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    Em uma grande sala escura, centenas de beliches estavam organizadas como peças de um gigante tabuleiro. Sobre cada cama, soldados dormiam profundamente. Dormiam até que o dever os chamasse.

    E então o som começou, uma música, de só um instrumento, um trompete. Primeiro uma nota longa, firme e constante, depois uma sequência rápida de notas curtas. Era o toque da alvorada, o alerta para os soldados de que era hora de acordar.

    O som se espalhou, acordando os soldados um a um. Alguns saltaram da cama com uma disciplina automática, já outros demoraram alguns segundos a mais, bocejando e esfregando os olhos. Mas todos sabiam: era hora de começar o dia.

    No meio deles, de olhos já abertos antes mesmo da música começar, estava uma elfa de cabelos grisalhos que permanecia deitada na parte de baixo da beliche, encarando o estrado da cama de cima com um olhar fixo e determinado. Essa era Evelyn.

    Então é hoje…”, pensou ela.

    Ela soltou um longo suspiro e, sem pressa, se levantou, seguindo o fluxo de soldados que já começavam a sair da sala.


    (14/04/4492)

    O campo de treinamento era gigantesco. Um espaço aberto, coberto de terra batida e alguns pequenos pedaços de grama amarelada, como se o solo tivesse sido violentado por anos de passos pesados e quedas brutas.

    O céu estava limpo, com poucas nuvens espalhadas pela imensidão do  azul-claro. O vento era gelado, o suficiente para fazer os soldados que ainda estavam com sono — mesmo que bem vestidos — estremecerem de leve.

    Os soldados estavam alinhados em fileiras extensas. Blocos de oito homens em cada linha. Todos usando o mesmo uniforme: preto com detalhes em vermelho nas mangas e na gola do pescoço. Um tecido grosso, feito para resistir a sujeira e o frio.

    O chão tinha marcas de pegadas secas, algumas flores brotando nas bordas do campo e pedaços de madeira quebrada das aulas práticas da companhia anterior.

    Aquele cenário parecia engolir Evelyn. Ela se sentia pequena no meio de tanta gente. Pequena e observada. Com sussurros vindo de vários cantos. Não eram altos, mas eram o suficiente para que ela pudesse notar.

    — Que diabos uma pirralha tá fazendo aqui…?

    — Isso é piada? Mandaram uma mascote pra gente?

    — Deve ser filha de algum oficial, só pode…

    Alguns riam de forma abafada. Outros só encaravam. Evelyn fingia que não ouvia, mantendo a postura firme. Ombros retos, pés afastados, mãos entrelaçadas atrás das costas. Não daria o gosto de parecer fraca. Iria provar que era melhor que todos ali mantendo a calma de um soldado ideal, mesmo que, no fundo, que olhar machucasse.

    O tempo parecia se arrastar. Já estavam ali parados fazia quase uma hora, só esperando. Alguns soldados mais relaxados começavam a balançar as pernas, outros coçavam o pescoço ou mexiam nos dedos por ansiedade. Os mais disciplinados permaneciam imóveis como estátuas.

    Evelyn tentava ser uma dessas estátuas. Mas o incômodo crescia. As pernas coçavam de ficar tanto tempo na mesma posição e os ombros começavam a doer

    E isso é só o começo…” pensou, cerrando os dentes.

    Foi então que, cortando o silêncio:

    — Atenção, homens! Em formação!

    O efeito foi imediato. Os mais distraídos endireitaram o corpo com tanta velocidade que pareciam ter levado um choque. As conversas morreram. O som dos calcanhares se unindo ao solo ecoou em sincronia. Agora todos estavam em alerta.

    Entre os soldados, caminhando com passos largos, surgiu o comandante. Um homem alto. Forte. De ombros largos como uma muralha. Um bigode grosso que transparecia imponência e estilo. O rosto agressivo, com linhas de expressão profundas, como se fosse esculpido por anos de gritaria e noites mal dormidas. Um homem acostumado a transformar homens em soldados e a destruir os que não aguentavam.

    Usava um cabeça com uma ponta afiada na cabeça, era o único de lá que tinha um. Em seu uniforme havia dezenas de medalhas, que refletiam a luz do sol enquanto ele passava entre as fileiras.

    Os olhos dele escaneavam cada recruta como se buscasse defeitos. E era isso mesmo que fazia, buscava por moleques que se achavam soldados. Por “idiotas inúteis”.

    Quando chegou na terceira fileira, parou. A confusão foi visível no rosto dele. Diante de si, viu uma garota. Baixinha, de orelhas pontudas. No meio de centenas de homens adultos. Uma sobrancelha tremeu involuntariamente. Ele sabia que uma mulher estaria na companhia, mas não esperava que seria uma criança.

    Houve um segundo de silêncio absoluto. Todos ficaram ansiosos. Evelyn engoliu seco, começando a suar frio.

    — VOCÊ! ANÃ DE JARDIM! QUAL É O SEU NOME?!

    Evelyn sentiu o estômago gelar. Já esperava ser notada, mas não daquele jeito tão chamativo. “Anã de jardim… que humilhante.”, pensou consigo mesma. Mesmo assim, respirou fundo e respondeu com prontidão:

    — Evelyn Bauer Gélis!

    — EU NÃO OUVI O QUE VOCÊ DISSE!

    — MEU NOME É EVELYN BAUER GÉLIS! — gritou a garota, tentando ficar no mesmo tom do homem.

    — QUERO QUE TODA FRASE SUA TERMINE COM “SENHOR”! ENTENDIDO?!

    — SIM, SENHOR!

    Eu vou ter que seguir essas regras sempre que for responder ele? Nossa, que saco.”, pensou a garota, ainda abalada pela humilhação que estava passando.

    — ENTÃO ME DIGA, EVELYN! POR QUE VOCÊ TÁ AQUI?! POR QUE NÃO TÁ COM AS OUTRAS GAROTAS SUTURANDO FERIDAS E PASSANDO POMADAS?!

    — ME DESIGNARAM PRA AQUI, SENHOR!

    — AH, FOI?! E POR QUÊ?! POR ACASO VOCÊ É ESPECIAL?!

    — NÃO, SENHOR!

    — ENTÃO TÁ ME DIZENDO QUE O MEU SUPERIOR É UM COMPLETO IDIOTA?! QUE ELE NÃO SABE FORMAR COMPANHIAS DECENTES?!

    — NÃO, SENHOR!

    — ENTÃO FOI O INSPETOR DO ALISTAMENTO?! ELE ERA UM JUMENTO?!

    — NÃO, SENHOR!

    — ENTÃO VOCÊ TÁ AQUI PRA QUÊ?! PRA SER UM ALVO DE TREINAMENTO!?

    Evelyn respirou fundo. Aquilo era autodestrutivo… mas era o que ele queria ouvir.

    — SIM, SENHOR!

    — VOCÊ É MELHOR COMO ALVO OU COMO SOLDADO?!

    — COMO ALVO, SENHOR!

    — PERFEITO! VINTE FLEXÕES! AGORA!

    Sem hesitar, ela caiu no chão com as palmas das mãos e começou. Cada flexão era como empurrar o próprio orgulho contra o chão. A cada descida, o rosto dela ficava mais vermelho de vergonha… e de ódio por ter passado por toda aquela humilhação sem sentido.

    Sua garganta queimava pelos gritos, junto com os pulmões pelas flexões inesperadas. Os braços tremiam já na oitava repetição, mas ela forçava o corpo como se aquela dor fosse a única forma de engolir o orgulho ferido. A cada subida, ela jurava mentalmente que não deixaria uma lágrima sequer escapar.

    O major, enquanto isso, já nem olhava mais pra ela. Virou-se de costas, andou até o centro do campo e começou a discursar para os outros recrutas como se ela fosse apenas mais uma pedra no chão.

    — ESCUTEM BEM, SEUS VERMES! — a voz dele rasgou o ar. — O INIMIGO ATACOU NOSSA CASA! MACHUCOU NOSSO POVO! DESTRUIU NOSSA HONRA!…

    Evelyn mal conseguia ouvir. As palavras do comandante pareciam vir de longe, como se ela estivesse debaixo d’água. A única coisa que ouviu no início do discurso era que o superior se apresentou como “Major Weber”.

    — …E AGORA CABE A NÓS FAZER COM QUE CADA MALDITO LIEUWIRKIANO SE ARREPENDA DE TER MEXIDO COM A GENTE!…

    Ela já estava na décima sexta flexão. As mãos escorregavam um pouco na poeira misturada com o próprio suor. O peito continuava queimando e os ombros doíam. Mas mesmo com os braços quase cedendo, ela continuava.

    — …QUERO SOLDADOS QUE SEJAM PARECIDOS COM AÇO, NÃO COM VIDRO! SOLDADOS QUE QUEBRAM OSSOS DO INIMIGO E NÃO OS PRÓPRIOS!…

    A voz dele agora parecia um trovão direto dentro da cabeça dela. Os gritos de apoio dos outros soldados encheram o campo. Eles berravam junto com o comandante como se a guerra estivesse começando ali mesmo, naquele instante.

    Evelyn terminou a vigésima flexão com um último impulso de força. Estava ofegante, os braços tremendo como galhos frágeis em uma tempestade.

    Ela ficou de joelhos por um segundo, recuperando o fôlego, com o rosto ainda coberto de poeira e suor. Então, antes que o major pudesse notar, se levantou rápido e voltou para a posição de descanso, os punhos fechados atrás das costas, o olhar firme e o queixo erguido, prometendo para si mesma naquele momento, que seria melhor que todos ali.

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