Capítulo 29 - Dia 1 III
— POW! Viu só? Bem assim! — exclamou a elfa, girando o rifle e apoiando-o no ombro com uma expressão vitoriosa. Ela havia acabado de acertar os dez alvos seguidos no campo de tiro.
— Tá… agora eu admito, um pouquinho, que você talvez seja útil… — respondeu Otto com um meio sorriso de canto.
— Um pouquinho? — Evelyn fechou um olho, olhando pra ele com arrogância. — Eu fui a única a acertar tudo aqui! Não sei se você percebeu isso… Aliás, você só acertou três alvos, parabéns pelo vexame.
— De que adianta saber atirar se você mal consegue fazer flexões?
Assim continuou a discussão. Evelyn querendo provar, de todas as formas possíveis, que era capaz, e Otto provocando de propósito só para irritar. Era um duelo de teimosias. Pareciam até duas crianças discutindo.
— Parem vocês dois! Agora! — a voz de Nowak cortou o ar como uma navalha afiada. O sargento os encarava com uma seriedade que congelou até quem não estava envolvido na briga. — Estamos em guerra. Vidas dependem de nós. Vocês querem mesmo escolher discutir ao invés de treinar pra proteger nosso povo?
— Não, senhor. — responderam os dois ao mesmo tempo, de cabeça baixa. Arrependidos e culpados.
— Então, de volta ao treinamento!
O próximo exercício envolvia alvos móveis. Corridas contra o tempo. Disparos deitado, ajoelhado, em pé. Em todos os casos, Evelyn mantinha o mesmo desempenho impressionante. Ela liderava o esquadrão em primeiro lugar em todas as provas. Kilian e Paul disputavam o título de piores da turma, enquanto Otto — relutante em admitir — começava a olhar pra ela com um pouco menos de superioridade.
Duas horas antes do pôr do sol, Nowak reuniu o grupo para um treino técnico: desmontar, montar e fazer manutenção no rifle padrão do Exército de Kyndral. Saber como cuidar da arma era essencial. Caso a arma tivesse algum defeito, o soldado deve sempre saber como identificá-lo e resolver dentro de seu espaço de opções.
O tempo passou. Quando o céu já começava a ganhar tons alaranjados, o sargento dispensou a tropa para o jantar. Mas Evelyn não foi comer. Ela não estava com fome. O cansaço físico tinha vencido o apetite. Sem pensar duas vezes, foi direto para o dormitório.
De pé, encarando sua cama, ela respirou fundo. O colchão barato e o travesseiro de penas, eram incrivelmente convidativos. Sem nem tirar o uniforme, ela se jogou de bruços, soltando um gemido abafado de alívio.
Foi quando sentiu algo estranho debaixo do corpo. Levantou-se um pouco e puxou o que era: uma carta. O envelope estava amassado, mas ainda era possível ler o nome do remetente. Era o nome da mãe, com a caligrafia torta e cheia de voltas. Curiosa e com o coração aquecido, ela abriu e leu.
Oi, filha.
Eu ainda não acredito que você está mesmo no Exército… Quando eu tinha a sua idade, eu mal sabia o que queria fazer da vida! E você… você já está aí, tomando uma decisão dessas. Uma escolha madura, difícil… mas sua. E por isso, mesmo com o coração apertado, eu estou muito orgulhosa de você.
Sei que as últimas semanas antes de você partir não foi exatamente… fácil pra gente. As brigas, os gritos… depois da… bem, você sabe o que. Eu devia ter escutado mais… devia ter entendido melhor os seus motivos. Mas o que eu quero que fique claro, de verdade, é que… mesmo com tudo aquilo… eu nunca deixei de te apoiar, e principalmente, te amar. Nunca.
Aqui em casa, está tudo mais silencioso do que o normal. Até as manhãs parecem esquisitas sem sua bagunça. A mesa do café parece maior. O corredor parece mais vazio. Isso é… estranho, até a cidade parece mais sozinha…
Eu tô morrendo de saudades. De verdade. Quero te ver de novo. Logo. Quando você voltar, prometo que a gente vai no Gostmark. Pode pedir o prato mais caro do cardápio. Juro que eu deixo.
Se cuida, tá? Me responda quando puder.
Com todo meu amor, Mamãe.
Evelyn sorriu. Foi um sorriso pequeno, mas sincero. Pela primeira vez no dia, ela sentiu o peito aquecer de verdade. Dobrou a carta com cuidado e a colocou debaixo do travesseiro, ainda sorrindo.
“Eu vou escrever uma resposta pra ela amanhã… agora eu só quero dormir…”, pensou enquanto bocejava.
— Ahhh, que dia cansativo… Eu quero dormir pra sempre. — murmurou, afundando o rosto no travesseiro fofo.
— Pois é. Foi puxado mesmo. — disse uma voz masculina à direita dela.
Evelyn virou o rosto com calma. Ela conhecia aquela voz, mas só agora se deu conta de quem era. Nikolas. O recruta de cabelos loiros e olhos avermelhados. O segundo melhor atirador da turma, depois dela. Sentado em sua própria cama, a debaixo da beliche ao lado.
— Até dormir juntos a gente vai, é? — disse ela, num tom meio ranzinza, meio brincalhão.
— Pois é… espírito de equipe, né? — respondeu ele, com um sorriso cansado. — Se lutamos juntos, então comemos juntos, dormimos juntos e… morremos juntos… Pelo menos foi o que meu avô me dizia. Ele foi voluntário na Guerra de Ventoria.
O comentário tirou o pouco de humor que ela tinha. Evelyn fez uma careta de desgosto. “Até parece que alguém do nosso time vai morrer. Essa regra não se aplica à gente!”, seria o que ela iria responder, caso tivesse alguma energia para soltar sua voz.
— Então… por que você se alistou? — perguntou Nikolas, quebrando o silêncio.
— Pra vingar quem morreu e quem ficou ferido no bombardeio de Colvenfurt… — respondeu ela, com a voz já arrastada de sono.
— Você é de lá, então?
Ela só balançou a cabeça.
— Eu sou de Eisbruch… — ele continuou. — Uma vila pequena… meio esquecida. Aposto que você nem ouviu falar.
Evelyn não respondeu. Não era por desinteresse. Era só cansaço. Ela fechou os olhos, tentando pegar no sono.
— Sua decisão foi bem burra, sabia? — disse Nikolas de repente, num tom quase provocativo.
Ela abriu os olhos de novo, irritada, virando o rosto para o lado.
— Por que foi burra?
— Porque você ainda é só uma criança. Não devia estar aqui. Devia estar com sua família… com amigos… brincando… vivendo. Não se metendo em uma guerra que nem é sua. — Nikolas cruzou os braços, olhando pra frente. — Se você morrer vai deixar eles com o coração quebrado.
Evelyn franziu a testa, sentindo o sangue ferver de novo. Ela odiava quando a chamavam de “criança”, “mascote” ou coisa do tipo. Sempre achou isso injusto. Ela era forte. Tinha uma Alma. Sabia até atirar melhor que todos ali. Não ia morrer tão fácil!
— Essa guerra é minha sim! — rebateu, sentando-se na cama com os punhos cerrados. — Eu não vou morrer, eu vou sobreviver e deixar a minha família orgulhosa por eu ter sido uma ótima soldada! Vocês ficam falando tanto sobre eu sair das forças armadas, mas eu acho que vocês deviam fazer isso. — ela apontou o dado para o garoto. — Você que deveria sair!
Nikolas olhou pra ela de lado. Abriu um sorriso curto e sem humor, como se já esperasse aquela resposta.
— Bem que eu queria ter essa escolha… — disse ele, de forma quase inaudível.
A garota ficou confusa por um instante. Parou de apontar o dedo e levantou uma sobrancelha.
— Como assim?
— Fiz dezesseis anos mês passado, então eu fui obrigado a me alistar. Se eu não fizesse isso, minha família pagaria uma multa cara e eu iria preso.
— Ou eu vinha pro inferno, ou minha família iria sofrer… Por isso que falei que era uma escolha burra, porque se eu fosse você, escolheria diferente, não iria querer ir pro inferno.
Essas últimas palavras pegaram Evelyn de surpresa. Ela ficou em silêncio, deitada outra vez. Pela primeira vez no dia, ficou sem ter o que responder. Ela tinha escolhido estar ali. Nikolas não. Aquilo a fez pensar. Isso não era justo. Nikolas devia ter alguma escolha, assim como Evelyn teve.
Sem mais forças para pensar, ela apenas se virou para o lado, bocejou e começou a tirar o casaco e as botas, se preparando pra finalmente descansar. Cobriu-se com o lençol rústico e, antes que qualquer outro pensamento surgisse, adormeceu.
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