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    — Número 1208! — gritou o híbrido de lobo, com um cachimbo pendurado no canto da boca.

    Na mesma hora, um homem adulto, sem camisa, se levantou e caminhou até o centro da sala, atendendo ao chamado.

    O híbrido estava sentado atrás de uma mesa de madeira, no meio de uma sala abafada, cercado por dezenas de outros homens sentados em bancos de madeira. As paredes de tijolo aparente davam ao lugar uma sensação de cativeiro, como se todos ali estivessem presos sem direito à liberdade. No ar, havia um cheiro misturado de suor, madeira velha e fumaça de tabaco.

    Humanos, híbridos, orcs, elfos… todos homens. Todos ali exibindo seus corpos: musculosos, magros ou um pouco mais gordos. A maioria com cicatrizes, tatuagens, ou marcas de uma vida dura.

    Todos homens adultos… menos uma. No canto da sala estava Evelyn. A garota de cabelos grisalhos e orelhas pontudas. Sentada em uma cadeira, com as mãos entre as pernas abertas. Fazia vinte minutos que estava ali, raspando com as unhas um pequeno cristal de gelo criado por sua Alma, derretendo na palma da mão. Uma poça d’água estava se formando lentamente debaixo dela. Mas ela não se importava. Por que se importaria?

    Ela não falava. Mal piscava. Apenas olhava fixamente para o chão, com a expressão vazia de quem está presa em um buraco que não sabe como sair. Esperando por algo.

    — Número 1209!

    O homem ao lado de Evelyn se levantou e caminhou. Ela continuou imóvel, os dedos ainda arranhando o gelo, agora quase translúcido.

    — Parece que somos as únicas mulheres aqui… — disse uma voz ao lado dela.

    Evelyn desviou os olhos devagar. Uma mulher de cabelos pretos, longos, estava sentada ao seu lado. De pernas cruzadas, postura ereta, mãos repousando com elegância ao lado do banco. Ela tinha um olhar calmo, mas penetrante. Era a definição de “elegância feminina”, o completo oposto da postura de Evelyn.

    A elfa apenas a encarou de canto, sem mudar de expressão, e logo voltou a olhar para o chão de madeira escura.

    A mulher diminuiu um pouco o sorriso, parecendo ter se chateado, descruzou as pernas e ajeitou-se, como se tomasse um ar mais sério.

    — Eu sei como você tá se sentindo. Mas se esconder dentro da própria cabeça e ignorar o mundo a sua volta não vai melhorar nada. Só piora. Confia em mim. — disse ela, com uma voz mais baixa. — Meu nome é Clementine. E o seu?

     Apenas silêncio. Clementine esperou pela voz da garota, mas ela não veio. Depois de alguns segundos, quando já parecia que não teria nenhuma resposta, Evelyn finalmente murmurou algo:

    — …Evelyn…

    Ainda olhando para o chão. Ainda raspando o gelo.

    A mulher levantou uma sobrancelha, levemente surpresa por ter conseguido uma resposta de alguém tão antissocial.

    — Nome bonito.

    — Número 1210!

    Ambas ficaram quietas por um tempo. A sala era preenchida apenas por conversas aleatórias de fundo, que não tinham nenhuma importância para Evelyn.

    — Então… — Clementine retomou. — Por que você veio se alistar?

    Evelyn não pensou. Não filtrou. Nem sequer cogitou em não responder. Apenas expôs seu mais profundo desejo.

    — Para destruir Lieuwirk.

    A resposta saiu rápida, crua. Sem hesitação. Ela não tinha planejado dizer aquilo, mas era a verdade. A verdade mais honesta e suja que estava na ponta da garganta desde aquele maldito dia. Vingança. O desejo que tinha arrancado ela da cama, a força que a fez parar de chorar noites inteiras abraçada ao travesseiro. A única coisa que fazia o coração dela continuar batendo, quando tudo o resto parecia querer parar. Vingança por seu pai. Por todas as pessoas que aquele bombardeio tinha ceifado. Por cada vida arrastada junto com a escola, junto com os amigos, os professores, tudo.

    — Eu vou entrar no exército… — ela sussurrou, com os dentes cerrados — …torcer o pescoço e arrancar a cabeça de cada maldito lieuwirkiano que cruzar meu caminho… Não importa quem seja… Vou fazer eles se arrependerem de terem nascido. Vou fazê-los sofrer. Igual como minha mãe sofreu. Igual como eu sofri.

    O cristal finalmente quebrou. Dois pedaços caíram da mão dela e caíram na poça de água já formada no chão.

    Clementine encarou a garota. Não pela resposta em si, mas pela forma como foi dita. Tão carregada de ódio e saindo de alguém tão jovem. Ela ficou alguns segundos em silêncio, observando a sala ao redor. Suspirou, balançando a cabeça de leve.

    — Esse bombardeio mexeu mesmo com você, hein… — disse ela em um tom misto de compreensão e preocupação.

    — Número 1211!

    — Falta mais um… — Evelyn murmurou, agora olhando para frente com uma estranha ansiedade. As mãos tremiam levemente sobre os joelhos. As pernas batiam sozinhas no banco. O coração parecia querer escapar do peito. Estava perto…

    O silêncio durou até Clementine se inclinar um pouco, falando em voz baixa:

    — Só um conselho. — disse ela, com um sorriso torto. — Não fala essas coisas pro avaliador, tá? Se ele achar que você é descontrolada ou sedenta demais por sangue, você pode acabar levando um “não”. E, bem… você já é uma mulher… e menor de idade também… as chances não estão exatamente a seu favor. Tenta… sei lá, parecer uma patriota bem intencionada.

    A elfa congelou. Ela não tinha pensado nisso. No que falaria durante a entrevista. Não tinha preparado nenhuma frase. Nenhum discurso. Nenhuma justificativa convincente para ser aceita. Estava tão cega pela própria raiva que tinha esquecido de pensar no básico: ela precisava passar.

    “Pensa, Evelyn. Pensa.”

    Mas o tempo já tinha acabado antes mesmo de algo surgir em sua mente.

    — Número 1212!

    Ela engoliu seco. Não tinha outra escolha ao não ser se levantar. As pernas pareciam feitas de chumbo. Cada passo em direção ao centro da sala era como caminhar com correntes presas às pernas.

    Sentou-se de frente ao híbrido de lobo, que agora a observava por cima de um par de óculos pequenos em relação ao rosto, com um papel em mãos e o cachimbo ainda no canto da boca.

    — Evelyn Bauer Gélis… — leu ele em voz alta. — Hm, se você não tivesse uma Alma, eu mandava direto pra casa com uma bronca. — tirou o cachimbo da boca e soltou um sopro de fumaça.

    Evelyn sentiu um misto de alívio e medo. Alívio por ter passado na primeira parte do teste — a primeira impressão —, mas medo de tudo o que ainda vinha pela frente.

    — Nome do pai.

    — Franz Bauer.

    — Nome da mãe.

    — Emilia Bauer Gélis.

    O avaliador fez um breve “hum” de aprovação ao ler a ficha preenchida. Depois virou a folha.

    — Sem problemas de saúde… sem alergias… ótimo.

    E então veio a pergunta que tanto pensava sobre.

    — Por que quer servir no Exército, garota?

    Ali estava. O momento de tudo. O corpo inteiro de Evelyn travou por um segundo. Mas ela engoliu a saliva e falou a primeira frase que conseguiu formular:

    — Para proteger minha pátria dos lieuwirkianos, senhor.

    O homem ergueu uma sobrancelha, cético. Não parecia acreditar muito na resposta.

    — “Proteger a pátria”… seu pai serviu?

    — Não, senhor. Ele era professor. — respondeu Evelyn, apertando ainda mais os punhos.

    O híbrido soltou um sopro curto pelo nariz, como quem achava a resposta previsível.

    — Então por que você, logo você, quer ir pra guerra?

    A elfa travou. Não sabia o que responder. As palavras simplesmente sumiram da mente dela. Evelyn encarava o inspetor, mas nenhuma resposta vinha. A garganta parecia seca e o peito mais pesado. Era como se, por um segundo, ela tivesse esquecido o real motivo de estar ali.

    O inspetor, vendo o silêncio prolongado, apenas soltou um suspiro entediado. Sem dizer uma única palavra, ele estendeu a mão em direção aos carimbos. Evelyn viu o movimento em câmera lenta. O inspetor pegou um deles. Levantou o selo. Estava prestes a descer o carimbo sobre o papel.

    Mas antes que o carimbo tocasse a folha, Evelyn respondeu, com a voz saindo mais alta do que ela mesma imaginava:

    — Porque Lieuwirk matou ele!

    O homem parou o movimento no ar. O carimbo ficou suspenso, congelado por um segundo.

    As mãos de Evelyn tremiam nas coxas. A boca ficou branca. E o olhar estava cheio de uma determinação frágil. A única coisa que mantinha ela de pé era os centímetros de distância entre a tinta do carimbo e a folha.

    Lieuwirk não pode se safar dessa. O tanto de vidas inocentes que eles tiraram… isso não é justo! Por favor, me deixa entrar no Exército. Eu quero justiça pelas pessoas que Lieuwirk matou… justiça pelo meu pai… por favor…

    Conforme discursava, a breve lembrança do pai veio. Se lembrou dos momentos felizes com ele. Dos momentos em que ele a ajudou a estudar para as provas. Quando foram pescar. Em quase todos os momentos felizes da vida ele estava ao seu lado… Ele foi arrancado dela…

    O olhar atingiu o chão. Quando os olhos estavam prestes a se encherem de lágrimas… THUMP. Um som de madeira batendo preencheu o ar.

    Ela levantou lentamente a cabeça. O que viu a fez crescer uma chama no peito e os olhos brilharem de emoção. No documento, a palavra “Aprovado” estava em verde.

    — Ajude a salvar nosso país, garota. — disse ele, com um olhar um pouco mais sério dessa vez. — Acredito em você.

    Evelyn sentiu as pernas fraquejarem. Não de medo. Não de insegurança. Mas de emoção. De satisfação. Mesmo tremendo, ela conseguiu sustentar um sorriso no rosto.

    — Obrigada, senhor… Vou dar meu melhor!

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