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    …Minha senhorita, de Steingdorff

    Nos dê, pobres de Zemnetch

    Um sol bem quente!

    Os campos rugem com gosto,

    de sangue e ferro.

    Entre lanças e espadas,

    a batalha se encerrou!

    Avante! Avante! Vamos celebrar!

    A vitória é nossa, vamos comemorar!

    Pampam pampam pampam pampam…

    A cantoria animada ecoava pela estrada de terra, se misturando com o som de cascos, rodas rangendo e passos pesados na poeira. Quatro soldados marchavam ao lado de uma carroça, cantando com uma energia quase teatral. Era como se o ritmo da música os ajudasse a suportar as horas de caminhada.

    Sentada na traseira da carroça, com um violão nos braços, Evelyn ria discretamente ao ver os companheiros se empolgando. Seus dedos deslizavam pelas cordas, conduzindo a melodia como uma artista de estrada.

    Na frente da carroça, o sargento Nowak segurava as rédeas do cavalo com uma expressão cansada. Ao seu lado, Clementine — com a boina escura e a faixa de médico com uma cruz vermelha — folheava um pequeno livro, de olhos baixos, como se estivesse ignorando tudo ao que acontecia ao redor.

    — Nossa, parece que faz uma eternidade que a gente tá aqui. Quando a gente vai chegar? — reclamou Kilian, arrastando as palavras com uma dramaticidade imensa.

    — Quatro horas não são uma eternidade. — respondeu Evelyn, sem parar de tocar — Sem contar que você tava todo animado por essa missão. “Cruzar o país vai ser legal!”, lembra? Cadê seu entusiasmo?

    Essa era a primeira grande missão de Evelyn fora do campo de treinamento. Uma escolta simples, pelo menos em teoria. O objetivo é levar suprimentos até um acampamento provisório, próximo à fronteira sul de Lieuwirk. De lá, o exército decidiria se fariam uma investida ou apenas fortaleceriam as defesas.

    — É, bem que eu falei isso mesmo… — Kilian bufou, chutando uma pedra da estrada com a ponta da bota — Mas eu não sabia que a gente ia fazer isso andando! Minhas pernas tão dormentes.

    Ele jogou a cabeça pra trás como se fosse desmaiar.

    — Falando nisso, por que você não tá andando também? Isso não é justo! — reclamou, apontando para ela.

    Evelyn parou o dedilhar, deu uma piscadinha debochada e disse com a voz mais doce que conseguiu fingir:

    — Porque esse lugar foi o único que sobrou. E porque eu sentei primeiro. A vida pune quem chega atrasado. Se o sargento Nowak não vê problema nisso, então não reclama.

    Antes que Kilian pudesse rebater, uma voz grossa, vinda da frente, cortou a conversa:

    — Mas eu vejo problema nisso, sim.  Volte a marchar, soldado.

    Kilian arregalou os olhos de surpresa. Evelyn baixou a cabeça tristemente, como uma flor murchando.

    — Sim, senhor… — respondeu ela junto com um suspiro de derrota, pulando da carroça para se juntar à marcha.

    — HA! Toma essa! — comemorou Kilian, como uma criança que ganhou uma disputa. Feliz em ver alguém de uma posição confortável passar pelo mesmo sufoco que ele.

    (33/04/4492)

    O tempo passava devagar. O sol parecia até mesmo imóvel no céu. Evelyn, agora andando junto dos outros, estava com o violão pendurado nas costas, que balançava a cada movimento que ela fazia.

    O barulho constante das botas, das rodas da carroça e dos cascos do cavalo criava um ritmo monótono, irritante. O tédio era tanto que parecia testar a paciência de todos ali.

    — Então… — murmurou Kristoff, quebrando o silêncio. — Quando isso tudo acabar, o que vocês querem fazer da vida? Tipo, depois da guerra.

    — Eu vou é viver. — respondeu Paul, sem nem olhar para os lados.

    — Eu vou dormir um mês inteiro. — disse Kilian, com um sorriso cansado — Sem ter que marchar, sem flexões, sem sargento gritando no meu ouvido…

    — Eu vou abrir uma taverna. — disse Otto, rindo — Só pra poder beber de graça, passar o resto da vida ouvindo gente reclamando da vida e reclamar junto com elas.

    — Ah, então você já tá treinando pro cargo, já que reclamar é a única coisa que você sabe fazer.

    — Hm, olha quem fala… — Otto retrucou, com um sorriso torto. — Mascote do grupo.

    — Mascote não, a melhor atiradora do grupo. — rebateu ela, enquanto andava de costas.

    Kilian deu uma risada, mas logo a voz de Nowak cortou o clima:

    — Bauer! Para de andar feito uma palhaça! Quer tropeçar e quebrar o pescoço?!

    — Não senhor.

    Evelyn fez uma careta em direção a Otto — mostrando a língua, fechando um olho e puxando o outro olho para baixo com o dedo —, que retribuiu fazendo a mesma careta que ela. Após a leve provocação, ela se virou de novo, andando com passos curtos para manter o ritmo da marcha.

    Ao seu lado, Nikolas caminhava em silêncio, com os olhos baixos, como sempre fazia quando estava perdido nos próprios pensamentos. Por um momento, Evelyn deixou o olhar se perder no horizonte, observando o céu limpo.

    Evelyn… — disse Nikolas, quebrando o silêncio — Você… tem medo de morrer?

    Evelyn virou o rosto pra ele, um pouco surpresa por aquele tipo de pergunta ter sido dito de maneira tão direta.

    — Por que essa pergunta agora?

    — Porque eu tava pensando que… se você se alistou por vontade própria, então você prefere lutar na guerra do que ter continuado sua vida, mesmo que isso signifique morrer. Isso significa que você não tem muito medo de morrer. Pelo menos, não tanto quanto eu. Tô certo?

    Evelyn não respondeu de imediato. Aquela pergunta a pegou de jeito. Desde o ataque, nunca havia pensado direito sobre a própria vida. Estava até mesmo ignorando a morte. Se sentia — de certa forma — imortal. Que nunca iria morrer, não importando o que fosse acontecer.

    Ela abaixou o olhar, focando nos próprios passos, pensando no que poderia responder.

    Por alguns instantes, o som das botas batendo na terra seca foi tudo que ela escutou. Cada passo servia como um lembrete de que ainda estava viva… mas por quanto tempo?

    — Eu… — começou, com a voz saindo mais baixa do que esperava — Eu acho que não é bem isso… Claro que eu tenho medo de morrer, mas acho que… tenho mais medo de morrer sem ter feito nada antes.

    Nikolas virou o rosto para ela, surpreso pela sinceridade. Esperava uma resposta arrogante, ou uma daquelas frases corajosas que ela sempre usava. Mas não, esse não foi o caso dessa vez.

    — Sem ter feito nada? Tipo o quê?

    — …De… não conseguir fazer eles pagarem. — respondeu ela por fim — Não conseguir me vingar… não conseguir proteger ninguém… não conseguir impedir que o que aconteceu em Colvenfurt aconteça de novo e que mais pessoas sofram com isso… Eu preciso fazer alguma coisa.

    Nikolas percebeu o peso nas palavras dela. Por alguns metros eles continuaram em silêncio. Ele sentiu vontade de dizer alguma coisa, mas nada parecia o suficiente.

    A estrada seguia sem fim. Só havia terra e árvores distantes e algumas colinas em volta.

    Com os pensamentos dispersos, Evelyn apertou a flor de Araquel do uniforme, um símbolo de fé para as pessoas. Sem saber do porque, pensou em como sua vida tinha virado de cabeça pra baixo em tão pouco tempo. Um mês atrás, era só uma estudante, agora, marchava armada, a caminho da fronteira de uma guerra.

    Quantas pessoas como eu estão fazendo isso agora? Quantas outras crianças largaram tudo pra se jogar nesse inferno?”, pensou, apertando a flor com mais força.

    — Tá tudo bem com você? Parece meio distante. — perguntou Nikolas, olhando de canto enquanto marchava ao lado.

    — Ah, eu tô bem, sim. — respondeu ela, tentando disfarçar o tom cansado. Logo depois, sorriu de leve — Inclusive, lembrei de uma música que meu pai compôs, gostariam de ouvir?

    — Até que outra música cairia bem agora. — disse Kristoff.

    — Uhum. — Paul assentiu.

    O resto do esquadrão também sinalizou aprovação com a cabeça. Cada um por um motivo. Uns por tédio, outros por querer um pouco de beleza naquele dia tedioso. Mas todos só continuavam a querer que Evelyn tocasse pelo fato da garota ser ótima nisso. Afinal, ela tocava como uma profissional e cantava como um anjo. Era um espetáculo que ninguém ali ousaria em deixar de ouvir.

    Ela pegou o violão das costas, afinou rapidamente e começou a dedilhar uma melodia suave e de notas longas. Enquanto caminhava junto com o grupo, ela girava devagar ao som da própria música, com os cabelos grisalhos balançando com o vento da estrada. Ela inspirou fundo, enchendo o peito antes de começar a cantar.

    — Eu se-

    Um estrondo cortou o ar, cortando a fala da garota. Em seguida, uma sequência de estalos surgiram. A carroça parou. O mundo pareceu girar.

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