Índice de Capítulo

    A missão da dupla havia começado oficialmente. Niko e Evelyn estavam nas margens de Reiken, longe dos centros comerciais e residenciais. Haviam acabado de entrar no mercado negro.

    A rua ilegal iluminava o céu escuro da madrugada com cores vibrantes e fumaça, enquanto milhares de pessoas compravam e vendiam produtos ilegalmente. Longe dos olhos das autoridades, seguranças musculosos e mal-encarados vigiavam o distrito como leões em jaulas abertas.

    Gregory havia explicado: durante uma grande festa na mansão de lady Hyandra, alguém desconhecido havia roubado um colar precioso. A missão era simples — encontrar o item roubado e devolvê-lo ao dono original. Simples… na teoria.

    O colar era de ouro puro, incrustado com diamantes, e com uma flor de Araquel bem no centro. Tão chamativo quanto inconfundível. O lugar mais provável de estar era o mercado negro de Gryznóv, no limite sul da capital, colado aos bairros pobres — conhecido justamente por vender objetos roubados e itens de origem duvidosa.

    — Já esteve aqui antes, Evelyn? — perguntou Niko, enquanto observava os barracos coloridos e o fluxo incessante de pessoas.

    — Já sim. Alguns clientes me mandavam entregar mercadorias e outros tipos de coisas aqui. Inclusive, eu tinha um cliente, um filho de um ricaço que me pagava pra comprar droga pra ele. Nunca comprava pessoalmente, achava esse lugar “coisa de plebeu”. Um dia, exagerou na dose e morreu. Perdi uma boa grana com isso.

    A resposta atingiu Niko com um desconforto visível. Aquela indiferença ao falar da morte de uma pessoa, se importando mais com o dinheiro do homem do que com sua vida. Aquilo o deixou irritado de verdade.

    — Isso não foi legal. — disse ele, em um tom sério.

    — Hm? O quê? — perguntou ela, inocentemente.

    — Falar da morte dele como se fosse um prejuízo de negócio. Ter tratado a vida dele com indiferença. Você devia valorizar mais a vida. Devia ter insistido mais pra ele largar aquele vício antes que aquilo acontecesse.

    — Mas eu insisti.

    Niko se surpreendeu. Os olhos franzidos de raiva se arregalaram. Não esperava ouvir aquilo dela. Virou o rosto, encarando a expressão neutra de Evelyn.

    — Tentei fazer ele parar com aquela vida, mas ele não quis. O problema do livre-arbítrio é esse. Você pode escolher o que quiser… e acabar sendo escravo dos próprios desejos.

    Enquanto andavam, Niko notou ao redor pessoas cambaleando, com os olhos fundos, tremores no corpo e gestos repetitivos. O cheiro que pairava no ar era intenso. Era nojento.

    — Nossa, que cheiro horrível. — comentou Niko enquanto fechava as narinas.

    — É cheiro de ópio.

    Com o passar dos minutos, aquele odor e os usuários se dispersaram. A rua seguinte era mais limpa, com lojas variadas e chamativas, parecia até mesmo um bairro comercial normal — só que mais pobre. Pararam ao lado de uma barraca encostada a uma parede.

    — Bom, acho que a gente já pode começar perguntando sobre lojas de jóias. Assim, talvez localizemos o colar mais rápido. — sugeriu Evelyn.

    Mas Niko franziu a testa. Viu uma coisa inconsistente na sugestão de Evelyn. Resolveu apontá-la.

    — E se o colar não estiver com um vendedor de joias?

    — Como assim?

    — Quero dizer… o ladrão pode ter vendido o colar pra uma loja que não é especializada em jóias, que seja focada em vender de tudo, inclusive jóias. Então, ao invés de procurar somente lojas de jóias, não seria melhor procurar por qualquer loja que possa ter alguma jóia?

    Evelyn olhou para baixo e colocou a mão no queixo, pensativa por um instante.

    — Bom… até que faz sentido. Melhor a gente começar logo.

    Niko assentiu, e os dois voltaram à rua principal.

    Evelyn observava tudo ao redor com olhos atentos, avaliando clientes e vendedores, buscando alguém que parecesse o tipo certo para se conseguir informações. Finalmente, seus olhos pararam em uma barraca pequena. Aproximou-se imediatamente, com Niko a reboque.

    Na placa ao lado estava escrito “Livraria-Livre”. Do lado de dentro, uma mulher de cabelos negros, meia-idade e aparência simpática, sorriu ao ver os dois se aproximando.

    — Boa madrugada, senhora. O que você tem aí de bom? — perguntou Evelyn.

    — Boa madrugada pra vocês também, senhores. Aqui vendo livros banidos e traduções não oficiais. Algum tema interessa vocês?

    Niko esperou que Evelyn fosse falar primeiro, mas ela permaneceu em silêncio. Apenas deu um tapinha no ombro do garoto. Ele entendeu na hora o recado.

    — Ah, eu gosto de livros de ficção. Você tem algum que seja interessante?

    — Tenho sim. — disse a vendedora, pegando um modelo. — “A Canção dos Deuses Caídos”. É um livro Yzelhio. Nunca foi traduzido oficialmente pro kyndrálio por ser considerado “imoral demais”. Isso é ridículo, sinceramente. Mas enfim, eu acho que você vai gostar dele, garoto.

    Ela entregou o livro a Niko e virou para mostrar a contracapa. A sinopse dizia:

    Quando os céus permaneceram em silêncio e os deuses desapareceram, o mundo mergulhou no caos. Reis caíram, impérios ruíram, e o povo clamava em desespero: ‘Onde estão os deuses?!

    Mas, enquanto os mortais choravam, um grupo de guerreiros se levantou. Buscando respostas, atravessaram terras proibidas e desafiaram os segredos do universo até descobrirem a terrível verdade.

    Os deuses não eram os salvadores da humanidade. Eram suas correntes.

    Agora, esses guerreiros não buscam mais trazer os deuses de volta. Buscam matá-los. E para alcançar esse objetivo irão fazer o próprio céu cair.

    Niko achou a sinopse intensa. Mais do que estava acostumado a ler. Mas, ainda assim, era intrigante. “Então essa é a literatura do oriente?”, pensou ele.

    — Acho que vou levar esse mesmo. Quanto custa?

    — Ótimo! Fica um Yzakel e meio.

    Niko tirou de seu manto uma moeda e uma nota negra e dourada, entregando à mulher.

    Assim que a venda foi feita, Evelyn deu uma tosse fingida e estendeu a mão com naturalidade.

    — Com licença, moça. Posso te perguntar uma coisa?

    — Mas é claro, querida.

    — Você conhece algum lugar que venda jóias aqui perto?

    Niko, que antes achava que a compra do livro tinha sido aleatória, entendeu tudo naquele instante. Sua mente pareceu explodir. Evelyn comprou algo da loja como forma de criar afinidade, aumentando a chance de conseguir informações. Um pequeno investimento para gerar confiança. “Isso é genial”, pensou Niko, em silêncio.

    — E estou falando de joias bem valiosas. Que chegam a… cinquenta mil Yzakels.

    — Cinquenta mil?! Você tem esse dinheiro aí?

    Se a rua estivesse silenciosa, aquela pergunta teria atraído olhares perigosos. Mas — felizmente — o barulho dos comerciantes e compradores abafou o comentário, evitando que ladrões e oportunistas os colocassem na mira.

    Evelyn fez um sorriso amarelo e encolheu os ombros. Não sabia o que devia responder. Com certeza estava arrependida de ter falado aquele número em voz alta.

    — Bom… tem algumas lojas de jóias por aqui, mas a maioria é falsificada. Se você realmente quer pagar cinquenta mil numa joia, o ideal seria ir direto num fornecedor.

    — Não tem nenhum lugar aqui que possa ter uma joia de luxo pra vender na hora?

    A desesperança atingiu a dupla. Começaram a acreditar naquele instante que não iriam encontrar o colar. Niko murchou levemente. Evelyn, mais ainda. Já conseguia ver seu maior pesadelo se tornando realidade — não conseguir os cinquenta mil.

    — Na verdade… tem um lugar, sim.

    Os dois se entreolharam, com olhos arregalados. Nem precisaram falar.

    — Tem um leilão aqui em Gryznóv. O Leilão de Hackett. Ele acontece durante toda a madrugada. Vendem todo tipo de mercadoria lá, uma mais rara que a outra. Lá é o único lugar onde você pode dar a sorte de achar uma jóia dessas à venda, sem precisar negociar com um fornecedor antes.

    — Os itens são fixos ou aleatórios? — perguntou Niko.

    — Aleatórios. Se não fossem, não teria graça. Se quiserem tentar a sorte lá, fiquem à vontade. Mas saibam que pode ser que não tenha o que vocês querem nos lances. Mesmo se tivesse, alguém pode dar um lance maior que o de vocês. Ainda assim, vale a pena tentar.

    — É, talvez outro dia. — disse Evelyn, com um sorriso forçado. — De qualquer forma, obrigada pelo livro e pela informação, senhora.

    — Imagina, eu que agradeço. Tchau-tchau, rapazes!

    As duas se despediram, e Niko e Evelyn voltaram a andar pelas ruas do mercado negro.

    — Eu não entendi. A gente vai voltar aqui outro dia pro leilão?

    — Claro que não, bobo. Foi só pra diminuir nossas suspeitas caso a gente precise “re-roubar” o colar. A gente vai para o leilão agora.

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