Capítulo 153 - A Hierofante
O interior da tenda era mais escuro do que parecia do lado de fora. Assim que atravessaram o pano da entrada, o som do festival foi abafado quase por completo. O ar ali dentro era denso, carregado do cheiro adocicado de incenso queimando em pequenos pratos de cerâmica enfeitados espalhados pelo chão.
Tecidos escuros cobriam as paredes improvisadas, alguns bordados com símbolos geométricos, outros com enfeites pendurados. O que mais se destacava ali era a única mesa de madeira que ocupava o centro do espaço, iluminada por duas velas negras, cujas chamas tremulavam suavemente.
— Uau… — murmurou Brigitte, quase sem perceber que falava alto.
Atrás dela, sentada em uma cadeira simples, estava uma mulher. Ela usava um manto curto de tecido leve e escuro, que ocultava o rosto e deixava os antebraços à mostra. A pele era pálida, pálida até demais para o clima quente da capital, contrastando diretamente com as marcas azuladas que serpenteavam por seus braços, formando linhas curvas e entrelaçadas.
— Sejam bem-vindos. — disse a mulher, sem olhar para o grupo, com uma voz firme, sem pressa. — Podem se aproximar.
Com movimentos calmos, quase automáticos, embaralhava um baralho de cartas, enquanto outros objetos — pequenos talismãs, runas de pedra, fragmentos de madeira entalhada — estavam organizados ao redor da mesa. Tudo parecia ensaiado demais, como parte de um ritual que já havia sido repetido inúmeras vezes.
— Hoje não é um dia qualquer. — continuou ela, ainda sem erguer o rosto. — Hoje as estrelas se alinharam para que este encontro acontecesse. Três caminhos distintos… que responderam ao mesmo chamado.
Com apenas uma mão, deixou parte das cartas deslizar para baixo, abrindo o baralho em dois blocos que se separaram e se fecharam novamente em um gesto rápido. Em seguida, sem esperar, os dedos da outra mão dividiram o baralho em vários pequenos montes que se cruzaram e giraram entre si, como um mecanismo articulado.
Por um instante, as cartas pareceram suspensas entre seus dedos, antes de se recomporem em um único baralho, alinhado. Ela mexeu novamente as cartas, deixando-o em forma de arco sobre a mesa.
— Os deuses sussurraram. E vocês ouviram. — repetiu ela, passando o polegar sobre o topo do baralho. — Alguns fingem não escutar. Outros confundem o chamado com o acaso. Mas vocês… vocês cruzaram a cidade, atravessaram o ruído, o calor, a distração, e ainda assim chegaram até aqui. Isso não é coincidência, é o destino.
Brigitte levou a mão à boca, visivelmente encantada.
— Nossa… — murmurou, os olhos brilhando. — Isso é exatamente como eu imaginava. Que legal!
Niko permaneceu em silêncio, de braços cruzados, observando cada gesto com atenção fria. Aquilo soava ensaiado demais. Calculado demais.
— Palavras bonitas. — comentou ele, baixo. — Mas elas não tem poder nem nada. São só palavras bem ensaiadas.
A mulher emitiu um som sob o capuz, como um riso seco. A esotérica então entrelaçou os dedos, como se tivesse a resposta exata para aquele tipo de fala.
— Ceticismo também é uma forma de fé. A fé naquilo que se pode tocar. A fé pelo material, pelo físico, não pelo além. Mas como explicar aquilo além do físico? Além do material?
Brigitte lançou um olhar rápido para Niko, claramente pedindo para ele não estragar o momento.
— Ah, sim, mil perdões, esqueci de me apresentar… — disse ela, fazendo uma pequena reverência, levando a mão direita ao peito e esticando a esquerda. — Eu sou Gwendolyn. Gwendolyn, a esotérica céltica de Daurlúcia. Leitora de caminhos, intérprete de símbolos e ouvinte do que não é dito.
Ela fez uma breve pausa dramática, retornando à pose inicial.
— Se sentirem desconforto… — acrescentou. — É porque a verdade raramente entra em silêncio…
Então, pela primeira vez, ela levantou o rosto. Levou o capuz para trás, revelando seus cabelos castanho-ruivos e ondulados, caindo soltos até a altura dos ombros. A luz das velas iluminou seu rosto, seus olhos verdes e sardas. Além disso, as marcas azuladas continuavam ali, desenhadas por todo o rosto.
— E desse silênc-
A próxima frase de efeito de Gwendolyn foi cortada no início. Os olhos da esotérica se arregalaram de forma tão repentina que toda a teatralidade anterior se despedaçou em um único instante. O olhar dela se fixou em um ponto específico, acima do rosto de Niko.
— O que foi? Algum problema? — perguntou o albocerno.
— Chi— chi— chi… — ela engasgou com as próprias palavras. — Chifres de cervo?!
Com um movimento rápido, a garota mística se levantou. Com o movimento, o manto curto se abriu o suficiente para revelar o restante de suas roupas: uma camisa simples ajustada ao corpo, em tons escuros, presa por tiras de couro; calças resistentes de tom azul escuro; e botas altas de couro. Não havia joias extravagantes nem tecidos finos demais. Tudo nela parecia feito para movimento e sobrevivência — destoando da imagem puramente mística que tentava vender.
— Vo-você tem chifres de cervo na cabeça! — exclamou, alto demais para alguém que se dizia mística experiente.
Brigitte piscou, confusa. Aquela reação não fazia sentido. Albocernos não eram comuns, mas também não eram lendas — ao menos não a ponto de alguém se assustar daquele jeito.
“Será que Gwendolyn vinha de um lugar onde eles eram ainda mais raros? Ou, pior, será que havia algo de estranho nos chifres de Niko?”, ela pensou.
Ela analisou o formato com mais atenção. Eram grandes, sim, mas simétricos. Lisos demais em alguns pontos, ásperos em outros. Pareciam normais. Mas pensando bem…
“Já não deveriam ter caído no início do inverno?”
Afinal, os chifres de cervo caem no inverno. Sempre caem. Mas os de Niko nunca caíram e nem pareciam perto de cair.
“Aquilo era normal para um albocerno? Ou só estou pensando demais?”
— Ué… sim? — disse, olhando para Niko, analisando se havia algo de errado com seus chifres. — Ele sempre teve isso. — terminou ela, dando dois toquinhos nos chifres do garoto, que recuou um pouco com o toque íntimo.
— Sim. — respondeu, dessa vez, Niko. — Eu sou um albocerno, eu tenho chifres justamente por isso.
Evelyn franziu levemente a testa, agora observando Gwendolyn com mais atenção do que curiosidade. Talvez ela fosse uma envolvida do esquema de tráfico sapiente, ou até mesmo da organização que estava perseguindo Niko. Todo cuidado era pouco agora.
— Tá tudo bem com você? — perguntou ela, cautelosa.
O silêncio que se seguiu se arrastou por tempo demais. Não era um silêncio confortável, nem respeitoso. Um silencio tão forte, que se pode ouvir as velas estalarem baixinho, e o incenso arder mais. Gwendolyn parecia prestes a dizer algo mais. A boca dela então se abriu novamente.
— Isso é… — ela começou outra vez, a voz mais baixa, menos ensaiada.
Gwendolyn fechou os olhos por um instante, como alguém que percebeu que havia falado mais do que deveria — pelo menos por ora. Inspirou fundo, soltando o ar lentamente, recompondo a postura, os ombros e a expressão.
— Perdão. — disse, recompondo-se às pressas. — Perdão, foi… uma reação inadequada.
Ela passou a mão pelo rosto, forçando o corpo a relaxar, voltando a sentar na mesa como se nada tivesse acontecido, voltando ao profissionalismo da grande esotérica que era.
— Vamos… — continuou, ajeitando as cartas à sua frente. — Vamos começar logo a sessão.
Mas, mesmo enquanto ela falava, seus olhos ainda retornavam involuntariamente a Niko, como se ele fosse uma incógnita que ela não estava pronta para responder — ou algo ainda para ser decifrado.

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