Capítulo 147 - Sant Miquel
A Estação de Loos ainda estava cheia apesar do horário avançado. Às vinte horas, era como se o lugar estivesse no início de tarde. Lanternas a gás iluminavam as plataformas, o vapor quente das locomotivas se misturava ao ar frio da noite e o som metálico de rodas girando ecoava pelo local de teto alto. Pessoas iam e vinham carregando malas, caixas, até mesmo instrumentos musicais, algumas com pressa, já outras calmas.
Niko e Brigitte estavam parados diante do grande mapa ferroviário, montado em uma estrutura de ferro e vidro balístico. Brigitte seguia as linhas com o dedo bom, repetindo o trajeto, enquanto Niko observava em silêncio, memorizando nomes e conexões.
Atrás deles, a Plataforma 08 se estendia, larga, iluminada e relativamente cheia, com bancos de madeira alinhados, algumas latas de lixo e colunas grossas sustentando o teto.
— A gente sai daqui, passa por Colvenfurt… depois vamos pra Riganital e para em Alpenwach… — disse Brigitte, tocando o mapa, mostrando o trajeto para Niko como uma professora.
Ela puxou o dedo para cima e para a direita, seguindo a linha do trem como quem narra uma aventura cuidadosamente. Passando por palavras no mapa: cidades, vilas, rios e um grande lago, focando apenas no trajeto.
— Em Lieuwirk, são duas paradas: Veldemar e Norrhaven. — sorriu de leve. — Essa parte é cheia de canais, vento e cidades que parecem flutuar na água. Li isso uma vez.
Niko inclinou um pouco a cabeça, atento e curioso pelos lugares que passariam.
— E depois?
— Aí vem Arvallia. — o sorriso diminuiu um pouco. — Mais três estações: Clairmont, Rochebrune e Vallcrux… e então Daurlúcia… Estació Centrala d’Sant Miquel.
Ela ficou alguns segundos olhando o nome final, como se aquilo fosse mais do que apenas um destino. Então sorriu de novo, agora de um jeito diferente, orgulho misturado com esperança e algo muito próximo de amor.
— Não pensei que iria voltar para a minha terra natal tão cedo… — murmurou. — E ainda por cima bem na semana do Festival de Independência.
Niko observou a reação dela em silêncio por um momento. Não fazia sentido. Se ela estava tão animada com o festival, por que resolveu ficar em Kyndral e não em Luminara?
— Você fala do festival como se fosse importante. — comentou, com cuidado para não soar agressivo. — Mas até agora não parecia ter planos de realmente… ir pra ele.
Brigitte piscou, surpresa pela observação. O sorriso diminuiu um pouco, não por tristeza, mas por reflexão. Ela apoiou a mão boa na mureta do mapa, pensativa.
— Porque eu nunca planejei voltar pra comemorar. — respondeu, depois de alguns segundos. — Festas são coisas que o povo faz para celebrar vitórias.
Ela então virou o rosto para ele, os olhos violetas pareciam maiores, demonstrando um grau elevado de sinceridade, realçados pela sua pele escura e cabelos cacheados.
— Heróis… pelo menos os que ainda lutam, não comemoram ativamente. — continuou. — Eles criam os motivos pra essas festas existirem.
Niko franziu levemente a testa, o que fez seus olhos brancos e profundos se arregalaram. Finalmente entendeu a visão heróica de Brigitte.
— Então… enquanto você não tiver criado várias e várias festas dessas…
— O festival é secundário. — completou ela, dando de ombros. — Claro, festas são bonitas, importantes, cheias de significado… mas não é o meu objetivo principal curtir elas. Ainda não.
Ela voltou a olhar o nome Daurlúcia no mapa, agora com um sorriso mais contido, mais íntimo. Passou o dedo sobre as letras como se pudesse sentir o relevo da própria terra através do vidro, como se pudesse sentir as ruas, as vozes e os cheiros que tanto adorava.
— Quando eu voltar de verdade para Luminara… — disse, em um tom baixo, quase como uma promessa feita a si mesma. — Eu vou dançar na rua pelo resto da minha vida.
Niko acompanhou o movimento do dedo dela pelo mapa e, por um instante, deixou o olhar escapar para todas as linhas férreas que se espalhavam pelo papel como veias de um corpo de um colosso. Cada traço levava a um lugar diferente. Cada nome, uma possibilidade que ele provavelmente nunca exploraria como queria.
Ele pensou no país em que estava, Kyndral, na capital. Pensou em quantos bairros nunca pisou, quantas histórias ouviu só de longe, quantas rotas ignorou porque sempre havia um caminho mais rápido para fazer. E agora, ali estava ele, prestes a atravessar países inteiros sem sequer tocá-los de verdade. Aquilo despertava um desejo estranho, quase ganancioso de querer ver tudo, saber tudo, viver tudo, mesmo sabendo que isso era impossível.
— Quatorze horas… — murmurou Niko, cruzando os braços. — Três países inteiros.
Brigitte se inclinou para o mapa um pouco mais, animada de novo, como se aquele fosse o assunto favorito dela desde sempre.
— Isso, a primeira parada é Riganital. — estendeu o dedo para o alto, como se fosse falar algo didático. — Sabia que o nome do país significa Vale de Rigani? É por causa do rio Rigani. Ele nasce lá nos picos mais altos, corta os vales e termina no lago gigantesco de… — ela franziu os olhos por um segundo. — Droga, esqueci o nome do lago agora.
Niko soltou um meio sorriso, o canto da boca subiu de leve, quase tímido, enquanto o brilho das lamparinas a gás refletiam em seu rosto.
— Parece um lugar bonito.
— E é! Lá tem casas de pedra, telhados inclinados, vilas pequenas entre as montanhas. Dizem que o povo de lá valoriza o silêncio e é bem pontual. Relógios, trilhas bem marcadas, acordos bem feitos. Tudo muito certinho.
Brigitte, dessa vez, apontou diretamente para Niko com um sorriso grande e cheio de dentes.
— Depois tem Lieuwirk. Duas estações daqui. — o tom mudou, mais casual. — Dizem que a arquitetura e as atividades ao ar livre são ótimas! Além disso, o comércio é bem forte lá também.
Niko assentiu lentamente, o olhar ainda fixo no nome “Lieuwirk”. Aquilo despertou uma memória incômoda. A Guerra Incompleta. Kyndral havia entrado em conflito direto com Lieuwirk, mas o conflito nunca chegou até o fim — como dois jogadores que abandonam o tabuleiro antes do xeque-mate, deixando as peças espalhadas.

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