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    Kael sentiu uma onda de um sentimento estranho e distante o cutucar. Sentiu aquilo por todo o seu corpo. A lâmina raspava seu pescoço como um aviso implacável — era a prova final de que ele, Kael Hinek Ánemo, havia sido encurralado como um animal.

    O-o que aconteceu?”, se questionou, ainda confuso.

    A respiração dele mudou, mesmo que por um instante, mas seu rosto permaneceu o mesmo, quase inexpressivo, como se tentasse congelar a própria vergonha dentro da pele. Por dentro, contudo, algo começava a afundar. Uma parte dele entendia que o tabuleiro tinha virado de ponta-cabeça.

    Ele tentou usar o ar, chamá-lo como sempre chamou. Um comando quase inconsciente, instintivo, algo que fez milhares de vezes. Mas o vento não se moveu. O ar não oscilou ao seu comando. Pela primeira vez, a Alma o ignorou — ou talvez estivesse aguardando um comando mais claro, mais decisivo. Mesmo assim, a resposta não veio. O ar parecia apenas observar, não obedecer.

    P-por que não consigo usar minha Alma? O-obedeça!

    Kael pensou em reagir. Pensou em virar o punho, desviar da lâmina, liberar uma rajada curta que afastaria o garoto em meio segundo. Ele imaginava perfeitamente a trajetória: o vendaval poderia subir pela lateral, atingir a foice antes da lâmina atingir seu pescoço e criar espaço suficiente para uma contra-investida. O plano se formou com naturalidade em sua mente, afinal criava estratégias que sempre funcionavam desde criança. Esse era o motivo de que era especial.

    Perfeito. Vou escapar da situação desse modo”, pensou com um sorriso se formando no rosto suado.

    Mas quando seu corpo começou a inclinar o peso para a perna traseira, pronto para ativar o movimento, sentiu algo se mover contra as suas costas — duro, metálico, frio, encostando direto na espinha. Era uma pistola.

    Ele não tinha percebido antes. Niko havia colocado a arma ali no exato ponto onde qualquer tentativa de movimentação mínima seria interpretada como um sinal para atirar.

    Kael congelou. Não por medo — ele jamais admitiria isso — mas porque, de repente, não havia mais rota de cálculo possível. Se reagisse com a Alma, o vento levaria um tempo maior do que a arma de fogo. Ela atravessaria seu corpo antes que qualquer rajada existisse.

    Tentou fazer as contas na mente. Altura do garoto. Distância da arma. Velocidade da mão dele. Tempo de resposta. Nada fechava. Era a primeira vez em anos que uma equação não obedecia à própria lógica dele. A informação era clara: estava preso. Verdadeiramente preso.

    Um gosto amargo velho subiu pela garganta. Era familiar. Ele não sentia aquilo desde a infância, desde aquela derrota estúpida no tabuleiro da escola comunitária. A madeira polida, a luz do sol no verão, a plateia os julgando. O garoto do outro lado da mesa estendendo a mão para ele com um sorriso.

    “Bom jogo”, ele disse enquanto sorria e estendia a mão em sua direção. Aquilo foi uma humilhação completa. A primeira vez que perdeu.

    Filho da puta…”, xingou mentalmente.

    E agora a sensação era a mesma. As mãos de Niko não eram tão calmas quanto as do garoto da infância, mas a humilhação era idêntica. A mesma pressão no estômago. A mesma vontade de negar o óbvio. A mesma vontade de arrancar a cabeça de seu inimigo. A mesma incapacidade de entender como tudo saiu do controle.

    A raiva tomou forma dentro dele como uma nova pele. Não era apenas irritação, era ódio profundo, concentrado, afiado como a lâmina que pressionava seu pescoço. Cada músculo de seu maxilar tremia, implorando para que ele mordesse, arrancasse, destruísse algo, qualquer coisa. Queria esmagar o garoto que o rendia, queria furar os olhos dos capangas inúteis que deixaram aquilo acontecer, queria virar o mundo de cabeça para baixo até encontrar um ponto em que tudo fizesse sentido de novo. Mas nada fazia.

    Kael encarou o chão por um segundo, como se o próprio piso fosse culpado por não ter lhe avisado do golpe final. Seu orgulho foi ferido da forma mais profunda possível, pulsando dor a cada batimento.

    Ele queria urrar, queria virar os braços e transformar o salão em poeira, queria explodir o próprio corpo em vento só para não ter que sentir aquilo. O desejo de reagir era tão intenso que parecia corroer sua espinha. Mas, sempre que sua mente avançava um passo nessa direção, ele sentia a pistola nas costas. Aquela ridícula pistola. E ainda assim, mais poderosa do que sua Alma naquele instante.

    O chefe fechou os olhos por um instante, buscando em si próprio algum argumento que explicasse aquilo.

    Eu previ cada movimento. Eu li cada peça. Eu calculei tudo. Então como esse verme conseguiu chegar aqui? Como eles quebraram meu tabuleiro?

    O orgulho gritava que tinha sido coincidência, sorte, caos, mas não era isso, e no fundo ele sabia da verdade. Eles haviam jogado bem. Melhor do que ele previu. E não havia desculpa possível para isso.

    Ele abriu os olhos lentamente. Niko apertou a foice contra seu pescoço. A pistola encostou ainda mais firme em suas costas. Kael respirou fundo, mas o ar saiu falho.

    Que ironia…

    O salão inteiro observava. Seus homens, seus cães escondidos de medo, suas peças quebradas. Ele, o chefe, o estrategista, o imperador do tabuleiro, rendido por três intrusos que surgiram do nada em seu jogo. Seu perfeito e belo jogo.

    Estava sem palavras. Ele e todos ali. O ar ainda oscilava de leve — um eco distante de sua Alma, que agora parecia tão fraca, tão insignificante. Naquele silêncio, finalmente, a verdade atravessou sua mente:

    Eu perdi.

    Ele abaixou milímetros os ombros. Um movimento quase invisível, mas que denunciava tudo. O sentimento estranho e distante era seu orgulho, mas especificamente, o seu orgulho sendo quebrado, destruído bem na frente de seus olhos.

    Pela primeira vez desde os onze anos, ele não tinha saída. Não havia jogada oculta. Não havia sacrifício engenhoso que pudesse ser feito. Não havia peça escondida no tabuleiro para uma jogada mestre milagrosa. Havia apenas o que pudesse ser visto por todos ali. Era óbvio quem se tornou o vencedor e quem se tornou o derrotado.

    Kael Hinek Ánemo era do segundo tipo. Ele havia sido derrotado.

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