Capítulo 32 - O Campo
Ao norte de Kyndral, no coração da floresta, os animais seguiam suas rotinas diárias. Pássaros cantavam, raposas caçavam, lebres saltitavam. Era um ambiente natural, livre de qualquer interferência sapiana. Pelo menos até um som divergente infestar o local.
Começando baixo e depois aumentando gradativamente, a cada segundo: o som de centenas — talvez milhares — de cavalos galopando, todos seguindo na mesma direção, carregando soldados em suas costas.
Em uma das várias dezenas de divisões daquela imensa formação, dois soldados destoavam dos demais. Ambos estavam com uma insígnia de duas setas cruzadas, além de uma medalha circular com um corvo estampado, com uma faixa preta e uma listra amarela no peito. Entre todos naquela divisão, apenas eles dois tinham aquele medalhão.
Além disso, o homem liderando a formação possuía um distintivo de quatro setas, se destoando dos demais que tinham somente um — no máximo dois.
A dupla era formada por uma elfa de cabelos brancos e um homem alto, de olhos vermelhos e cabelos dourados como ouro.
Evelyn estava em uma missão de investida contra Lieuwirk, ao lado de Nikolas e de vários outros soldados cujos nomes ela mal sabia.
Ela olhou para os lados, observando os rostos dos companheiros. Um por um… não conhecia nenhum deles. Apenas um rosto lhe era familiar, somente o de Nikolas. “Eles não estão ali…”, pensou. Ela sentiu um vazio em seu peito. Uma grande culpa. Por mais que tentasse manter o foco na missão, isso estava longe de ser fácil.
— É a terceira vez que você faz isso hoje. — comentou Nikolas. — Tem algum motivo?
— É que… eu fico olhando pros lados… esperando ver eles de novo… mesmo sabendo que não vai acontecer.
Nikolas, um soldado exemplar, sempre mantinha uma postura forte e firme… abaixou o olhar. Os ombros dele caíram em um gesto involuntário, como se recebesse uma pontada no coração.
— E eu nem consegui me despedir deles uma última vez. — terminou a elfa.
De todas as coisas que passavam pela mente de Evelyn, essa era a que mais a corroía. Depois de ter desmaiado durante a emboscada, ela só acordou sete horas depois, já de noite, em uma cama de enfermaria no campo militar onde entregariam a escolta. Estava em um lugar desconhecido, sozinha e um pouco machucada.
Pensar nisso doía. Muito. Mas, ao mesmo tempo, era impossível de não fazer. A dor invadia seus pensamentos. Machucando ela por dentro.
— Você nem podia fazer isso. — disse Nikolas, com a voz baixa. — Não foi sua culpa ter desmaiado. Você só tava seguindo o plano… A culpa… se é que tem alguma nessa história… é minha. Eu devia ter previsto que algo assim pudesse acontecer…
Evelyn virou os olhos para a esquerda, para o amigo ao seu lado.
— Eu me pergunto… se a gente fez a escolha certa… Afinal… eles morreram…
— Eu prefiro acreditar que sim. — Nikolas ergueu a cabeça, olhando para o céu. — Se a gente só tivesse se rendido, eles podiam ter arrancado de nós tudo que quisessem saber. Segredos de missão, localização de acampamentos, talvez até mais inocentes tivessem morrido depois disso. E… mesmo que a gente tivesse se rendido, não tinha garantia de que eles iam nos poupar. Kilian… Paul… Otto… Kristoff… Nowak… Eles foram heróis. A gente deve nossas vidas… e as vidas de muita gente a eles.
Nikolas via aquela situação com um otimismo contagiante. Mesmo com o pior acontecendo, ele buscava ver o melhor da situação e o melhor das pessoas em sua volta.
De alguma forma, aquelas palavras atingiram Evelyn. Até então, ela só enxergava tudo aquilo como uma tragédia que poderia ter sido evitada. Mas agora, começou a ver o sacrifício dos amigos como algo que, talvez, tenha salvado muitas vidas. Que a morte deles não foi completamente em vão.
Um sorriso fraco escapou do canto dos lábios. “Pelo menos… tem crianças que vão poder abraçar seus pais mais uma vez… que não vão passar pelo que eu passei…”
— Sim… — murmurou para si. — Obrigada… companheiros.
(37/04/4492)
Evelyn enfiou a mão no bolso e pegou um papel dobrado. Desdobrou com cuidado, revelando um mapa, cheio de informações de topografia, terrenos e coordenadas.
“Estamos no E9… quase entrando no E10…”, calculou ela mentalmente.
— Falta pouco pra gente sair dessa floresta. — avisou ela. — Fiquem atentos. O inimigo pode estar esperando.
— Entendido, cabo! — responderam os soldados logo atrás dela.
Os minutos seguintes foram mergulhados num silêncio pesado. Ninguém trocou uma única palavra. Só o som dos cascos sobre a grama e das folhas e galhos se rachando ecoava entre as árvores. Durante o que pareceram horas, eles avançaram até que, finalmente, uma luz adiante indicava o fim da floresta.
Evelyn e os outros estavam na linha de frente da formação da cavalaria. Os primeiros a sair das sombras, os primeiros a servir de alvo. Mesmo assim, mesmo com o risco estampado em cada passo, Evelyn não abaixou a cabeça. Seguiu em frente, determinada, feroz, com a promessa de vingança queimando no peito como nunca tinha queimado antes.
Primeiro foi o tenente Andrei, depois Nikolas, e logo Evelyn atravessou a última fileira de árvores.
O que viu foi algo lindo. Um campo verde amplo, com montes suaves espalhados por todos os lados e algumas faixas de flores amarelas nos pontos mais baixos do lugar. Aquele cenário, por um instante em meio ao inferno, trouxe paz. Se não fosse pela guerra, ela adoraria passear por ali.
— Ei, Evelyn… — chamou Nikolas, ao lado dela. — Depois que a guerra acabar, o que você vai fazer?
A elfa sorriu de leve, sem tirar os olhos do campo à frente.
— Demorou pra fazer essa pergunta…
Aquele era um dos poucos assuntos nos quais ela não tinha pensado nos últimos tempos. Sua mente só girava em torno da guerra, das mortes e das cartas da mãe — às quais ela respondia falando apenas sobre justamente a guerra.
— Eu acho que… não sei… não pensei muito sobre isso… — respondeu, levando a mão ao queixo, pensativa. — Acho que… terminar o ensino médio, já que tô no último ano… Depois disso… vou fazer alguma faculdade de artes.
— Além de tocar e cantar, você também desenha e pinta?
— Sim. — sorriu de canto. — Não quero me gabar, mas até que desenho bem. — desviou o olhar por um segundo. — E você, Nikolas? O que vai fazer?
— Quero voltar pra cuidar dos meus pais… Tentar achar uma moça legal e casar com ela… formar uma família. Se possível… ter um filho. Quero muito ser pai. É meu sonho. — terminou ele, corando na última parte.
Evelyn sorriu de verdade dessa vez. Para ela, aquele era um objetivo de vida digno. Criar uma nova vida, ter coragem de amar, assumir a responsabilidade de construir algo bom em meio a um mundo tão ruim… Isso era algo definitivamente corajoso.
Aquilo fez ela lembrar das antigas conversas com o pai. Ele dizia que toda vida tinha um valor intrínseco. Das relações que uma simples vida podia ter. Amizade, companheirismo, amor, ódio, indiferença… Todas essas infinitas relações complexas eram carregadas por uma vida. Uma única unidade de vida.
Evelyn não entendia muito bem o que o pai quis dizer com isso no começo. Mas aos poucos começava a entender melhor a lição.
— Acho que você vai ser um ótimo esposo… e um pai ainda melhor.
— Você acha mesmo?
— Claro! Você é esforçado, firme e uma ótima pessoa. Tem tudo pra realizar seus sonhos. Eu acredito nisso! — disse ela, abrindo um sorriso largo.
— Muito obrigado… por acreditar em mim, Evelyn. — respondeu ele, igualmente com um sorriso largo.
O momento de paz durou pouco. Logo depois, um som cortou o ar. Ouviram um estouro, vindo de longe. Todos os soldados se viraram, atentos. No céu, linhas vermelhas verticais rasgavam as nuvens. Sinalizadores vermelhos. Isso significava uma coisa: inimigo avistado, e pela quantidade de sinalizadores não era uma patrulha pequena. Logo, gritos começaram a ecoar da esquerda.
— Inimigo a dez horas! Inimigo a dez horas! — gritavam os militares.
Antes de marchar para além da fronteira, Evelyn recebeu a informação que o intuito desses gritos era para alertar os outros soldados ao lado e atrás na formação. Avisar que a batalha começou.
Evelyn repetiu o aviso, com a voz firme:
— Inimigo a dez horas! Atenção!
— Divisão dois avançar! Em direção ao inimigo! — gritou o tenente Andrei, confirmando o início do confronto.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.