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    Os dois já estavam andando há um tempo. A floresta ao redor parecia adormecida. Não havia nenhum som de pássaros, nem de vento. Somente o barulho dos seus próprios passos.

    Mesmo com o quase silêncio da floresta, aqueles poucos sons eram reconfortantes para Niko. Não os dele, mas os dela. Saber que não estava sozinho deixava-o mais seguro e tranquilo. Bem diferente de horas atrás, quando se sentia vazio e solitário.

    — Quando a gente chegar no acampamento, a gente pode conversar sobre algumas coisas que você esqueceu. Aí eu te dou um contexto sobre o que está acontecendo no mundo. Tudo bem?

    Niko assentiu em silêncio. Por dentro estava com uma curiosidade enorme em relação a Evelyn. Ele a observou por mais da metade do caminho sem dizer uma palavra, quase deixando a garota desconfortável com o olhar constante. E foi ali, encarando com mais atenção, que notou um detalhe ao lado do rosto dela.

    — Suas orelhas… elas são pontudas.

    Claro que ele já tinha notado outras diferenças físicas entre eles, mas nenhuma chamou tanto a atenção quanto aquele formato estranho de orelhas. E, como não conseguia guardar esse tipo de dúvida só para si, decidiu comentar em voz alta, esperando que Evelyn explicasse o motivo.

    — É porque eu sou uma elfa. Uma raça entre várias da sapienidade. Basicamente, eu só ganho essas orelhas estranhas e umas centenas de anos a mais de vida, mantendo uma aparência jovem.

    A resposta deixou Niko com uma dúvida imediata: “Quantos anos ela tem, então?”. Se mantinha aquela aparência mesmo com séculos de vida, ela poderia ser muito mais velha do que parecia.

    — Evelyn… quantos anos você tem?

    — Vinte e quatro.

    — Ah. — sussurrou Niko.

    — Esperava o quê? Cento e cinquenta? — disse ela, virando o rosto para Niko.

    — É, eu acho que sim. — respondeu ele envergonhado pela suposição errada.

    Evelyn ergueu um sorriso e soltou um arzinho pelo nariz ao ver a timidez fofa do garoto e voltou a olhar para frente.

    Tentando continuar a conversa para não deixar o silêncio pairar de forma constrangedora, pensou em outra pergunta — talvez alguma que o ajudasse a descobrir mais sobre si mesmo e seu passado.

    — Qual é a minha raça?

    — Você é um albocerno. Eu não sei muito sobre a sua raça… você é o primeiro albocerno que vi na vida, inclusive. Geralmente, sua raça vive no hemisfério norte. Não sei o que você está fazendo aqui no hemisfério sul — e acho que nem você sabe também.

    — Entendi… E o que é sapienidade?

    — É o nome que a gente usa pra se referir a todos os seres conscientes e racionais. Antigamente, o termo era “humanos e não humanos”, mas isso colocava protagonismo demais nos humanos. Muitos seres não humanos — tipo eu — não gostavam. Depois de uns bons séculos, isso mudou. Elfos, albocernos, humanos, fadas, híbridos, orcs… todos são sapientes.

    — E como são essas outras raças… além dos elfos e albocernos?

    — Bem… os humanos são iguais a mim, só que sem as orelhas pontudas. Eles são maioria no mundo, então você vai encontrar vários por aí. As fadas são baixinhas, têm asas e conseguem voar. Híbridos são metade animal, metade sapiente. Orcs têm a pele verde ou cinza, são grandes e fortes. Também tem os gigantes — que, como o nome diz, são gigantes —, sereias e tritões, tem cauda de peixe… anões, que são baixinhos… e os demônios.

    Quando falou dos demônios, Evelyn perdeu o tom entusiasmado. Seu olhar endureceu, e sua voz, antes leve e animada, ficou carregada de raiva.

    — …São seres desgraçados com chifres e olhos de cabra.

    Niko percebeu a mudança instantaneamente. Aquela palavra — “desgraçados” — não parecia vir só de conhecimento, mas de experiência pessoal.

    — Por que você chamou os demônios de “desgraçados”, Evelyn?

    — Porque eles são bárbaros que destroem tudo o que tocam. Deram início à Era das Almas, mataram milhões de pessoas… e fazem rituais e sacrifícios nojentos. — ela suspirou, pesadamente. — Eu odeio os demônios. Não confie neles.

    Aquele “Não confie neles” martelou na cabeça do garoto. Por que ele deveria não confiar em alguém somente pela raça? Aquilo não parecia ser justo ou minimamente racional. Mas, ao mesmo tempo, Evelyn tinha mais experiência de vida e seus conselhos poderiam serem muito úteis para ele. Não sabendo o que decidir sobre isso, ele ficou neutro.

    Mesmo com a conversa praticamente se encerrando, Niko ainda queria saber mais sobre raças, o mundo, tudo — mas entendeu que esse não era o momento certo. Ele perguntaria sobre isso depois, quando chegassem ao acampamento. Então o silêncio tomou conta da conversa.

    Outra dúvida, no entanto, surgiu em sua mente. Ele ainda não entendia por que Evelyn — alguém que o conhecia há menos de vinte minutos — estava oferecendo um lugar quente, ajuda com a memória e até comida. Afinal, ele poderia muito bem ser um criminoso, um assassino, ou um oportunista, esperando o momento certo para dar um golpe na cabeça dela e vender o lufador depois.

    Ele não conseguiu segurar essa curiosidade por muito mais tempo.

    — Por que você tá fazendo isso?

    — Uhm? Fazendo o quê?

    — Me ajudando.

    — Porque eu quero. — disse ela, com um tom entre a brincadeira e a sinceridade.

    — Eu tô falando sério. Por que você tá me ajudando?

    — Eu podia responder a mesma coisa de antes, porque é a verdade… mas acho que você não aceitaria mesmo assim. — ela fez uma pausa. — Então, estou te ajudando porque você me lembra alguém. Uma pessoa que também estava perdida… Dá pra ver isso nos seus olhos. Você tem os mesmos olhos daquela pessoa.

    Aquela resposta fez Niko se calar por um tempo. Não só isso — ela o fez pensar sobre essa tal pessoa. O que tinha acontecido? Ela sumiu? Era alguém importante pra Evelyn? Alguém que ela perdeu?

    Ele abriu a boca, mas hesitou.

    — Evelyn…

    Ela virou o rosto em sua direção, sem parar de caminhar.

    — O quê?

    Niko encarou o chão por um segundo, depois olhou o céu entre os galhos, como se procurasse ali uma desculpa, uma coragem, ou uma resposta.

    — Nada não. Esquece.

    Algo o impediu. Sentiu que não devia saber sobre aquela história. Parecia pessoal. O tipo de coisa que era melhor não lembrar. Não por enquanto.

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