — respondeu firme, já moldando a história na própria cabeça. — Uma organização patriota anti-crime. E pensei em um símbolo abstrato inspirado nos três corvos kyndralinos. É o suficiente pra parecer verdadeiro, e ninguém vai achar que é coincidência.
— Esses são os corvos da bandeira? — perguntou Brigitte.
Evelyn virou o rosto em sua direção, surpresa pela pergunta, e assentiu devagar com um breve sorriso.
— São. — respondeu, aproximando o dedo da parede, traçando no ar o formato imaginário do símbolo. — O corvo que segura a espada representa a força, o que empunha o escudo simboliza a proteção… e o do meio, de asas abertas, é a mediação, a balança entre o poder e o dever.
Ela parou por um instante, com o olhar fixo na parede de ferro. Se agachou e pegou um dos pincéis que o grupo havia comprado, de formato chato e grosso.
— Todo mundo conhece isso, afinal isso tá até na bandeira. — respondeu fechando os olhos e mostrando a língua, rápido. — Então… colocamos uma variação disso, algo mais minimalista e simples. Assim parece algo próprio dessa… gangue patriota que inventamos.
Brigitte cruzou os braços, ainda com a cabeça inclinada. Estava em dúvida se a ideia era tão boa assim; com certeza era uma boa ideia para uma crônica, mas para a missão…
— Então… a gente vai fazer um símbolo de um bando de patriotas que se rebelaram contra o crime, mas que na verdade nem existem de fato?
— Exatamente. — respondeu Evelyn, sem tirar os olhos do ponto onde começaria a pintar.
— Acho que você se empolgou muito pensando nesse roteiro…
— Provavelmente.

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