Capítulo 38 - A Morte II
Na surpresa, Evelyn e Clementine olharam para Niko. A assassina, mesmo indefesa, sorriu sem mexer os olhos.
— Fez a pergunta certa, garoto… Eu não gosto de trabalhar pra gente que eu não conheço. Então fui atrás de saber quem era o cliente. E, olha… não era uma pessoa muito queee… “moral”. Passagem na polícia por identidade falsa, parentes presos por envolvimento com grupo terrorista… e a casa dele? Parecia mais um museu de símbolos e rituais bizarros. Ele era um-
Um estouro ecoou ao longe. Um buraco se abriu do lado da cabeça de Clementine. Sangue, osso, fragmentos de cérebro, tudo se espalhou no chão e na árvore em que estava presa. Os olhos dela continuaram abertos — imóveis — mirando diretamente Niko. Observando-o.
— CUIDADO! — gritou Evelyn.
Ela pulou sobre o garoto e ergueu uma parede de gelo à frente deles. O frio da Alma subiu pela palma e se cristalizou em um enorme escudo translúcido. Por alguns segundos, ela esperou outro tiro. Nada aconteceu.
— Você tá bem, Niko?! Niko?! — ela perguntou, virando-se para ele.
Ele estava parado. As íris contraídas. A boca entreaberta, como se tivesse esquecido como respirar. O garoto não respondeu.
— E-ela… morreu? — ele murmurou.
— …Sim.
— Ela tava… olhando pra mim…
Niko levou a mão ao peito. Aquilo que sentia, era medo. Um medo que nunca conhecera. Não era como os sustos que teve contra o lufador e a Clementine. Não era como a dor dos ferimentos que teve. Era outra coisa. Mais silenciosa. Mais gelada. Ele tinha visto a morte. E a morte olhou ele de volta.
— Vou checar os arredores. — disse Evelyn, se levantando com um bastão de gelo na mão.
— Cuidado… por favor.
Ela saiu devagar da proteção com um porrete de gelo nas mãos, com os olhos varrendo cada ponto da floresta, de pé na neve fofa. Cada árvore parecia esconder alguma coisa. Cada galho parecia prestes a se mover… mas não se moveu. Um minuto passou. Depois dois. E então ela relaxou o ombro.
— O atirador fugiu. — disse, jogando o bastão de lado.
Niko se levantou com esforço. A mobilidade havia voltado aos poucos durante o silêncio. Ele saiu de trás da barreira e foi até ela.
— Tem certeza?
— Absoluta. “Os olhos de um mercenário nunca mentem”. Um velho colega vivia me dizendo isso.
Enquanto Evelyn voltava à barreira de gelo, Niko observava a floresta, ainda procurando. Ainda esperando outro tiro. Um som. Um vulto. Qualquer coisa.
— Então… tem ideia de quem era o atirador? — perguntou ele, se virando para a garota.
Evelyn estava ajoelhada ao lado do corpo de Clementine. Fechou os olhos mortos da mulher com a mão enluvada, deixando que ela, ao menos agora, descansasse em paz.
— Nenhuma. — respondeu ela. — Mas… o fato de ter um atirador aqui só prova uma coisa.
Ela se virou para Niko, séria.
— A gente não tava sozinho.
— Você acha que ele veio depois da Clementine?
— É o que eu espero… — ela desviou o olhar, olhando de volta para a floresta. — Mas afinal… Por que ele só atirou nela?
***
Era tarde da noite. O silêncio dominava completamente a estrada. A única trilha sonora era o ranger das rodas e o estalar leve dos cascos da égua. Evelyn dormia ao lado de Niko, de boca aberta, enquanto o garoto mantinha os olhos à frente, liderando a carroça. Uma das rodas havia sido reconstruída com gelo azul horas antes, ainda firme e refletindo a luz fraca da lua.
Mas Niko não tinha sono. Sua mente ainda rodava em círculos sobre tudo que aconteceu — a morte de Clementine e o atirador invisível, que ele ainda sentia que estava os observando. Os pensamentos infestavam sua mente.
Ele se sentia culpado. Mesmo sabendo que Clementine foi contratada para matá-lo, ele não queria que ela tivesse morrido. Sentia que sua pergunta havia causado aquilo. Mesmo depois de enterrá-la e improvisar uma lápide junto com Evelyn, a inquietação não passou. Aqueles olhos sem vida ainda o olhavam. O julgavam. “Você me matou”.
“A morte é algo cruel”, pensou o garoto.
A carroça de repente parou. Aguro, a égua, ficou imóvel. Niko franziu a testa e balançou as rédeas levemente.
— Que foi, garota? A gente precisa ir.
Nenhum movimento. Ele desceu da carroça e foi até ela, fazendo um carinho na cabeça fantasmagórica.
— Tá tudo bem? Aconteceu alguma coisa? Ou você quer me mostrar algo?
Sem respostas. Então Niko pensou em perguntar algo à dona da égua, ela devia saber o que fazer nesse tipo de situação.
— Evelyn, tem alguma ideia de como…
Ela não estava mais ali. O banco ao lado estava vazio, sem nenhum sinal da elfa.
— Evelyn?
Decidiu procurar por ela. Olhou ao redor. Atrás da carroça. Dentro dela. Debaixo. Chamava o nome dela em cada lugar que foi.
— Onde ela foi parar?
Então, ouviu um som. Era uma melodia. Suave, calma e feminina. Um canto baixo, etéreo, que atravessava o silêncio como fina seda ao vento. Era belo. Encantador. Niko saiu pela parte traseira da carroça, guiado pela voz. Pegou sua lanterna e a acendeu, apontando para a floresta. A melodia vinha de lá.
“Eu… conheço essa voz?”
Sentiu uma lembrança estranha. Não era um pensamento, mas uma sensação: calor, conforto, amor. Coisas que ele jamais tinha vivido. Coisas que não poderia lembrar — e mesmo assim, sentia.
Seguiu o som. Entre as árvores, viu uma figura. Um vulto com uma aura em azul, envolto em um manto longo com capuz. Nenhum traço do rosto era visível. Não havia som nos seus passos, nem pegadas onde passava. Era como se flutuasse.
Ela parecia não ter notado Niko. Ele decidiu a seguir de longe, pisando devagar, com os olhos fixos na silhueta que brilhava como uma névoa mágica. “A Evelyn pode estar onde ela for…”, pensou ele.
A figura de repente parou. Estava diante de uma cruz improvisada feita de madeira. Era o local onde ele e Evelyn enterraram Clementine. Mesmo diante do túmulo, o canto continuava.
Sem pressa, ela se ajoelhou. Estendeu a mão azul, translúcida como vidro esculpido em névoa, em direção ao solo. Os dedos ficaram acima da terra batida. Por um instante, o tempo pareceu não passar.
Uma luz começou a brilhar no chão. Então, uma pequena esfera, pálida como a lua, se ergueu do túmulo em silêncio. Ela flutuou por entre os dedos da entidade, que a acolheu com uma delicadeza quase materna.
Com as duas mãos, a figura envolveu a esfera contra o peito. Seu canto se intensificou por um momento — mais grave, mais cheio de dor e ternura ao mesmo tempo — como um último lamento. Um sussurro de redenção.
Então, com gestos lentos, ela ergueu os braços em direção ao céu. A esfera brilhou uma última vez em suas mãos e subiu, ascendendo com a leveza de uma folha ao vento, desaparecendo entre as estrelas.
O canto cessou. Só restou o silêncio.
Niko observava em silêncio absoluto, preso à beleza do momento. Não entendia o que via. Mas algo dentro dele reconhecia que aquilo era de certa forma… belo.
A voz suave da figura surgiu, como se falasse direto dentro de sua mente:
— Você não deveria se condenar. A morte dela não foi sua culpa. E agora… ela está em paz. Por favor, seja gentil consigo mesmo… minha criança.
A figura se virou. Seu rosto parecia feito de porcelana fosca, com traços finos. Os olhos brilhavam em azul intenso, fixos nos de Niko. Imóveis. Eternos.
E então tudo se escureceu.
Nos seus ouvidos, escutou uma última mensagem:
— Durma bem.
…
Os sons de cascos voltaram. Sentiu a luz do sol batendo no rosto. Niko abriu os olhos. Estava de volta na carroça. O sol estava nascendo. Aguro caminhava suavemente pela estrada. Evelyn dormia ao seu lado, ainda de boca aberta e o rosto tranquilo. Ele olhou ao redor. A floresta parecia igual. A estrada era a mesma. Mas tudo parecia diferente.
“Aquilo… foi um sonho?”
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