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    Mesmo com o peito apertado, com o gosto ácido ainda na garganta e as mãos sujas de sangue — o próprio e o dos outros —, Evelyn não conseguia mais permanecer parada. Talvez fosse o instinto. O puro impulso de não querer morrer ali deitada como um animal doente. Ela se obrigou a mover os braços, a respirar fundo e fazer alguma coisa. O mundo estava de pé — e ela também precisava estar.

    Olhou ao redor, ainda pensando no que iria fazer, e viu uma figura negra deitada. Era sua égua, Aguro. O animal estava caído a poucos metros, berrando, com queimaduras no corpo, sem uma das patas e parte do torso aberto. Chorava de dor com a respiração falhando.

    Vendo a companheira desse jeito, Evelyn sentiu o peito apertar com força. Para muito, Aguro podia ser somente um animal, uma ferramenta de guerra. Mas para Evelyn, ela era mais do que só um animal. Era uma amiga silenciosa. Uma das poucas que sobraram… E agora, ela estava morrendo.

    — Não… não você também… — murmurou Evelyn, tentando se arrastar.

    As pernas não respondiam como antes. O corpo ainda tremia. Mas ela forçou os braços no chão, se arrastando na direção da égua com movimentos lentos e irregulares.

    Cada avanço arranhava os cotovelos, raspava os joelhos contra pedras e arranhava as mãos. Mas ela ignorou tudo. Só enxergava Aguro.

    Ao se aproximar, estendeu a mão e tocou o pescoço do animal. A pele queimava de calor. A respiração fica mais lenda e molhada, como se estivesse respirando o próprio sangue.

    Evelyn fechou os olhos por um segundo e se concentrou. De novo, ativou sua Alma. Cristais de gelo começaram a se formar sobre as queimaduras. Um a um, congelando os cortes mais profundos. A carne ainda pulsava por baixo, mas o sangramento diminuiu. Aguro não berrava mais — apenas gemia, com o focinho arfando devagar.

    — Aguenta, garota… eu tô aqui… você vai ficar bem…

    Os olhos escuros do animal encontraram os dela por um instante. Evelyn não sabia se era só reflexo, mas parecia que Aguro ficou mais calma quando a viu, como se a entendesse. Ainda sim… ela precisava de algo mais. Alguma coisa. Qualquer coisa.

    Olhou ao redor. No meio da terra revirada, viu um brilho fraco. Entre os destroços da explosão, um pequeno frasco que refletia a luz do sol. Ela se arrastou até ele, cega de esperança. Pegou com os dedos sujos de sangue e leu o rótulo: Elixir de Espírito Material.

    Lembrou o que fazia na mesma hora: caso fosse ingerido por um ser irracional à beira da morte, havia uma chance de que ele se transformasse em um espírito material. Um companheiro de Alma.

    — Isso… isso vai funcionar…

    Voltou com a droga. Aguro já não movia a cabeça e os olhos começavam a se dilatar. Com a última fagulha de esperança que restava, Evelyn abriu a mandíbula do animal com cuidado e despejou o líquido brilhante.

    No instante seguinte, o corpo da égua brilhou em azul. A carne desapareceu num clarão. A matéria virou energia. A energia girou, dançou no ar e foi sugada de volta para o frasco, agora com um leve brilho pulsante no seu centro.

    Evelyn encarou o frasco em silêncio, com a respiração ofegante, com as mãos tremendo. Por um instante, o mundo pareceu menos horrível. Aguro estava viva. De um jeito novo, quase mágico, mas estava ali. Ela apertou o frasco contra o peito, sorrindo pela primeira vez desde que a batalha se iniciou. Riu. O riso virou quase soluço, mas era um riso genuíno.

    — Eu consegui… — disse, baixo. Depois mais alto. — Eu consegui! EU CONSEGUI!

    O frasco pulsava em sua mão, emitindo um brilho suave, como se respondesse à garota.

    Mas sabia que não podia parar por ali. Precisava encontrar os outros e ajudar a terminar essa batalha o quanto puder.

    Com esforço, usou sua Alma mais uma vez. Criou uma espécie de prótese de gelo, moldando uma perna improvisada. E fez uma bengala do mesmo material. Se levantou, cambaleando.

    O campo agora era visível. Explosões, fumaça, tiros. O exército se aproximava das defesas. A batalha estava para entrar no seu auge.

    Evelyn se preparou para soltar o espírito de Aguro, voltar a batalha e matar cem lieuwirkianos.

    Mas então… parou.

    Algo chamou sua atenção. Perto dali, uns dez metros à frente, havia um corpo caído. Havia outros corpos também espalhados pelo chão… mas esse era diferente. Era… familiar.

    — Não… — sussurrou.

    Era uma pessoa de cabelos loiros como ouro, agora sujos de cinzas, sangue e terra. O uniforme estava rasgado e queimado. Uma perna inteira fora arrancada e parte do tronco em carne viva queimada, como se tivesse sido atingido por um estouro de artilharia.

    Evelyn soube quem era antes mesmo de ver o rosto.

    Era Nikolas.

    Os olhos arregalaram. Sentiu uma pontada no coração. E instintivamente correu até o companheiro. Ela cambaleava. A perna de gelo rachava com a força de cada passo apressado, mas ela não se importou. Caiu no chão. Se arrastou. Tentou levantar. Caiu de novo. Cada metro até ele foi um tormento.

    — Não, não, não, não, não, não, não. — murmurou, horrorizada.

    As mãos tremiam. A boca tremia. O coração martelava tão alto que parecia que ia explodir.

    Evelyn chegou ao lado dele. Se ajoelhou com dificuldade. Puxou o corpo para mais perto. O sangue ainda escorria. O rosto estava sujo, sem expressão. Os olhos fechados como se estivesse dormindo.

    — Nikolas…? — ela disse, quase sem voz. — Ei… o-olha pra mim…

    Tocou o rosto dele com os dedos ainda sujos de sangue. Gelado. Muito gelado. No mesmo momento ativou sua Alma. Estancou o sangramento com o frio. Depois, criou um bastão de gelo e passou sobre as queimaduras, se segurando para não chorar enquanto fazia tudo que sabia. Tudo que poderia fazer. Mas… aquilo não era o suficiente. Ela podia sentir. O corpo dele estava cedendo. Ele iria morrer e ela não podia impedir.

    — Não morre, p-por favor… — ela sussurrava. — Você prometeu… V-você disse que ia voltar pros seus pais… Q-que ia casar… Q-que ia ter um filho…

    O coração dela batia rápido demais. Como se estivesse tentando escapar pela garganta. As mãos tremiam. A respiração quase não vinha. Ela sentia frio em todo o corpo — mesmo não podendo sentir frio fisicamente. Mesmo assim sentia. Todo o seu corpo estava congelando.

    Era medo.

    Um medo profundo. Genuíno. E familiar. Ela já tinha sentido aquilo antes, duas vezes. No dia em que perdeu o pai. E de novo, no campo de escolta, quando perdeu seus companheiros.

    E agora… De novo. Ela queria que fosse diferente. Precisava que fosse diferente. Rezava, implorava, gritava para que fosse diferente. Que dessa vez, a pessoa que amava não morresse nos braços dela. Que dessa vez, alguém pudesse ser salvo.

    — MÉDICO! ALGUM MÉDICO, POR FAVOR!!!

    A voz rasgou o campo… mas ninguém veio.

    — ALGUÉM! QUALQUER UM! AJUDA!!!

    Entre os soldados que corriam pelo campo, Evelyn viu uma figura conhecida — uma silhueta que não via há dias, mas que imediatamente reacendeu uma centelha de esperança.

    A figura tinha uma faixa branca no ombro com uma cruz vermelha. Boina escura. Rifle nas costas. Era Clementine. Era a única médica que poderia salvar Nikolas. O coração de Evelyn saltou. Ela sentiu o sorriso nascer no rosto, quase sem perceber. Dessa vez seria diferente, a pessoa que amava seria salva, não morreria.

    — Clementine! Ajuda! — gritou, erguendo o braço com toda a força que lhe restava, chamando a atenção de sua amiga. — POR FAVOR!

    Clementine olhou na direção da garota. Ela viu Evelyn. Viu Nikolas. Viu o sangue. Viu que precisavam dela. Os olhos dela ficaram fixos nos dois por um instante. Então… a mulher desviou o olhar. Baixou a cabeça. Acelerou a corrida do cavalo e passou direto. Sem virar o rosto. Sem dizer nada.

    — …Clementine?

    O sorriso se desfez.

    — Não… volta… VOLTA! AJUDA, POR FAVOR! AJUDA!!!

    Ela gritou. Implorou. Suplicou para voltar. Que desse meia volta e isso não passasse de uma brincadeira idiota. Conforme o tempo passou, Evelyn soube que ela não voltaria.

    Traída pelo destino. Ignorada por aquela em que podia chamar de “amiga”. Ela voltou a gritar por ajuda. Qualquer ajuda. Podia ser do inimigo. Podia ser para um demônio. Qualquer um. Ela não se importava, só queria o amigo vivo.

    — ALGUÉM! POR FAVOR! ELE TÁ VIVO! ALGUÉM AJUDA!!!

    Mas ninguém veio. Aos poucos, os cascos dos cavalos sumiram. O som da batalha agora era apenas ruído ao fundo. Distante. Inalcançável. Evelyn finalmente entendeu: ninguém viria.

    O rosto se encheu de lágrimas, se misturando ao sangue que ainda escorria do próprio corpo.

    Nikolas estava morrendo. E ela não podia fazer nada.

    Aquela vez não foi diferente.

    Sozinha naquele campo encharcado de violência, entre os gritos da guerra e o som abafado dos próprios soluços, Evelyn se curvou sobre o corpo do amigo. Ela o abraçou forte, como se isso pudesse anular o destino. Como se isso pudesse puxá-lo de volta. Se despediu em silêncio. Do amigo que não pôde salvar. Do garoto que queria cuidar dos pais. Que sonhava com uma esposa. Que queria ser pai.

    Naquele momento, Nikolas morreu em seus braços.

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