Capítulo 43 - A Fazenda
O veículo seguia em direção à fazenda, em uma grande estrada vazia coberta de neve, com o céu cinzento tornando a paisagem ainda mais fria. Niko estava na parte de trás da carroça, enquanto Brigitte e Evellyn estavam na frente. Mesmo com o clima depreciativo, Brigitte parecia indiferente em relação a isso, com os braços apoiados na lateral da carroça, observando o horizonte com empolgação.
— Eu sinto que essa missão vai ser emocionante! Um mistério e três investigadores. Vou escrever um conto sobre isso depois.
— Um conto?
— Exatamente! É um bom jeito de deixar registradas as minhas aventuras. Uma boa heroína precisa de boas histórias para contar.
— Eu gostaria muito de saber como você vai tornar uma história sobre um boi morto em algo fantástico. — disse Evellyn, rindo pelo nariz e ajeitando seu cachecol.
Brigitte apontou um dedo para ela, determinada.
— Toda grande história começa com um detalhe simples. Um assassinato pode parecer apenas um crime comum, até que você descobre que a vítima era um rei disfarçado! Principalmente em um ataque que não deixou marcas nem pistas. Isso pode ser algo muito maior do que esperávamos!
— Eu duvido um pouco disso, mas espero que seja mesmo.
— Eu tenho certeza que será!
Após mais alguns minutos, a carroça finalmente virou em uma cerca de madeira, seguindo até a entrada da Fazenda Ostrav. O lugar era grande, com algumas construções robustas, cercadas por terras vastas. Um grande celeiro de madeira escura se destacava à direita, enquanto duas casas, a casa menor estando atrás da maior, ficavam mais ao fundo, com a casa principal tendo uma chaminé que soltava um rastro de fumaça no céu pálido.
Quando a carroça parou perto do casarão de dois andares, Evellyn foi a primeira a descer, colocando sua mochila nas costas.
— Certo, aqui estamos.
Brigitte saltou para o chão com um impulso ágil, batendo os pés contra o solo coberto de neve, e Niko desceu normalmente logo em seguida, mas antes que pudessem se aproximar da grande casa, a porta se abriu, e um jovem saiu para encontrá-los. Ele tinha cerca de dezessete anos, cabelo castanho-claro e uma expressão desconfiada. Suas roupas eram simples, mas protegiam bem do frio.
— Quem são v’ocês? — perguntou ele, cruzando os braços.
O garoto tinha um sotaque levemente caipira e falava de forma hesitante. Parecia alguém introvertido, pouco acostumado a lidar com estranhos.
— Somos os mercenários contratados para cuidar da morte do boi.
O garoto passou a mão na nuca, bufou e acenou com a cabeça.
— Esperem aqui.
Assim, ele voltou para dentro da casa, deixando os três do lado de fora. Brigitte inclinou a cabeça com a atitude do possível filho do fazendeiro.
— Ele não pareceu muito animado em nos ver. Será que fizemos algo de errado?
— Eu espero que não. — disse Evellyn.
— Eu acho que ele só não está muito acostumado com mercenários. — sugeriu Niko.
— É, é bem possível.
Antes que pudessem continuar a conversa, a porta se abriu novamente, e um homem de meia-idade apareceu. Ele era alto e tinha os ombros largos, tendo as mãos calejadas pelo trabalho no campo. Seu rosto era marcado pelo cansaço, e seus olhos analisaram os três rapidamente antes de ele assentir.
— Então ocês são o pessoal que contratei. Entrem, precisamu conversar. — falou ele com uma voz típica de um caipira. Um sotaque bem mais forte do que o do seu filho.
— Agora sim, vamos falar de negócios. — falou a elfa mercenária, sorrindo.
Ela foi a primeira a entrar, seguida por Brigitte, que ainda olhava tudo ao redor com curiosidade. Niko veio por último, lançando um último olhar para o céu acinzentado antes de cruzar a porta.
Ao entrarem na casa, chegaram à sala de estar, um lugar espaçoso e aconchegante, com cerca de sete metros de altura e dois andares iluminados pelo grande candelabro no centro da sala. O lugar possuía alguns móveis, incluindo três sofás, um grande relógio, pilares enfeitados, mesas, grandes vidraças e um extenso tapete circular no centro.
O trio observava o lugar com curiosidade e admiração, principalmente Brigitte, que parecia estar em outro mundo, estando em um lugar que nunca pensou que estaria, ficando com a boca aberta e olhos brilhando.
Mesmo estando naquele grande lugar, o fazendeiro atravessou a sala com indiferença, levando o trio até um corredor com várias portas, onde, ao final dele, chegaram até a sala de jantar. Um local bem simples comparado à sala de estar. Havia uma chaleira no centro da mesa, ao lado de xícaras de cerâmica bem enfeitadas.
O senhor Keller se sentou em uma das cadeiras, exatamente no centro. Com isso, Niko, Evellyn e Brigitte também se sentaram ao lado oposto do contratante. Ele pegou a chaleira e colocou um pouco da bebida de dentro em uma das xícaras, servindo-se.
— Querem um pouco d’chá?
— Sim, por favor. — disseram os três.
Em seguida, o homem pegou três xícaras e estendeu a chaleira, despejando um líquido levemente vermelho de forte aroma nos copos.
Cada um pegou sua xícara, sentindo o calor agradável do chá em contraste com o frio do lado de fora. Brigitte foi a primeira a dar um gole e sorriu ao sentir o sabor suave e levemente amadeirado.
— Isso é bom!
— Chá d’Tai Gyang. Cortesia da Companhia Comercial d’Huangzhi. Ajuda a manter o corpu aquecido nesses invernos rigorosu. — respondeu Sigurd, tomando um gole do próprio chá antes de apoiar os braços sobre a mesa. Ele olhou diretamente para Evellyn, que parecia ser a líder do trio. — Agora, vamos falar de negócios.
Evellyn colocou a xícara de lado e cruzou os braços, assumindo uma postura mais séria.
— Antes de continuarmos, vamu esclarecer os termos do contrato. Ocês não estão aqui apenas pra descobrir o que aconteceu. Quero que fiquem na fazenda por alguns dias, até termos certeza d’que isso não vai se repeti. Se há algo espreitando meu gado, preciso garantir que não não vou perder mais nenhum animal.
— Isso significa que, além da investigação, também seremos responsáveis pela segurança do lugar?
— Exatamente. — confirmou Sigurd. — Ocês vão patrulhar o terreno durante a noite e verificar qualquer movimentação estranha. Durante o dia, podem conversa com os trabalhadores, procurar pistas ou o que acharem necessário.
— E a hospedagem? — perguntou Niko.
— Ocês vão ficar na casa de hóspedes, logo atrás da minha. Não é luxuosa, mas é confortávi o suficiente.
— Isso parece ótimo! Eu nunca fiquei em uma fazenda antes! — disse Brigitte, sorrindo.
Sigurd apenas ignorou a animação da garota e continuou a falar.
— O pagamento é de dois mil Yzakel e será feito daqui a quatro dias. Se conseguirem encontrar o culpado, darei um bônus extra de mil.
Evellyn cruzou os braços e olhou para Niko e Brigitte.
— Algum de vocês tem alguma objeção?
Niko apenas balançou a cabeça em forma de negação, enquanto Brigitte negou com o indicador.
— Então temos um acordo. — Evellyn voltou-se para Sigurd e estendeu a mão. — Vamos resolver isso.
O fazendeiro apertou a mão dela com firmeza, formando assim o contrato.
— Ótimo. Agora que iss’tá resolvido, vamos falar sobre o boi.
Ele tomou um último gole do chá e continuou.
— O animal foi encontrado morto ontem de manhã, no celeiro. O local tava trancado por dentro, sem sinais de invasão. Ninguém ouviu nada durante a noite.
— Como estava o corpo? — perguntou Niko.
O fazendeiro respirou fundo antes de responder.
— No começo, a gente pensou que ele só morreu do nada, coisa simples, mas depois a gente viu que a coisa era mais séria. O animal tinha ferimentos estranhos no corpo, cortes fundos e as duas patas traseiras foram completamente arrancadas. Como se alguma coisa tivesse devorado parte dele.
— Alguma criatura selvagem? — sugeriu Brigitte.
— Impossívi. O celeiro tava fechado a noite inteira e não teve sinais de invasão. Foi algo a mais que fez isso.
Enquanto isso, Evellyn apoiou os cotovelos na mesa, pensativa.
— Por que você não chamou a polícia ao invés de contratar a gente?
— Eu chamei, mas eles disseru que não podiaum fazer nada. — Sigurd respondeu com a voz carregada de frustração. — Como não houve roubo e nenhum outro animal foi ferido, só registraram o caso e foram embora. Dá pra’credita num troço desses?
— E quanto aos seus empregados? Alguém viu ou ouviu alguma coisa quando isso aconteceu?
— Alguns disseru ter visto sombras perto do celeiro nos últimos dias, mas ninguém soube dizer o que era. E, sinceramente, pode muito bem ter sido só o vento balançando as árvores.
— O corpo do animal ainda está lá?
— Não. Eu mandei retira du celeiro. Está guardado em uma sala separada.
— Vamos precisar analisá-lo.
— Claro, só deixe eu apresentá-los onde ocês ficaram primeiro.
Sigurd parou em frente à entrada da casa de hóspedes e puxou uma chave do bolso, entregando-a para Evellyn.
— Essa era a antiga casa da minha família, daí a gente resolveu fazer uma nova e começou a usar essa para as visitas.
A casa de hóspedes ficava logo atrás da principal, uma construção simples, feita de madeira escura, com um telhado inclinado e uma pequena varanda na frente. As janelas eram estreitas, e a porta parecia antiga, mas resistente.
— Tem uma sala com lareira, três quartos e dois banheiros. Ocês vão ter que dividir.
— Sem problemas. — Evellyn respondeu, girando a chave na fechadura e empurrando a porta.
— Assim que acabarem com tudo aí, só me avisar, vô tá em casa enquanto isso. Até logo.
— Até, senhor. E muito obrigada.
O homem somente abaixou um pouco a cabeça em sinal de “entendido”, deixando os três a sós na casa de hóspedes.
O interior era aconchegante, mas rústico. A sala de estar tinha uma mesa de madeira com algumas cadeiras velhas, uma pequena cozinha no canto e uma lareira de pedra apagada. As paredes eram brancas, decoradas com alguns quadros simples. No fundo, havia um corredor que levava aos outros cômodos da casa.
— Eu adorei! — Brigitte disse animada, correndo os dedos pela madeira da mesa e espiando cada canto da sala como se descobrisse um novo mundo.
Evellyn jogou sua mochila no sofá da sala, tirou seu casaco, colocando-o sobre o sofá, se sentou e espreguiçou.
— Melhor do que dormir ao ar livre em uma barraca.
Niko, por outro lado, inspecionava o lugar com mais atenção. Abriu e fechou as janelas, verificou a firmeza da porta e olhou ao redor com um olhar analítico.
— Você acha que tem alguém espiando a gente? — perguntou Brigitte, observando Niko vasculhar o local.
— Não custa ter certeza.
— Relaxa, maninho. — disse Evellyn. — Se a gente tivesse caído em uma armadilha, já teriam atacado.
— Ou só estão esperando o momento certo. — Niko rebateu, mas suspirou e parou de inspecionar o lugar. — Mas, por enquanto, parece seguro.
Brigitte apoiou os punhos na cintura, fazendo uma pose e sorrindo.
— Bem, se alguém tentar alguma coisa, eu acabo com eles rapidinho! Hehehe.
Após se acomodarem completamente na nova estadia, Evellyn ficou no meio da sala, entre o sofá e a lareira, chamando a atenção dos dois.
— Certo, antes de a gente ir para o celeiro, vamos recapitular. O fazendeiro disse que o boi foi encontrado morto sem sinais de invasão e que os trabalhadores mencionaram sombras nos últimos dias.
— O que significa que algo já está rondando a fazenda há um tempo. — disse Niko.
— Exato. — Evellyn continuou. — O que me intriga é a polícia ter ignorado o caso. Mesmo sem roubo, ainda foi um animal morto dentro de um celeiro fechado. Algo no mínimo suspeito.
— Parece preguiça da parte deles. — Brigitte cruzou os braços. — Ou talvez tenham casos demais para se preocupar com um boi.
— Ou alguém disse para eles não investigarem. — Niko completou.
Evellyn foi em direção ao sofá, pegou e vestiu seu casaco.
— Só vamos descobrir a verdade investigando.
Brigitte bateu os punhos um no outro, empolgada.
— Sim! Vamos resolver esse mistério!
Com isso, os três saíram da casa de hóspedes e seguiram até a casa de Sigurd para irem juntos ao celeiro, para começarem a investigação.
A grande porta de madeira foi aberta, revelando o interior do celeiro para o trio. O local era um corredor reto bem bagunçado, feno, baldes e barris estavam espalhados por toda a parte, além disso, o local tinha várias estalagens, com bois e vacas bufando e mugindo de maneira irritante.
Ao entrarem no local, Brigitte sentiu um cheiro estranho, então deu uma pequena fungada no ar, uma ação da qual se arrependeu instantaneamente de fazer.
— Nossa, que cheiro horrível! — comentou ela, tampando as narinas com os dedos.
O celeiro estava com um cheiro forte de fezes e feno úmido. Niko e Evellyn também tamparam as narinas, tentando ignorar o mau cheiro, e Sigurd não parecia se incomodar nem um pouco com o odor, como se estivesse acostumado com ele, algo que com certeza era verdade.
— O cheiro tá mió do que da última vez. — murmurou Sigurd, caminhando pelo corredor principal. — Acho que os outros bois estão nervosos com o que aconteceu. Desde aquela noite, eles não se acalmaram totalmente.
Niko olhou ao redor e percebeu que os animais estavam realmente inquietos. Muitos pisoteavam o chão repetidamente, alguns mugiam sem motivo aparente e outros se afastavam instintivamente da porta ao fundo do celeiro.
— Eles já estavam assim antes da morte do boi? — perguntou o albocerno.
— Não desse jeito. Só ficaru assim depois do que aconteceu.
— Então, seja lá o que matou o boi, deixou os outros com medo. — concluiu Niko, caminhando pelo corredor. Ele olhou para as travas das baias, verificando se alguma parecia estar quebrada. — Mas nada aqui parece ter sido arrombado. Uhm?
Foi então que parou, viu uma trava diferente das outras, ela estava quebrada e dentro da estalagem não havia nada, nenhum animal, feno ou algo do tipo, ela estava completamente vazia.
— Foi ali que o gado morreu? — disse Niko, apontando para a estalagem divergente.
Sigurd também permaneceu imóvel, olhou para onde Niko apontava e assentiu com o olhar meio tenso.
— Sim. Foi aí que encontramos ele… ou o que sobrou dele.
Evellyn se aproximou da baía, analisando a tranca de madeira partida. Ela passou os dedos pelo local onde a trava havia sido quebrada e percebeu que as rachaduras não eram uniformes.
— Isso foi arrombado com força. Muita força mesmo.
Brigitte engoliu em seco e olhou em volta, sentindo um arrepio percorrer sua espinha.
— Isso está começando a parecer uma daquelas histórias de terror que as velhas da minha vila contavam… Credo.
Evellyn se afastou da madeira, deixando de analisar o objeto. Voltando seu olhar ao fazendeiro.
— Onde está o corpo?
Sigurd apontou para a porta de metal no fundo do celeiro.
— Guardamos ele ali, em uma sala separada. A gente achô mió manter longe dos outros animais até resolvê a situaçaum.
Os três o seguiram até a porta reforçada. O fazendeiro puxou um molho de chaves do bolso e destrancou a fechadura, empurrando o aço reforçado para o lado.
Assim que a porta se abriu, um cheiro forte de carne podre escapou imediatamente, inundando o ambiente e atingindo o grupo, fazendo Brigitte cobrir o nariz outra vez.
— Ai, que nojo!
Sigurd entrou primeiro, seguido pelo trio. A sala era pequena e sem janelas, sendo iluminada apenas com uma luz amarela vinda de uma lanterna presa no teto, o chão de pedra estava levemente manchado de vermelho. No centro, deitado sobre um pano grosso e sujo, estava o cadáver do boi, ou pelo menos, o que restava dele, completamente repleto de moscas.
Ao entrarem, o cheiro piorou. Todos os presentes ali fizeram uma careta enojada. Aquele era uma fazenda de laticínios, mas o cheiro se assemelhava a um matadouro. Evellyn se sentiu um pouco sufocada no ambiente e Niko cobriu a boca, com o estômago subindo, sentindo que vomitaria a qualquer momento.
Brigitte arregalou os olhos, absolutamente assustada ao ver o estado do corpo do animal.
— Mas… que diabos fez isso?!
A carcaça estava dilacerada. O couro havia sido arrancado em algumas partes, revelando músculos retorcidos e ossos quebrados e roídos. O tórax estava aberto, as costelas estilhaçadas, como se algo tivesse devorado os órgãos internos. As patas traseiras simplesmente não estavam mais lá, foram arrancadas.
No começo, Evellyn não estava levando a missão muito a sério, pensando que era somente o ataque de um predador e que não fazia sentido eles serem contratados para lidar com aquilo. Mas ao ver aquela cena, entendeu completamente a mentalidade de Sigurd. Seja o que foi que fez aquilo, não era um animal, chegava mais próximo de um monstro.
Evellyn, agora curiosa, se abaixou ao lado do cadáver, analisando as feridas com um olhar atento. Ela, mesmo com certo nojo, passou os dedos pelas marcas profundas no couro restante.
— Mordidas… São irregulares, desalinhadas. Lobos arrancam pedaços inteiros quando mordem. Isso aqui parece como… como se alguém tivesse mastigado com pressa, rasgando mais do que realmente comendo.
Ela então olhou para Sigurd, que estava com os braços cruzados, tentando se manter firme.
— Você já viu algo parecido antes?
O fazendeiro balançou a cabeça, visivelmente incomodado.
— Nunca na minha vida eu vi algo parecidu’com isso.
Brigitte se aproximou de Evellyn e apontou para o que restava do pescoço do boi.
— Aqui… tem marcas de unhas?
Niko olhou onde ela indicava e percebeu o que antes parecia apenas mais um corte no couro. Mas, ao olhar de perto, viu que eram quatro riscos profundos, paralelos, como garras. Evellyn e Niko trocaram um olhar.
— Definitivamente, não foi um animal comum que fez isso. — murmurou Niko.
— Mas se não foi um animal… então foi o quê? — perguntou Brigitte, engolindo em seco.
— É isso que a gente tem que descobrir.
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