Capítulo 3 - Conversa
— É aqui, chegamos.
Niko e Evellyn chegaram no acampamento. A região não tinha tantas árvores, o que o fazia ter uma aparência bem agradável, se diferenciando um pouco da visão monótona da floresta. O acampamento estava ao lado de uma das únicas árvores do local e uma carroça coberta de neve, estranhamente sem nenhum animal que pudesse a puxar. Havia uma barraca de acampamento de cores laranja e amarelo, consideravelmente grande, também coberta de neve, e na frente dela, uma fogueira apagada.
— Nada melhor do que voltar para sua casinha provisória depois de umas longas horas de caminhada. — disse Evellyn, suspirando e se deixando cair de costas no chão, como se a neve fosse sua cama. — Ah, verdade.
Evellyn se levantou, chegando próxima à fogueira apagada, a acendendo. Tirou sua mochila das costas, colocou a do seu lado e se sentou próxima ao fogo, encostada na árvore. Niko seguiu a garota e sentou-se à sua frente, de pernas cruzadas, do outro lado da fogueira, colocando seu braço quase que dormente próximo ao fogo.
— Então, o que você gostaria de saber primeiro? Só para avisar que eu não sou um dicionário ou pesquisadora, então não sei de coisas tão específicas, eu sou só uma mercenária.
Niko não sabia muito bem sobre o que queria saber primeiro, ele não tinha ideia do que poderia ser apresentado primeiro nesse mundo. Eram tantos jeitos de começar a conversa que ele até ficava confuso quando pensava em mais e mais coisas que ainda sabia. “Que país estamos?”, “Que dia, mês e ano é hoje?”, “Tem algum motivo do porquê eu não tenho memórias?”, esses pensamentos batiam com força na cabeça de Niko, parando quando pensou melhor na última fala de Evellyn.
— Você disse que era uma mercenária? Significa que mata pessoas e essas coisas se te pagarem?
Não foi nem de perto a melhor pergunta que Niko poderia, ou queria fazer, mas essa era a questão que estava mais curioso sobre, mesmo sendo um pouco ousada para perguntá-la a Evellyn.
— Você acertou, agora que sabe disso, não poderei mais te deixar sair vivo daqui! Uhahaha! — riu Evellyn, brincando, definitivamente não esperando por essa pergunta. — Claro que não, bobo. Eu ser uma mercenária significa que eu só faço certos serviços que me dão um bom dinheiro. Serviços que ninguém quer fazer porque são perigosos, tipo escoltar itens e pessoas para lugares ou caçar algum animal perigoso, tipo o que eu estou fazendo agora. Eu até já matei algumas pessoas, mas foi só em legítima defesa. Eu nunca mataria alguém só por dinheiro.
Niko ficou aliviado, pelo menos não tinha uma assassina à sua frente. Também era a resposta que esperava, alguém como ela não seria o tipo de pessoa que matasse alguém por algo tão simples como dinheiro.
— Desculpa se for um assunto sensível isso, mas como você ganhou essas cicatrizes?
— Isso não é um assunto sensível, não, relaxa. Eu ganhei essas cicatrizes por conta de uns piratas numa batalha que participei no mar de Saqiien. Era quando eu e meu antigo grupo tivemos que exportar um navio de Tevesco até Braqielus. — percebendo que Niko provavelmente não sabia o significado daquelas palavras, Evellyn complementou. — Esses são dois países, depois eu te dou um livro de geografia e você dá uma olhada nele, pode ser?
O jeito com que Evellyn contava a história de como ganhou suas cicatrizes no rosto, até mesmo dos países que visitou, era de maneira empolgada. Cada palavra que saía de sua boca era um sentimento incrível que ela parecia estar tendo. Aparentemente, ela adora contar as histórias que teve e Niko, mesmo que não demonstrasse bem, gostou de ouvir uma delas.
— O único país que você precisa conhecer no momento é Franell. Esse é o reino em que estamos agora.
Agora Niko sabia a nação de onde estava e que havia outras nações a mais que ele podia saber sobre. Uma onda de curiosidade o atingiu, querendo saber mais sobre as nações deste mundo.
— Ah, você sabe ler, não é, Niko?
— Eu não sei. Eu não tenho memórias de ler algo, mas sinto que é familiar o sentimento de ler. Talvez eu não tenha me esquecido disso.
— Então me dá uns segundinhos
Evellyn pegou de sua mochila um pequeno caderno e uma caneta, começou a escrever ou desenhar alguma coisa nele, concentrada.
— Sabe o que está escrito aqui? — falou ela enquanto mostrava o caderno ao garoto. “Du weißesh чitat’?”, era o conteúdo escrito no papel.
Niko, no momento em que colocou os olhos na frase, soube exatamente o que significava. Isso o deixou surpreso e contente, assim não precisaria aprender a ler e escrever, algo que, com certeza, não parecia ser nada divertido.
— Está escrito “Você sabe ler?”. Um pouco irônico até.
— Foi a única coisa que pensei na hora. — disse a elfa, enquanto passava a mão atrás da cabeça. — Bom, ainda bem que você já sabe ler, não é? Assim, eu não vou precisar dar uma de professora e te ensinar algo do fundamental, hein.
Niko percebeu que todas as suas perguntas só estavam relacionadas à Evellyn, isso o constrangeu por estar sendo um pouco invasivo na vida da garota, então decidiu mudar o objetivo de suas perguntas. Ele se lembrou das várias facas que estavam em seu manto, principalmente dos símbolos que estavam presentes nelas. Aquele era um assunto perfeito para mudar o clima da situação.
O albocerno pegou uma das facas que tinha e mostrou seu símbolo a Evellyn.
— Você sabe o significado desse símbolo aqui?
— Deve ser um símbolo de Alma. Serve para marcar um ponto em algum lugar ou objeto para dar para usar Alma nele… Você não sabe o que é Alma?
Niko respondeu balançando a cabeça para os lados, em sinal de negação.
— Certo. Alma é uma energia, uma energia presente em uma minoria das pessoas e também em alguns animais. Essa energia nos permite manifestar o poder do nosso espírito no que quisermos. Desde que seja de acordo com o sangue da família que temos. Por exemplo, eu compartilho o sangue da família Gélis, então eu consigo criar gelo e neve a partir da minha Alma. — disse Evellyn, enquanto um floco de neve gigante surgia entre seus dedos indicador e anelar. — Também existem pessoas de outras famílias que têm outros tipos de Alma. Almas de fogo, ar, água, natureza, sombra, luz, invocadores, tudo isso existe. — o floco de neve que estava entre seus dedos se transformou em várias partículas de gelo que brilhavam como um pó mágico.
Niko ficou impressionado com o que acabou de ver. Aquele acontecimento deixou suas íris dilatadas. Um pedaço de gelo surgiu e desapareceu do nada bem na sua frente.
— Isso é incrível!
— É mesmo. Mas eu tenho certeza que você tem uma Alma bem mais legal que a minha, Niko! Isso se você tiver mesmo.
Evellyn imaginou que Niko pudesse ter alguma Alma e estava ansiosa para saber qual seria. Parecia que Evellyn adorava coisas relacionadas a Alma e lutas, inclusive, é provável que esse fosse um dos motivos de seguir a carreira de mercenária.
— Como eu faço para usar isso?
— Eu não sei te explicar direito. Eu só uso a Alma, como se fosse levantar um braço ou uma perna. Acho que com você é a mesma coisa, só se concentre e use ela.
A resposta abstrata de Evellyn fez o garoto se perguntar como faria isso. Nisso teve uma ideia, imaginou uma esfera de luz como se essa fosse a sua Alma e que toda vez em que se quisesse usá-la deveria imaginar ela pulsando.
Niko então pensou que, por ele ter muitas facas, elas deveriam ser descartáveis, porque, se uma for perdida, tem mais cinquenta para substituí-la. Se esse for o caso, provavelmente eram facas de arremesso, o que faria sentido dado ao seu formato estranho.
Por esse raciocínio, Niko pegou uma das facas pela ponta e jogou com pouca força em direção ao campo gelado, que acabou caindo em uma distância de alguns metros. A imagem da esfera de energia apareceu em sua mente, totalmente imóvel, uma pequena pulsação aconteceu e…
— Aconteceu alguma coisa, Niko?
Nada havia acontecido… Niko esperava por alguma explosão de fogo, de luz ou fumaça, mas nada aconteceu. Parecia até que o garoto não tinha nenhuma Alma. Ao pensar nessa possibilidade, teve uma grande tristeza que pulsou de seu peito até as extremidades do corpo, deixando-o fraco.
— Nada aconteceu…
O ser de chifres deu um suspiro, em seguida, andando de maneira niilista, foi em direção ao objeto que arremessou. Niko queria ter uma Alma. Ver Evellyn criando gelo como mágica o animou tanto, ele queria ter algo parecido com esse truque só para ele, porém, nunca teria.
Mas algo estava estranho, Niko não encontrava em lugar nenhum a faca que arremessou. Olhando de um lado para o outro, encontrou um buraco com formato da lâmina estranha, mas nada do objeto. Então percebeu algo mais estranho ainda, um peso em sua mão direita, a mesma que arremessou a faca, um peso de mais ou menos cinquenta gramas. Levantando sua mão até sair do manto, Niko não se lembrava de ter pegado qualquer coisa após ter arremessado a faca. O objeto que estava em sua mão era uma lâmina, uma lâmina igual às dezenas que ele tinha.
Ao ver a faca em sua mão, Niko sentiu euforia e confusão. Euforia, pois, agora sabia que tinha alguma espécie de Alma e confusão porque não entendia como ela funcionava. Então, por um ato de descobrir como sua Alma funcionava, Niko jogou a faca de sua mão próxima à fogueira com a esperança de entender melhor como funcionava sua habilidade. Agora, ao invés de pulsar só um pouco, Niko imaginou a esfera pulsando mais forte e, no mesmo instante, ele surgiu ao lado de Evellyn.
Evellyn, que ficou olhando a situação com curiosidade, de repente bateu a cabeça no tronco de árvore, devido ao susto de ver uma figura de chifres vestindo um manto negro aparecendo ao seu lado do completo nada.
— WHOAH! Você me deu um susto, Niko! — disse a garota enquanto esfregava a mão atrás da cabeça. — Como você fez isso?! Será que essa é a sua Alma?
Niko então soube o que era seu truque. Ele conseguia ir de um ponto a outro quase que instantaneamente, não só ele, como conseguia fazer isso com objetos. Arremessa sua faca para longe e, graças ao símbolo que havia nelas, aparecia onde estava. Ele decidiu chamar essa habilidade de “portal”.
— Provavelmente sim. Vo-
— Então, como funciona isso? Como você conseguiu aparecer do nada do meu lado? Como, como??? — falou ela, extremamente animada, esperando uma resposta do garoto com os olhos brilhando de emoção.
— Ahh. Eu faço um portal e apareço naquele lugar.
— Aff, que resposta sem graça. — respondeu a elfa enquanto seus olhos perdiam o brilho, cruzava os braços e se inclinava para trás.
Niko, aborrecido com a resposta abusada de Evellyn, tentou continuar com a conversa, tirando o máximo de dúvidas que tinha.
— Você disse que tinha “o sangue da família Gélis” não é? Qual a minha família?
Niko tinha uma grande curiosidade sobre saber de onde veio, de seus amigos e família, isso se tivesse alguma, então quando viu que tinha uma possibilidade de encontrar sua família pelo seu sangue, agarrou a oportunidade.
— Eu não conheço ninguém que também consiga desaparecer e reaparecer em um piscar de olhos, então você provavelmente é um Independente.
— O que é isso?
— Basicamente, alguém que tem Alma ganha ela de duas maneiras. A primeira é por família, que é o meu caso e é o caso da maioria das pessoas. Já o outro é quando a Alma da pessoa ignora essa relação sanguínea e cria um novo tipo de Alma, que, se tiver descendentes e muita sorte, se torna uma nova família. Ninguém sabe o porquê isso acontece. E pode se considerar sortudo, menos de um por cento das pessoas que têm Alma são independentes.
A esperança que Niko agarrou se despedaçou em suas mãos como pó. Agora ele tinha voltado à estaca zero, sem nenhuma pista sobre como recuperar suas memórias e sua antiga vida, tendo a mesma sensação de tristeza de quando pensava não ter Alma.
— Evellyn, tem alguma ideia do porquê eu perdi as minhas memórias?
— Você tem algum formigamento ou marca brilhante no corpo?
— Uhm, acho que não.
— Então, eu não faço a menor ideia do porquê. Tenho certeza de que você não está com nenhum problema de saúde, você é jovem e não tem nenhum ferimento. Pode ser algo relacionado a algum trauma cerebral tão forte que você perdeu as suas memórias, mas se fosse isso, você estaria provavelmente machucado, então, teoria descartada.
Niko pensou que já estava no fundo do poço quando soube que não conseguiria encontrar sua família pela Alma, e não podia descer mais. Mas quando Evellyn não teve nenhuma ideia do porquê o garoto perdeu suas memórias, pareceu que o chão abaixo de si se rachou e o puxou para ainda mais baixo. Não havia nada que Niko pudesse fazer agora, senão sua última pergunta.
— Eu só tenho mais uma pergunta, Evellyn.
— Pode falar.
— Que dia, mês e ano são?
— Hoje é dia trinta e sete do mês de Dubvi do ano de 4502. Estamos no começo do inverno.
Evellyn havia respondido todas as perguntas de Niko no momento. Agora, ele acreditava saber sobre o mínimo de como sobreviver naquele mundo.
— Eu me sinto um pouco culpado.
— Ué? Porquê?
— Você me salvou quando estava prestes a ser envenenado, me deu comida e respondeu todas as minhas perguntas, pelo menos as que você podia. Você me ajudou de verdade e não pediu nada em troca. Eu te agradeço de verdade.
Enquanto Niko estava agradecendo à moça de cabelos brancos por sua ajuda, ela estava sorrindo, deixando sua presa saltada bem à mostra, enquanto dava umas risadinhas bem suspeitas. Evellyn então ficou em uma posição de relaxamento, em que apoiava as costas na árvore atrás dela, os braços apoiados na cabeça e as pernas cruzadas. Era uma posição de alguém convencido.
— E quem disse que eu não iria pedir nada em troca, hein?
— …?
— Já que você está em débito comigo, pode pagar com uma tarefa bem simples.
Niko não se importava em pagar a dívida que tinha com Evellyn, mas do jeito que ela falava aquilo o deixava um pouco irritado, o que fez com que tivesse um arrependimento em dizer que se sentia culpado por sua ajuda.
— Eu pensei que você não iria pedir nada.
— Você acha que eu tenho cara de quem faz caridade? Eu gosto de ganhar o máximo de dinheiro que conseguir com o menor esforço possível. Mas enfim, você vai caçar o Lufador por mim, tudo bem? Só avisando que eu estou procurando por um há dois dias. Eles são bem difíceis de encontrar, ao menos se não quiser que eles te encontrem primeiro. Quanto mais cedo você começar, mais rápido vai acabar e mais rápido eu vou ganhar meu dinheiro.
Niko subestimou a ganância da mulher. O título que ela carregava não era à toa. Ela colocou alguém que praticamente nasceu hoje para caçar um animal, que ela mesma disse ser muito perigoso.
— Mas esse animal não é muito perigoso?
— Nah, eu confio que você consegue acabar com ele. Sua Alma é até melhor do que a minha nesse tipo de situação, então nem precisa se preocupar. Qualquer coisa, é só aparecer no acampamento de novo se as coisas derem errado. — disse Evellyn com um sorriso irritante no rosto, quase que vilanesco, com uma sombra cobrindo seus olhos, que aumentava mais ainda sua aura maligna.
— Você é mesmo uma mercenária.
— Eu sei disso. Muito obrigada! — respondeu a mercenária com deboche, com um grande sorriso no rosto.
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