Capítulo 4 - A Conversa
— É aqui, chegamos.
Niko e Evelyn chegaram ao acampamento. A região tinha menos árvores, o que dava ao lugar um ar mais aberto e acolhedor — bem diferente da monotonia da floresta. O acampamento ficava ao lado de uma das poucas árvores da grande clareira, junto de uma carroça coberta de neve, estranhamente sem nenhum animal que a puxasse. E uma barraca grande, nas cores laranja e amarelo, também coberta de neve, estava ao lado de uma fogueira apagada.
— Nada melhor do que voltar pra sua casinha provisória depois de umas boas longas horas de caminhada. — disse Evelyn, suspirando e se jogando de costas na neve, como se fosse uma cama. — Ah, verdade…
Ela rapidamente se levantou, parecendo estar com pressa. Foi até a fogueira e a acendeu com uma pederneira. Tirou a mochila das costas, colocou ao lado da barraca e se sentou encostada na árvore. Niko se aproximou, sentando-se do outro lado da fogueira, com as pernas cruzadas e o braço quase dormente estendido em direção ao calor.
— Então, o que você gostaria de saber primeiro? Só pra avisar que eu não sou dicionário nem pesquisadora, tá? Sou só uma mercenária. Então eu não sei sobre coisas muito específicas.
Niko pensou por um instante. Ele não sabia exatamente por onde começar. A lista de dúvidas era grande demais. “Que país estamos?”, “Que dia é hoje?”, “Tem algum motivo do porquê eu não tenho memórias?”… Sua cabeça girava com essas perguntas, não tendo ideia de qual devia fazer primeiro. Foi aí que lembrou da última frase de Evelyn. Aquilo chamou sua atenção.
— Você disse que era uma mercenária? Isso significa que… você mata pessoas por dinheiro?
Não era a melhor pergunta do mundo — nem a mais delicada. Mas era a que estava martelando em sua mente com mais força no momento.
— Você acertou. Agora que sabe disso, não posso deixar você sair vivo! Uhahahahaha! — brincou Evelyn, com a risada caricata se transformando em real. — Claro que não, bobo. Ser uma mercenária só significa que eu faço trabalhos que ninguém quer fazer porque são perigosos, como itens e pessoas para lugares ou caçar algum animal perigoso — tipo o que eu tô fazendo agora. Eu até já matei algumas pessoas, mas foi só em legítima defesa. Eu nunca mataria alguém só por dinheiro.
Niko ficou aliviado que não havia uma psicopata que só pensa em dinheiro na sua frente. Também, essa era a resposta que esperava no fundo. Alguém como ela não parecia do tipo que mataria por simples lucro.
— Desculpa se for um assunto sensível… mas como você ganhou essas cicatrizes?
— Isso não é um assunto sensível, não, relaxa. Eu ganhei elas numa batalha contra piratas, no mar de Saqiien. Foi quando eu e meu antigo grupo tivemos que levar um navio de Tevesco até Braqielus. — ela percebeu a expressão confusa de Niko ao falar aqueles nomes e completou: — Esses são dois países, depois eu te dou um livro de geografia e você dá uma olhada nele, tá?
O jeito como Evelyn contava sua história era empolgado. Cada palavra parecia ter um brilho único. Aparentemente, ela gosta de contar as histórias que teve — e Niko, mesmo que não demonstrasse bem, gostava de ouvi-las.
— O único país que você precisa conhecer por agora é Kyndral. É o país onde estamos agora.
A informação se fixou em sua mente. Niko agora sabia onde estava — e, mais importante, que havia outras nações por aí. Um novo tipo de curiosidade cresceu dentro dele. Queria saber mais sobre as nações deste mundo. Suas culturas, povos, histórias… Tudo que fosse possível.
— Ah, você sabe ler. Não é, Niko?
— Eu não sei… Eu não tenho memórias de ler algo… mas sinto familiar o sentimento de ler… Talvez eu não tenha me esquecido disso.
— Então me dá uns segundinhos
Evelyn se esticou para o lado, pegando lá de dentro de sua mochila um pequeno caderno e uma caneta. Rabiscou algo com concentração com parte da língua de fora no lado da boca.
— Consegue ler isso aqui? — perguntou, mostrando a folha.
No papel, estava escrito: “Du weißesh чitat?”
No momento em que viu a frase, Niko entendeu exatamente o que significava. Isso o deixou surpreso e contente, assim não precisaria aprender a ler e escrever — algo que, com certeza, não parecia ser nada divertido.
— Está escrito “Você sabe ler?”. Um pouco irônico até.
— Foi o que pensei na hora. — disse Evelyn, coçando a nuca. — Ainda bem que você já sabe ler! Assim, eu não vou precisar dar uma de professora e te ensinar algo do fundamental.
Nesse momento, Niko se deu conta de que a maior parte de suas perguntas era sobre ela. Aquilo o incomodou um pouco. Estava sendo invasivo sem querer. Decidiu mudar de assunto.
Ele se lembrou das várias facas que carregava por debaixo do manto — principalmente dos símbolos estranhos nelas.
Puxou uma das armas do manto e mostrou à garota.
— Você sabe o que esse símbolo significa?
— Deve ser um símbolo de Alma. Eles servem pra marcar pontos em objetos ou lugares, permitindo que você canalize Alma neles… Você não sabe o que é Alma, né?
Niko respondeu balançando a cabeça, negando.
— Certo. Alma é uma energia que só algumas pessoas, e alguns poucos animais têm. Essa energia permite a quem manifestar o poder do nosso espírito para fazer o que quisermos. Desde que seja de acordo com o sangue da família que temos. Por exemplo, eu compartilho o sangue da família Gélis, então eu consigo criar gelo e neve a partir da minha Alma.
Enquanto explicava, um floco de neve gigante se formou entre os dedos da mão esticada para frente.
— Existem outras famílias com outros tipos de Alma: fogo, ar, água, natureza, sombra, luz… invocadores também. Tudo isso existe. — o floco então se despedaçou em milhares de partículas brilhantes, como um pó mágico.
Niko ficou surpreso. Suas íris se dilataram mais do que o normal e sua boca abriu inconscientemente. Um floco de gelo havia surgido do nada e desapareceu também do nada! Era mágico.
— Isso é incrível!
— É mesmo. Mas aposto que a sua Alma é ainda mais legal que a minha! Quer dizer… se você tiver uma, né?
Evelyn imaginou que Niko pudesse ter alguma Alma e estava ansiosa para saber qual seria.
Parecia que ela adorava coisas relacionadas a Alma e lutas — inclusive, é provável que esse fosse um dos motivos de seguir a carreira de mercenária.
— Como faço pra usar isso?
— Eu não sei te explicar direito isso. Quando eu quero usar minha Alma eu só… uso ela. Como levantar um braço ou uma perna. Acho que com você é a mesma coisa. Só se concentra e tenta usar.
A explicação era bastante abstrata. Mas Niko tentou racionalizar.
“Se for como levantar um braço, então preciso encontrar a origem do movimento”. Teve uma ideia. Imaginou uma esfera de luz, pulsando, dentro dele, como se essa fosse a sua Alma e que toda vez que fosse usá-la imaginaria ela pulsando.
Em seguida, analisou as facas. Tinha muitas delas. O suficiente para não se preocupar se perdesse uma ou duas. Provavelmente eram facas de arremesso descartáveis. Isso explica o formato estranho delas. “Se são feitas pra arremessar, talvez o efeito aconteça quando eu jogo.”
Por esse raciocínio, pegou uma pela ponta e lançou com pouca força em direção ao campo aberto. A lâmina caiu a alguns metros de distância.
Fechou os olhos. A imagem da esfera de energia apareceu em sua mente. Então, ela pulsou uma vez. E…
— Aconteceu alguma coisa, Niko?
…Nada. Nenhuma explosão, nem luz, nem fumaça. Só silêncio.
Surgiu na mente do garoto a hipótese de não ter Alma. Isso o atingiu como uma pedra no estômago. Uma onda de tristeza percorreu seu corpo, do peito até os dedos dos pés. Queria ter uma Alma. Ver Evelyn criando gelo como mágica o animou tanto. Mas aquela esperança recém-nascida morreu rápido demais.
Ele suspirou, caminhando lentamente em direção ao local da faca caída. Mas algo estava errado. Niko não encontrava em lugar nenhum a faca que arremessou. Olhando de um lado para o outro, encontrou apenas um buraco com o formato da lâmina, mas nada do objeto.
Então sentiu um peso em sua mão direita — cerca de cinquenta gramas. “O quê? Eu não peguei ela de volta…”. Abriu o manto. Olhou para a mão. E a faca estava ali.
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