Índice de Capítulo

    O coração de Niko parou por um segundo antes de acelerar novamente. Os olhos começaram a tremer. Tentou disfarçar a respiração, mas o ar parecia escapar antes de chegar ao peito.

    Droga… o que ele quis dizer com isso?”, pensou. Obviamente ele estava suspeitando de Niko, no melhor dos casos apenas curioso, mas com aquele rosto estático maldito era difícil de deduzir qualquer coisa. O olhar do chefe permanecia nele, firme, analisando cada um de seus movimentos, como se tentasse ler sua mente com um simples piscar de olhos.

    — Nunca, nunquinha mesmo… — afirmou novamente o homem, agora apoiando o cotovelo na mesa e estreitando os olhos.

    Agora era fato: ele estava desconfiado de Niko. “O que eu fiz de errado? Foi na primeira sugestão? Quando ele perguntou minha teoria sobre as marcas? Ou ele estava suspeitando de mim desde o começo?”, essas perguntas martelavam a cabeça do garoto.

    Ele tentou responder, mas a mandíbula não se mexia, mesmo se esforçando o máximo possível. Percebeu que, inconscientemente, havia pressionado os joelhos um contra o outro, o corpo estava rígido.

    — Há quanto tempo trabalha conosco, garoto? — perguntou o chefe, com o tom ainda calmo, mas carregado de algo que beirava ao deboche.

    Niko ficou em silêncio por alguns segundos. “Pensa. Tenho que responder pouco. É mais seguro assim”, raciocinou, rápido. Se dissesse que estava ali há meses, poderiam questionar detalhes; se dissesse dias, pareceria improviso. Duas semanas parecia o meio-termo perfeito — tempo suficiente para parecer crível, curto o bastante para justificar o desconhecimento.

    — Pouco tempo, senhor.

    O chefe continuou com o olhar atento. Por um instante, Niko acreditou que aquilo bastaria. Mas o homem deu um leve sorriso irônico — o tipo de sorriso que nunca anunciava algo bom.

    — E veio de onde? — perguntou, como quem puxa conversa, mas era nítido que estava analisando o garoto.

    O garoto hesitou de novo. “Se eu disser que vim da capital, eles podem ter registros, além de que eu teria que explicar o porquê fui ao norte… O norte… Perfeito. Vellstadt…” Ele recordou do nome de uma cidade ao norte de Kyndral que viu no Áxis. Ao ser ao norte, havia uma chance alta de ser perto do local onde o dríade foi levado. Essa era sua melhor opção no momento. Era pegar ou largar.

    — Vim de Vellstadt, senhor. — respondeu, firme e rápido.

    O nome ecoou pela sala como uma pedra jogada num lago congelado. O silêncio que se seguiu não foi natural. Disse algo de errado no instante seguinte, sabia disso. Se perguntou se havia algo errado com a cidade que disse. 

    Provavelmente sim”, concluiu.

    Então, uma voz grave ecoou no ar, quebrando o silêncio incômodo.

    Vellstadt? — perguntou um dos homens tatuados, sentado à esquerda, com os braços cruzados e o casaco aberto, revelando o peito coberto de símbolos pretos e vermelhos. O tom dele carregava uma ironia forte e os olhos, fixos em Niko, eram predatórios. — Não tem uma base de recrutamento lá há meses. Eu mesmo tava lá quando a gente saiu da cidade.

    O coração de Niko disparou como se tivesse levado um soco forte, de reação instantânea. “Merda!”, pensou, tentando manter o rosto impassível.

    Calma. Não entra em pânico agora… espera alguém falar e aproveita a oportunidade, espera…”, decidiu.

    Outro homem, mais ao fundo — um sujeito magro, de cabelos pretos, barba por fazer e jaqueta de couro — se inclinou na cadeira, falando em um tom mais moderado:

    — É, fecharam depois da mudança das rotas. — disse, coçando o queixo. — Mas… quem sabe reabriram sem aviso. Essas coisas acontecem.

    As conversas voltaram a se espalhar em murmúrios baixos. O homem tatuado de antes encarava Niko com atenção, como se fosse um predador observando uma presa, o resto parecia tentar lembrar se ouviram algo sobre Vellstadt nos últimos meses. Ninguém parecia saber ao certo, estavam em dúvida.

    Niko percebeu a brecha e agarrou a oportunidade. Mesmo com um nó na garganta precisava falar, se tornar menos suspeito.

    — Isso mesmo. — disse, rápido, quase ansioso. — Fui chamado pra lá por um posto temporário. A associação precisava de pessoal pra cobrir a rota norte. Isso faz nem duas semanas.

    O chefe, que observava em silêncio, soltou um “hm” baixo. Olhou para o cinzeiro sem mover o rosto por alguns instantes, voltando a atenção à Niko.

    — Um posto temporário, é? — perguntou, apoiando a mão sobre a boca escondida. — Faz sentido. Eles costumam fazer isso quando precisam de mão-de-obra.

    Niko assentiu, discretamente. A tensão em seu corpo diminuiu só um pouco. Ainda estava nervoso, ansioso, porém, menos que antes. Deu um expirada um pouco maior, disfarçando o suspiro de alívio.

    Funcionou. Eles acreditaram.

    Mas a calmaria não durou. O chefe virou o rosto, passando os olhos por todo o salão; pelas lamparinas, as colunas, os capangas, parando em Niko, fitando-o diretamente. As lamparinas refletiram com intensidade em seus cabelos, chifres e parte do rosto.

    — Suas íris… — disse o homem, inclinando-se um pouco para a frente. — Se eu me lembro bem, os albocernos ficam com as íris contraídas como gatos quando estão ansiosos… Ou com medo… É verdade?

    Niko hesitou na resposta, sentiu uma pontada no peito e o corpo travou antes mesmo de pensar em qualquer coisa. Ele havia percebido sua tensão. As íris realmente estavam estreitas.

    Droga…

    Quando percebeu a situação em que estava, pensou rápido na resposta, uma meia verdade que dissipasse desconfiança. O garoto forçou um sorriso breve, mas a voz saiu fraca, quase sem vida:

    — Nossos olhos reagem a iluminação também. É só a luz da sala, senhor.

    Assim que terminou a frase, o silêncio pareceu se prolongar mais do que esperava. Niko sentiu a respiração pesar e o corpo ficando mais quente. Ele odiou o som da própria voz naquele momento, sem o mínimo traço da confiança que precisava manter. Sabia que aquele tipo de detalhe, para alguém como aquele homem, valia mais do que qualquer resposta certa.

    Idiota… Por que minha voz saiu daquele jeito? Estúpido!

    Manteve os olhos baixos e estreitos por um instante, temendo ter deixado escapar algo que entregasse mais suspeitas de que não era uma pessoa da organização.

    O chefe o observou quieto, ainda com o olhar frio, calculista, quase científico, e então recostou-se na cadeira — parecendo estar mais alto —, entrelaçando as mãos.

    — A luz… Sim, claro que é.

    As conversas voltaram aos poucos, mas em tom mais contido, como se todos tivessem ficado em alerta começando a entender o por quê. Todos ali pareciam estar olhando Niko com atenção, como se ele fosse uma ameaça ou algo errado, que não deveria estar ali. O chefe cruzou os dedos sobre o rosto e observou Niko novamente com um leve sorriso.

    — Bom, se é assim, acho que estamos entendidos. — disse, com o tom brando, quase simpático. — Mas me diga, garoto… qual é o seu nome mesmo?

    A pergunta veio leve, com calma, parecia ser simples, até demais para a situação, mas o albocerno sabia que havia algo por trás.

    Não dei nome nenhum pra ele. Espero que isso não tenha sido suspeito.

    — Ah… Nikolas, senhor.

    — Nikolas. — repetiu o chefe, devagar, testando o som da palavra. — E me diz, Nikolas… por que decidiu entrar para a Wolfranein?

    Por um instante, Niko prendeu a respiração, surpreso. Ouvir o nome real da organização o fez sentir como se tivesse ouvido uma informação proibida, guardada à sete chaves no mais dos profundos baús de pirata. Sentiu uma mistura de alívio e tensão.

    Então esse é o nome deles…

    Aquilo foi o gatilho e a mente do garoto se dividiu entre o medo e a curiosidade. Queria entender melhor a facção ficando ali, mas também queria apenas usar seu Portal e sumir.

    Engoliu seco, forçou um tom neutro — mais confiante que a outra vez — e simplesmente disse a única coisa que passou em sua mente:

    — Pela paga, senhor. Ouvi dizer que o trabalho rendia bem então decidi entrar.

    O chefe soltou uma risada curta e seca. Um som breve, mas que ressoou alto pela sala toda.

    — A paga… sempre é a paga, o dinheiro que cega as pessoas e fazem elas jogarem a moral no lixo por um punhado de ouro… — disse, voltando o olhar para as fotos sobre a mesa, sem sorrir. — E por que veio para essa reunião, então?

    Niko hesitou por um instante. A pergunta novamente parecia simples até demais. Era difícil definir a intenção.

    — …Porque… me mandaram, senhor.

    — Te mandaram? — repetiu, com o tom agora mais interessado, quase divertido. — E quem mandou você para a capital, Nikolas de Vellstadt?

    Por um momento, ninguém respirou. O mundo caiu no silêncio. Os olhos do homem estavam fixos nele, mas ele não parecia esperar qualquer tipo de resposta. Qualquer resposta que Niko lhe desse seria inútil. Ele percebeu, tardiamente, o que estava acontecendo.

    Cada olhar agora estava voltado em sua direção e as conversas, antes baixas, se tornaram inexistentes. Os elfos, no fundo, se entreolharam — um deles fez um pequeno gesto de cabeça, quase imperceptível, mas suficiente para que Niko percebesse. Um dos tatuados à esquerda endireitaram a postura. E os homens de orelhas de lobo, endireitaram o corpo, ergueram os narizes ligeiramente, farejando o ar. Até os cães levantaram a cabeça, atentos.

    Niko engoliu seco, e naquele instante soube que o disfarce tinha acabado. Desde o início o chefe já suspeitava dele. Toda aquela encenação foi inútil, não importa quantas vezes tentassem, todas trariam sempre o mesmo resultado: a queda de seu disfarce.

    O clima no salão havia mudado completamente: já não era curiosidade ou dúvida, era julgamento. Os olhares que o cercavam pesavam como aço, todos eles, cada um deles.

    Eles descobriram…

    O chefe não disse nada, apenas cruzou as mãos sobre o joelho e o observou com a calma de quem já tem a resposta. Olhos estreitos, cara fechada, parecia ainda mais sério que antes. Niko sustentou o olhar, mesmo com o coração apertado, não precisava mais manter aquele teatro. Suspirou baixo.

    Um dos homens — o mesmo tatuado que o questionou antes — moveu a mão, quase sem disfarçar, em direção à mesa onde estava uma pistola escura, o cano apontado levemente para sua direção. Outros ao redor começaram a se mexer também, as cadeiras rangendo levemente, as mãos se movendo para dentro dos casacos e ternos, até mesmo o som baixo do tambor de um revólver girando foi percebido por Niko.

    Ele agiu antes de pensar. Em um movimento brusco, sacou uma de suas facas e a lançou na direção de uma das colunas de concreto próximas. A lâmina cortou o ar em um zumbido frio e se cravou firme no pilar. Os capangas reagiram de imediato, as cadeiras voaram para trás, as armas ergueram em direção ao garoto e o som dos gatilhos ecoou como um trovão.

    Mas quando os primeiros tiros foram disparados, Niko já não estava mais ali. Ele havia sumido. Os disparos atravessaram o nada.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota