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    Evelyn dormia profundamente, coberta entre os lençóis, com o rosto meio enterrado no travesseiro. Ainda faltava algum tempo para o horário habitual de acordar — mas seu descanso foi interrompido por uma entidade teimosa, fofa e insistente.

    Uma bola de pelos laranja e quente começou a incomodá-la, roçando o focinho na sua bochecha e depois lambendo seu rosto.

    — Mmmh… me deixa dormir, vai… — murmurou, tentando afastar o incômodo.

    Virou-se para o lado oposto com preguiça, esperando que a criatura desistisse. Mas não desistiu. Mithi, o gato laranja recém-adotado, agora estava caminhando pelo seu corpo como se ela fosse um tapete. Depois, se distraiu brincando com as pontas das orelhas pontudas da dona. Quando isso falhou, passou a miar persistentemente — bem no ouvido da elfa. Sem pausa. Sem piedade.

    Aquele conflito continuou por minutos, até que finalmente se teve um vencedor.

    — Tá bom… eu acordo. Uaahhrrr… — resmungou Evelyn, sentando-se na cama com um espreguiçar demorado.

    Passou as mãos no rosto ainda com sono. Ao abrir os olhos, viu Mithi sentado bem em frente à cama, com as patinhas juntas e o olhar julgador. O pequeno culpado. Sua pose parecia dizer: “Eu venci, mortal.

    — O que foi, garoto? O Niko não te deu nada pra comer?

    Se levantou, pegou a muleta encostada no criado-mudo e seguiu o gato pela casa. Mithi caminhou até suas tigelas e parou diante delas, encarando Evelyn como se dissesse: “Veja com seus próprios olhos.

    — Espera aí… — murmurou ela, se abaixando.

    A tigela de comida ainda estava pela metade. Isso significava que o gato já teve seu café da manhã.

    — Ué… então você já comeu. Eu não acredito que me acordou só pra querer repetir! — levantou o gato no colo, segurando-o com uma mão.

    — Meow.

    Os rostos dos dois ficaram frente a frente. Evelyn dando um olhar sério em direção ao felino pilantra. E então, Mithi deu uma lambida suave na ponta do nariz dela. Evelyn derreteu no mesmo instante.

    — Ai… eu não consigo ficar brava com você. Sua bolinha de pelo egoísta… — riu, beijando a testa do gato e o depositando de volta no chão com carinho.

    No caminho de volta ao quarto, passou pela sala. Os quadros encostados nos cavaletes ainda estavam ali — duas obras inacabadas de cenários rurais e uma pintura abstrata de Niko que o próprio adorou. Sorriu ao ver aquilo. Estava orgulhosa de finalmente voltar ao ramo das artes depois de dez anos. 

    Ao passar pela mesa de jantar, notou um bilhete dobrado com letras grandes em cima.

    Abriu e leu a mensagem:

    Bom dia, Evelyn (isso se você não acordou depois do meio-dia. Se for o caso… boa tarde).

    Deixei esse bilhete só pra avisar que estou no parque Rosengard, na estante de tiros (isso se ainda estiver lá quando você ler isso). Caso eu volte antes, vou pegar o bilhete de volta e você nunca saberá que escrevi isso…

    Enfim, bom dia : )

    Ela balançou a cabeça com um sorriso discreto. “Esse garoto…

    Seguiu para o quarto, tomou um banho morno e vestiu roupas confortáveis. Preparou seu café da manhã — torradas com ovos mexidos e uma caneca de café forte — e sentou-se no sofá da sala. Ao lado, havia uma pilha de papéis dobrados. Lembrou-se do pedido que fez a Niko ontem: “Traz um jornal se sair cedo.

    Pegou um dos jornais e começou a folhear.  A maioria das manchetes era comum — disputas políticas, crimes locais, o alerta sobre uma possível nova era glacial… Coisas de sempre. Enquanto lia, Mithi se entretinha com a bolinha de borracha que Evelyn comprou dias atrás, batendo nela com as patas de leve, como se caçasse uma presa inanimada.

    Nada parecia muito relevante. “Outro dia chato como os anteriores”, pensou. Até que, ao virar a página para a seção de anúncios e empregos, algo a fez arregalar os olhos.

    Ela engasgou com um gole de café e tossiu de leve, derrubando farelos de torrada no colo.

    — O-o quê?! Isso é sério?!

    Leu a notícia novamente. Depois uma terceira vez. Estava mesmo escrito ali. Aquilo era real. Era importante. E precisava ser compartilhado com alguém.

    Levantou-se em um salto, ainda segurando o jornal com força. Precisava contar para alguém. E havia somente uma pessoa com quem dividir aquilo: seu parceiro de crime e parceiro, Niko.

    ***

    Encaixou o carregador, puxou e soltou o ferrolho, destravou a trava de segurança e baixou o cão da arma. Niko estava sozinho no estande de tiro do parque Rosengard, com a pistola que havia comprado dias antes. Queria treinar a mira — e, mais do que isso, queria clarear a mente. O último acontecimento ainda não o deixava dormir bem.

    Ahti e o cliente estavam mortos. Quando Niko vasculhou o cadáver do encapuzado, não encontrou nada que ajudasse: sem documentos, sem identidade, sem pistas. Um desaparecimento calculado, projetado para não deixar nenhuma resposta. Aquele homem havia ido até ali só para matar — e desaparecer consigo mesmo.

    E Niko havia falhado. Estava distraído quando os tiros aconteceram. Se deixou levar pela conversa, pela esperança idealista de que tudo sairia como o planejado. “Isso não pode acontecer de novo”, pensou. Não podia mais deixar brechas. Não podia mais se dar ao luxo de confiar demais nas possibilidades. Precisava fazê-las.

    Lembrou também da tentativa frustrada de revisitar a casa de Clementine. Quando voltaram para buscar Mithi, decidiram vasculhar o local mais uma vez, na esperança de encontrar algo esquecido — uma pista, uma anotação, um nome. Mas tudo o que encontraram foram os contos de terror que aquela mulher estranha escrevia.

    Sem rumo. Sem esperança. Era assim que se sentia. Como se cada novo caminho terminasse em um beco vazio. Até cogitou roubar arquivos da polícia — se é que aquilo traria alguma vantagem real para a investigação. No fim das contas, tudo parecia escuro. Não existiam mais peças no quebra-cabeça.

    O último disparo da série esvaziou o segundo carregador. A pistola travou, o ferrolho recuou, soltando uma leve fumaça pelo cano. Niko trocou para seu último pente de balas, girando o pulso devagar. Ao mirar de novo nos alvos de papel, algo o fez hesitar.

    Ali, no alvo, viu um vulto: cabelo ruivo, olhos vermelhos, mãos erguidas, pedindo clemência. Era Ahti. Mesmo sabendo que era apenas uma ilusão da mente, o garoto não conseguiu puxar o gatilho. Engoliu em seco e abaixou a arma.

    Por que alguém se mataria tão facilmente?”, pensou. “Será que eu já estive perto de fazer isso contra a minha própria vida também…?

    Suspirou fundo. Começou a olhar a própria arma na mão, como se isso fosse lhe dar alguma resposta da confusão que estava vivendo.

    — BOM DIA, NIKO!

    — AAAAHHGG!!!

    O susto foi imediato. As íris se contraíram de imediato. Niko quase caiu de costas. Se virou e viu Evelyn ali, com o maior sorriso do mundo e um jornal dobrado nos braços.

    — O que foi, Evelyn? Você me deu um baita susto.

    — Niko, Niko, Niko, Nikooooo! Olha isso aqui! — disse ela, agitando o jornal como se fosse um troféu.

    Ela estendeu uma página dobrada diante do rosto dele. Era um anúncio de contrato mercenário. O encontro estava marcado para às 14h no bar Uvenbast, na mesa dez. E o prêmio pela missão completa era de cinquenta mil Yzakels.

    — Eu pensei que você ia se dedicar só à pintura agora… — disse Niko, franzindo a testa.

    — E eu vou! — respondeu ela, com um sorriso ainda mais largo. — Mas fazer uma missãozinha de vez em quando não faz mal. E você viu o valor? CINQUENTA MIL! Dá pra mudar de casa, tirar férias, divulgar meus quadros. Me ajuda, por favor, vai…

    — Uhm…

    Niko baixou os olhos, pensativo. Cinquenta mil Yzakels… Isso é muito para uma missão comum. Demais até. E por que tanto dinheiro assim? O que poderia justificar esse pagamento?

    Olhou de novo para Evelyn, que ainda sorria como se já soubesse que ele diria sim. “Bom… eu também preciso de dinheiro pra continuar investigando. Talvez isso me leve a algum lugar”, pensou.

    — Evelyn… você tem certeza disso? — disse, sério. — Cinquenta mil Yzakels é dinheiro demais pra um serviço simples. Pode ser perigoso.

    — Só te digo três palavras: “cinquenta”, “mil” e “Yzakels”! — repetiu ela com teatralidade, abrindo os braços. — Isso é uma oportunidade única! Vai mesmo me dizer que você não quer aproveitar?

    Niko olhou novamente para a pistola negra em sua mão. Pensou em tudo o que tinham vivido. Todas as mortes, os fracassos, os pontos que ainda pesavam na mente. Talvez uma nova missão fosse a distração que precisava. Ou, quem sabe, um novo caminho.

    — Tá bem… vamos fazer isso.

    Evelyn deu um pequeno pulo, girando no lugar, claramente animada com a nova aventura.

    — EU SABIA! Vamos nessa! Temos um bar pra visitar e um cliente pra conhecer!

    Niko soltou um suspiro cansado… mas não conseguiu evitar um pequeno sorriso.

    — Mas sério, não faz mais isso comigo. Quase enfartei.

    — Prometo! — disse ela, com um sorrisinho inocente, os olhos fechados, a língua de fora, coçando a nuca como uma criança travessa.

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