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    O salão inteiro parecia um campo de guerra. Mesas quebradas, concreto estilhaçado e sangue voando pelo ar. Um dos lobis-híbrido estava desacordado perto das cortinas — o segundo estava preso contra uma pilastra por uma camada de gelo que ia do ombro ao tornozelo. Somente um ainda estava de pé, cambaleando, com a costela afundada por um dos chutes de Brigitte.

    Os tatuados estavam quase todos caídos. Um estava gemendo no canto enquanto outro tentava rastejar sem conseguir mover a perna ferida. Os elfos ainda não caíram, estavam os dois lutando juntos contra Niko.

    Os disparos nunca acertavam os três, logo, parte dos homens comuns desistiram de usar suas armas de fogo, pegando pedaços de madeira e metal, além de adagas. Mas era igualmente inútil. E os cães estavam presos contra o gelo, com respirações ofegantes.

    No meio de todo o caos, estava ele. O chefe estava parado no canto elevado do salão — na parte mais larga, um degrau acima dos demais — de braços para trás, observando a destruição que três figuras mascaradas tinham causado. Silenciosamente, se moveu até lá, apenas observando o conflito vergonhoso.

    Nunca na sua vida imaginou que algo assim pudesse acontecer no seu domínio. Se sentia humilhado, inútil, burro. Devia ter previsto isso. Era seu trabalho e função ter previsto isso… Não, era impossível. Nunca poderia prever o imprevisto. A culpa não era sua, era deles.

    Como isso aconteceu…? Como três pirralhos conseguiram se infiltrar no MEU território e humilhar os MEUS homens?!”, ele se questionava mentalmente.

    Mordeu o lábio inferior com força, arrancando um pedaço da carne. O gosto metálico do sangue subiu pela boca, mas ele não ligou. Queria entender. Precisava transformar aquela falha em algo justificável. Algo que reconstruiria seu orgulho quebrado.

    Deu um passo à frente e o vento do salão acompanhou sua bota. Deu outro passo e o ar respondeu o seu chamado com um redemoinho discreto, girando ao redor dos pés.

    Ninguém percebeu a movimentação do chefe, todos estavam ocupados demais lutando entre si. Então, finalmente parou no local perfeito para sua próxima etapa. Ele ergueu o rosto, o olhar dele estava carregado, quase dolorido, de tanta raiva acumulada.

    Chega! — gritou o homem, farto daquela humilhação.

    O grito ecoou no salão como um trovão seco. E o impacto psicológico foi tão forte que, mesmo que por alguns instantes, o salão congelou — não pela Alma de Evelyn, mas pela autoridade bruta daquele homem.

    O lobis-híbrido ainda de pé parou de rosnar, engoliu seco e se arrastou até a parede mais próxima do chefe, mantendo os olhos no chão. O tatuado rastejante se sentou em uma das pilastras, abaixando a arma que estava segurando como se tivessem levado um sermão do próprio maldito pai.

    Os homens comuns soltaram pedaços de madeira, as barras de ferro e as adagas. Os elfos, que ainda duelavam com Niko, interromperam o movimento a meio golpe e recuaram, deslizando para trás com o rosto tenso. Até os cães — presos no gelo — baixaram as orelhas e a cabeça, quietos, sem soltar um único rosnado.

    O homem não precisou repetir. Não precisou ameaçar. Não precisou ordenar mais. A hierarquia, sua bela posição hierárquica cuidou do resto. Como sempre foi na organização, e como sempre será.

    Niko, ainda com a foice em mãos, olhou ao redor, respirando pela boca, ofegante. Estava pronto para continuar lutando, mas ninguém mais se movia. Evelyn ainda manteve a postura defensiva por alguns segundos, olhos atentos e o gelo estalando no pulso. E Brigitte voltou a sua posição neutra, ainda preparada para disparar a qualquer momento, mas sentia que esse momento não iria chegar tão cedo.

    Os três ficaram imóveis, as garotas trocando olhares rápidos por trás das máscaras. Brigitte arregalou os olhos de leve e deu de ombros. Todos ali ficaram confusos. A luta simplesmente… parou. Sem mais nem menos.

    — Alguém tem ideia do que… aconteceu? — murmurou Niko, sem baixar a foice.

    — Eles só pararam. — respondeu Evelyn, tão perdida quanto o garoto. — Ele só gritou e… todos pararam de lutar.

    Niko aproximou o rosto das meninas, sussurrando baixo:

    — Pode ser uma armadilha, fiquem atentas.

    No instante seguinte do aviso, as duas levantaram as armas — Evelyn o rifle, e Brigitte a lança —, prontas para avançar em qualquer movimento suspeito.

    O salão estava imóvel. Os poucos capangas que ainda restavam nem ousavam respirar alto. Mesmo o lobis-híbrido ferido, aquele que ainda conseguia se manter de pé, recuou com o rabo entre as pernas e as orelhas para trás, afastando-se alguns passos, como cães que reconhecem um alpha.

    Foi então que o chefe — o homem até então silencioso, imóvel naquela parte elevada do salão — levou dois dedos aos olhos, apertando o dorso nasal com força, como alguém tentando conter uma dor antiga, profunda ou um ódio enorme.

    — Sabe… — começou, respirando fundo. — Quando eu era criança… eu gostava de jogos de tabuleiro.

    Ele finalmente falou. Não era uma voz de um líder furioso. Era calma, serena, quase tímida. Um sussurro que parecia distante daquele cenário de recém destruição.

    Niko, Evelyn e Brigitte trocaram um olhar rápido. Ninguém entendeu nada daquela fala. Eles esperavam por tudo, menos por algo assim.

    Jogos de tabuleiro?”, pensaram os três ao mesmo tempo.

    — Estratégia, raciocínio lógico… Eu sempre gostei de saber onde todas as peças estavam. Sempre gostei de entender o tabuleiro, suas peças e seus resultados melhor que os outros.

    O homem voltou a mão para baixo e deu mais um passo à frente. O ar ao redor dele pareceu se curvar diante dele, como se o salão tivesse dado um suspiro agressivo.

    — Aos seis anos, venci meu primeiro campeonato local, na categoria de Weiqi. — disse, num tom quase nostálgico. — E não era contra crianças. Eram adultos. Pessoas treinadas. Eu era… bom nisso. Naturalmente bom.

    Outro passo. E o vento acompanhou a sola da bota.

    — Aos onze… — disse, abrindo um sorriso curto e vazio. — Aos onze anos de idade, eu nunca mais perdi sequer um jogo de xadrez. Nunca mais.

    Os três ainda não compreenderam qual era o objetivo do chefe, mas eles sabiam, quase que instintivamente, que abaixar a guarda seria um erro. Evelyn apertou o rifle com mais força. Brigitte deu um passo para o lado, reposicionando a base dos pés. E Niko segurou uma das facas por debaixo do manto.

    Agora o homem ergueu o rosto e todos puderam ver a mudança sutil, a sombra que passava por seus olhos, dando-lhe um ar de ódio profundo.

    — E sabe o que eu descobri com isso? — disse, o tom ainda calmo, porém mais firme. — Eu descobri que… controlar o tabuleiro… controlar as peças… não era apenas um hobby. Era parte de quem eu sou. Eu sempre fui assim.

    Ele ergueu o braço esquerdo, em um gesto pequeno, mostrando o cenário ao redor e, principalmente, sua peça principal.

    — As pessoas precisam de alguém que os controle. De alguém que os liderem. De quem entende a ordem do jogo. De quem está acima. Sempre foi assim, da tribo ao império, sempre houve um superior.

    A respiração dele começou a pesar mais, se intensificando a cada segundo.

    — É isso que chefes fazem. Eles controlam essas peças para ter o melhor resultado do jogo… Tanto para o chefe quanto para as próprias peças… E é isso que eu faço.

    O olhar do chefe começou a se estreitar ainda mais. A carne ferida da boca parecia ficar mais viva. É claro, sua calma, até então absoluta, começava a se desfazer.

    — Mas sabe… — disse enquanto bufava forte. — Existe uma coisa que eu… detesto.

    Ele inclinou o rosto para frente, olhando profundamente nos olhos de cada um dos três. Era a primeira vez que olhava com clareza para os intrusos.

    — O que eu mais… odeio… — agora a voz tremia de raiva. — é quando eu não estou no controle. Quando eu não sei o que está acontecendo. Quando peças que nunca vi antes surgem abruptamente no meu tabuleiro sem que eu as tenha colocado lá. Quando algo não faz parte do jogo.

    O homem ergueu o indicador direito, apontando devagar para Niko, depois para Evelyn e, finalmente, para Brigitte.

    — Quando dois mascarados e um chifrudo… três fedelhos insignificantes… surgem do NADA… e bagunçam todas as peças e estratégias perfeitamente postas. Quando eu perco homens, peças valiosas. Quando o tabuleiro, o MEU salão vira um circo. Quando percebo que o meu adversário atual do jogo é o imprevisto…

    A voz dele explodiu.

    — E QUANDO PRINCIPALMENTE VERME NENHUM ACHA QUE PODE ME AFETAR!

    O eco alto tomou a sala. Um vento forte soprou pelos cantos, levantando roupas e balançando cortinas. O rosto dele estava vermelho e os dentes cerrados com fúria.

    — Eu comecei na Wolfranein como um “ninguém”. — continuou, agora avançando um passo por vez. — Eu era só um garoto carregando caixas de ópio e cumprindo pequenos favores. Eu levava tiro, eu apanhava, eu limpava sangue do chão enquanto os outros dormiam. Eu via gente morrer toda semana. Aliado ou inimigo… Falavam que eu iria morrer, ter o mesmo destino do meu pai… E isso não aconteceu, eu sobrevivi.

    O vento soprou mais fraco, mas mais constante do que a última vez, rodopiando ao redor de seu corpo, uma aura fosca e quase invisível.

    — Subi degrau por degrau, sem ajuda, sem herança, sem ninguém para me proteger. Cada avanço eu tive que conquistar. Com estratégia. Com astúcia. Com força. O sangue que tive que derramar. Os ossos que tive que quebrar. Os corpos que precisei enterrar e queimar… Eu consegui tudo isso por mim mesmo. Tudo.

    Ele apontou para o chão, como se o próprio salão fosse testemunha de sua história.

    — Eu conquistei cada centímetro deste lugar. Eu fiz essa organização valer alguma coisa. Eu sou o chefe deste território, porque eu mereci isso.

    O vento rodopiando ao seu redor parou. Somente o silêncio absoluto sobrou na sala. A voz dele baixou, mas ficou mais afiada que qualquer uma das balas disparadas até então.

    — E vocês… acham que podem tirar isso de mim? Acham que vão tirar isso de mim?

    E então, sua postura mudou. Ele se endireitou e abriu o peito. Direto.

    — Eu sou Kael Hinek Ánemo

    Houve um único segundo de silêncio. Somente um. E então, um vento explodiu por todo o salão.

    Uma onda violenta, brutal, invisível e esmagadora varreu por todo o salão inteiro como um furacão contido explodindo de uma só vez. As mesas remanescentes foram arremessadas contra as paredes. Os vidros nas paredes quebraram.

    Os pedaços de gelo criado por Evelyn se racharam. Os corpos dos capangas caídos deslizaram pelo chão. E Niko, Evelyn e Brigitte foram empurrados três metros para trás. Eles colocaram as mãos na frente do rosto, impedindo o vento de chegar nos olhos.

    Kael abriu os braços.

    — …e vocês NÃO vão me destronar!

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