Índice de Capítulo

    — EM POSIÇÃO DE COMBA-! — gritou o sargento, mas sua voz foi cortada pela metade, abafada por mais um disparo vindo da mata ao redor.

    Em meio ao pânico e caos, os soldados sacaram os rifles num reflexo quase instintivo. Evelyn largou o violão e cortou o ar com a mãe, usando o poder de sua Alma. Em poucos segundos, uma muralha de gelo cristalino ergueu-se ao redor da carroça, bloqueando a visão e protegendo os soldados — pelo menos por enquanto.

    — Tá todo mundo bem?! — gritou Otto, com a respiração acelerada.

    Nikolas, com o rosto sério, levou o dedo aos lábios na frente de Otto, pedindo silêncio absoluto.

    Evelyn olhou ao redor, com o coração disparado. A mão esquerda tremia, mas ela a fechou com força, tentando se controlar. A barreira de gelo era sólida e espessa, impossível ver o inimigo. O esquadrão virou refém de seu protetor. 

    Enquanto a garota pensava qual seria o próximo movimento, Clementine apareceu, com um rifle em mãos, se juntando ao grupo.

    — O sargento Nowak tá morto. — anunciou ela, firme e direto.

    O peso daquelas palavras caiu sobre todos ao mesmo tempo. Ninguém tinha tempo de lamentar, mas o impacto foi evidente. Todos ficaram em choque. O superior deles estava morto. O único homem que tinha alguma noção do que fazer naquela situação não poderia mais os ajudar. Agora ele era só um corpo no meio da estrada.

    Otto ficou imóvel, arregalando os olhos. Paul murmurou um “merda…”. Evelyn apenas mordeu o lábio, com força o suficiente para quase sangrar.

    Agora era certo, eles iriam morrer ou serem presos e torturados.

    Alguns dos soldados pensavam em se render, outros, em fugir. Enquanto isso, Evelyn pensava em como iria matar o máximo de inimigos possível, ficando com raiva e ansiedade enquanto mais o tempo passava.

    — Além disso, o cavalo também morreu. A gente não vai conseguir completar a missão. — completou Clementine, seca.

    — Como se essa fosse a prioridade agora! — sussurrou a elfa, rangendo os dentes.

    Ela respirou fundo. Precisavam agir. Logo. Pensou em vasculhar os suprimentos que estavam escoltando. Ninguém do esquadrão além de Nowak sabia o que havia lá dentro. Lá poderia haver armas, explosivos ou qualquer coisa que poderia ajudá-los naquela situação.

    Mas a pessoa que deveria vasculhar a carroça não poderia ser ela. Afinal, se o inimigo resolvesse atacar, Evelyn deveria estar pronta para defender seus companheiros com sua Alma. Foi isso que ela foi ensinada durante o treinamento, proteger os aliados com a Alma.

    Sem perder tempo, a elfa cutucou o ombro de Kristoff, apontando para o veículo. Sem questionar, ele entendeu o recado. Pulou para dentro dos suprimentos, começando a vasculhar com pressa, mas em silêncio.

    Lá fora, do outro lado da barreira de gelo, vozes começaram a se formar. Era falas rápidas. Palavras curtas. Parecia ser alguma língua estrangeira. Prestando mais atenção, o esquadrão soube exatamente o que era: dreylandês. Incompreensível para todos eles. Mal valia a pena pensar no que estavam falando. Agora deveriam manter a concentração, esperando pelo pior.

    Kristoff finalmente saiu da carroça, trazendo consigo uma caixa de madeira. A tampa mal estava fechada. Ao pousar a caixa no chão, ela se abriu com o impacto, revelando o que havia dentro: granadas de mão. Pelo menos uma dúzia delas, alinhadas lado a lado.

    Sem perder tempo, Kristoff chamou silenciosamente por Paul, ajudando a puxar um segundo objeto de dentro da carroça: um barril de madeira, com um “PÓLVORA! CUIDADO!” escrito em letras vermelhas na lateral.

    — Eu quêro fazer uma propôsta pra vocês, kyndralinôs!

    A voz veio de trás da barreira de gelo no exato momento em que o barril de pólvora tocou o chão. O “R” arranhado e a falta de acento na pronúncia deixavam claro: o sujeito era um lieuwirkiano tentando falar kyndrálio — e falhando miseravelmente.

    — Temos dezenas de soldados aqui fôra… — continuou o inimigo, com aquele sotaque torto — Se não aceitarem a propôsta vamos invadir a barreira!

    — Qual é a proposta? — perguntou Nikolas, firme. A voz saiu baixa, mas cheia de uma calma artificial.

    — Vocês se rendem… respondem nôssas perguntas e a gente não tê mata.

    Evelyn quase gritou um “Nem ferrando!”, mas antes que pudesse abrir a boca, Nikolas levantou a mão, pedindo silêncio.

    — Dois minutos. — pediu ele, de forma direta.

    O silêncio que veio do outro lado foi mais angustiante do que qualquer resposta imediata. Todo aquele silêncio deixou os soldados ansiosos. Parecia que a qualquer momento aquela parede de gelo iria se partir e a batalha se iniciaria. Mas, contra todas as expectativas do grupo, a voz do lieuwirkiano respondeu:

    — Cêrto. Dois minutos.

    Na mesma hora, Nikolas fez um gesto rápido com a mão, reunindo o grupo em um círculo apertado. Todos se agacharam, trocando olhares tensos.

    Naquele ponto, Nikolas havia se tornado um símbolo de confiança e ordem para os outros soldados. Ele estava no comando agora. Era isso que Nowak tinha dito: se o sargento por qualquer motivo não pudesse dar ordens, Nikolas seria a voz de comando.

    O medo de Evelyn desapareceu quase por completo. No lugar só havia uma grande fúria. Uma quente e visceral fúria. Correndo pelas veias. Pulsando seu sangue com força. O inimigo estava bem a frente deles. Eram os mesmos que bombardearam Colvenfurt. Que mataram seu pai. Que acabaram de matar o sargento Nowak. E que agora exigiam que o restante do esquadrão simplesmente se rendessem sem mais nem menos?

    Ela respirou fundo, tentando manter a calma, mas a voz saiu carregada de ódio:

    — Eu não vou me ajoelhar pra esses desgraçados… Eles estão bem na nossa frente. Eles acham que vão sair dessa vivos? Eu quero ver esses malditos caindo um por um. A gente tem que atacar.

    — E se a gente morrer? — perguntou Kilian, com as mãos tremendo. O rosto dele parecia vazio, como se toda a esperança já tivesse ido embora — O sargento era muito mais experiente que a gente… e… e olha o que aconteceu com ele… Nós somos só recrutas. Não tem como vencer isso. Não dá. Não dá…

    — Eu tô com a Evelyn nessa. — disse Clementine, com um tom seco — A gente tem que lutar. Melhor morrer com um rifle na mão do que gemendo num campo de prisioneiros. E, sinceramente, você tá com medo? Deveria ter vergonha de se chamar de soldado… — ela se aproximou lentamente do homem em pânico — Se dependesse de mim você seria executado por traição, desgra-

    — Para com isso agora, Clementine. — cortou Nikolas, num tom rígido — A gente não vai começar a brigar entre a gente. Não agora.

    — Mas também não dá pra ignorar a situação. — disse Paul — A gente nem sabe quantos estão lá fora. Pode ser o dobro… o triplo da gente.

    — Ah, ótimo… a gente tá ferrado de qualquer jeito. — Kilian murmurou, quase rindo de nervoso.

    O tempo estava se esgotando. Nikolas fechou os olhos por um segundo, respirando fundo. O rosto dele estava duro… como uma porta que ninguém conseguiria abrir. O silêncio dentro do círculo foi cortado pela voz dele, calma, porém certeira.

    — Já decidi.

    Do lado de fora, a voz amarga voltou:

    — Aceitam a propôsta… ou vão morrer?

    — Aceitamos. — respondeu Nikolas.

    A barreira de gelo desmoronou como uma cortina de neve, expondo o grupo. Catorze soldados lieuwirkianos os cercavam. Sete na frente e sete na lateral esquerda. Todos de rifles apontados, atentos.

    — Larguem as armâs e fiquem de joelhos. Dedos cruzâdos atrás da cabeça.

    O som de metal, plástico e madeira caindo no chão ecoou no ar, acompanhado do peso de vergonha e humilhação que ninguém ali conseguiu esconder. E se ajoelharam, cruzando os dedos atrás da cabeça.

    — Quem é o Gêlis? — perguntou um dos soldados.

    — A garota de cabelo branco. — alguém respondeu antes que Evelyn sequer reagisse.

    No instante seguinte, um soldado veio até ela com uma seringa na mão. Ela mal teve tempo de protestar. O soldado enfiou a agulha no seu pescoço e despejou o líquido de dentro em sua corrente sanguínea.

    — AH, para que isso!? — gritou ela, com raiva.

    — Ê um frasco Nullius. Prâ garantir que você não vâi usar sua Âlma. Se usar a maldição ativâ.

    “A Alma é uma bênção amaldiçoada”. Evelyn ouviu essa frase inúmeras vezes durante sua vida e a elfa sabia exatamente o que ela significava.

    A Alma possui uma espécie de maldição. Quando usada várias vezes em sequência, ela perde sua energia positiva, sobrando apenas a negativa onde se inicia a maldição. Uma maldição de quatro estágios, um estágio pior que o anterior. Sendo tonturas, náuseas, desmaios e dores de cabeça no primeiro estágio; e morte certa no último.

    Caso Evelyn use sua Alma a partir de agora, irá experienciar o primeiro estágio da maldição e, se insistir muito em usar… irá morrer.

    — O quê estão trânsportando? — perguntou o soldado.

    — Suprimentos. Comida, armas, remédios… essas coisas. — respondeu Nikolas, sem hesitar.

    — Pra onde iam levar isso?

    — Tem um mapa na carroça.

    Um homem então disse algo em dreylandês — talvez o superior —, fez sinais de mão e quatro soldados deram meia-volta, indo e foram para o veículo.

    — Agôra… levântem-se e sigâm a gente.

    O grupo obedeceu. Levantaram-se, engolindo a vergonha a cada passo que davam. Seguiram o soldado por alguns instantes vergonhosos…

    E então, houve uma explosão. A terra tremeu atrás deles. Cinzas e fumaça subiram no ar. Todos olharam para trás, seja inimigo ou aliado. Era impossível aquela explosão não ter chamado a atenção de todos que a ouviram.

    Junto com o estrondo, cinco estacas azuis e brilhantes surgiram do chão, perfurando o peito de alguns dos soldados inimigos. Inclusive o que estava falando com Nikolas.

    Um dos inimigos gritou algo indecifrável — “Vørfløkte! Wy zaal jylle duden!” —, apontando o rifle na direção do esquadrão logo em seguida.

    Os lieuwirkianos abriram fogo na mesma hora. E Evelyn reagiu no mesmo segundo. Cortou o ar com a mão, erguendo uma barreira horizontal de gelo bem à frente do grupo, bloqueando a primeira rajada de balas.

    O esquadrão, em resposta, correu para recuperar as armas que tinham acabado de largar no chão.

    — Eu não acredito que o plano funcionou! EU TE AMO, NIKOLAS! — gritou Otto, se apoiando na barreira em seguida.

    O plano era simples, arriscado e suicida: armar as granadas dentro da carroça com uma corda e esperar que, no momento em que o inimigo abrisse os suprimentos, a granada se ativasse junto com todos os suprimentos da carroça, gerando assim uma mega explosão.

    Entre tiros e gritos, Evelyn se apoiou contra a própria barreira de gelo, sentindo o corpo ficar mais fraco. A cabeça doía, o estômago revirava e ela precisava se sentar. “Droga…”, pensou.

    Percebendo a situação da companheira, Nikolas correu em sua direção, apoiando o braço em suas costas.

    — Evelyn! Você tá bem?!

    — N-não… — respondeu, quase sem voz.

    — Médico!

    A garota estava com fortes dores na cabeça e no estômago. Ela sentia vontades fortes de vomitar e mal conseguia se manter acordada. As únicas coisas que ela conseguia ver eram Nikolas e Clementine, conversando ou discutindo, não importa. Nada daquilo importava mais. Nem a guerra, nem aquela batalha. Ela somente queria descansar.

    Aquele lugar a lembrava de quando era criança. Dos dias de primavera em que ia com sua família ao piquenique e das vezes em que ela dormia e era carregada até em casa pelo seu pai.

    Tinha vezes, ela nem dormia de verdade, só estava com preguiça de andar até em casa, ficando agarrada nas costas do pai enquanto o sol quente batia de leve na sua pequena cabeça.

    A elfa sentiu uma profunda nostalgia com aqueles pensamentos. Um sorriso fraco se formou nos lábios dela, entre o vermelho do sangue e os dentes brancos.

    — Que saudade… — sussurrou a garota, olhando para o céu antes de fechar os olhos.

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