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    O céu se escurecia rapidamente. Niko acendeu sua lanterna, e um feixe branco-azulado cortou o escuro como uma lâmina de luz.

    Ele parou por um momento para observar melhor o objeto que segurava. A lanterna possuía uma lente ajustável que podia abrir e fechar com um único botão, mas mesmo assim, a luz ainda escapava pelas juntas — como se dentro do mecanismo ainda tinha uma luz constante, como algum fragmento de pedra ou cristal brilhante, e a parte externa fosse apenas uma carcaça.

    Esses detalhe fez ele lembrar do aviso de Evelyn: “Eles são bem difíceis de encontrar… ao menos se você não quiser que eles te encontrem primeiro.”

    Niko franziu a testa, repensando na estratégia que estava tomando.

    — Será que é seguro continuar andando assim? Não só seguro como… será que tem uma maneira melhor para encontrar o lufador?

    O problema não era a luz. Lufadores eram praticamente cegos. O problema era seus outros sentidos. A criatura poderia detectá-lo pelo som ou cheiro a qualquer momento — e ele sequer saberia.

    Ficou parado por um instante, tentando raciocinar melhor. Sua respiração era visível no ar frio, formando nuvens que se desfaziam rápido durante as expirações.

    — Não, eu não deveria estar andando assim. É burrice. Eu estou basicamente dizendo “Ei, tô aqui, lufador!”. — murmurou, mordendo a parte inferior do lábio.

    Então olhou para cima. Acima das folhas das árvores havia um céu limpo. Profundo, escuro, iluminado por milhares de pequenas luzes imóveis. Iluminado por milhares de estrelas.

    Algumas piscavam fracamente. Outras brilhavam com força, como pequenos olhos fixos. Tinham cores distintas: umas levemente azuladas, outras amareladas, outras completamente brancas.

    Niko ficou em silêncio por um instante. Aquilo o prendeu de um jeito estranho.

    — Eu não sei o nome de nenhuma delas. — pensou em voz alta.

    Mas, ao mesmo tempo, pareciam familiares. Ele sentia uma sensação estranha de reconhecer algo que não conseguia nomear. Como se os olhos soubessem, mas a mente tivesse esquecido.

    — Será que as pessoas nesse mundo olham pra elas e pensam o quê? Será que alguém já traçou histórias nesses pontos de luz…? E eu… será que já fiz isso algum dia?

    De repente, as estrelas pareceram mais distantes. Completamente inalcançáveis. Como pedaços do passado pendurados em um céu que não parecia mais fazer sentido há muito tempo.

    — Eu nem sei se já desejei algo pra uma estrela…

    Seu foco então atingiu o topo das árvores de abeto. Foi ali que teve uma ideia. Havia uma maneira de se locomover sem deixar rastros. Sem barulho. Sem cheiros no chão.

    Arremessou uma faca para um galho alto e ativou seu Portal, parando instantaneamente em cima da árvore.

    Agora, acima do solo, escondido pela escuridão, tinha uma visão privilegiada. Os galhos balançavam levemente sob seu peso, mas sem que ameaçassem se quebrar. Fez isso novamente, para outra árvore, depois outra. A movimentação silenciosa em um ponto cego fazia Niko se sentir uma espécie de predador — que de fato ele era naquele momento.

    Mesmo com mais vantagens com a nova estratégia, nada. Não encontrou nenhuma sombra e não ouviu nenhum som novo.

    — Eu tô há horas procurando esse bicho. Quando ele vai aparecer? — murmurou, irritado. Sacou outra faca e lançou-a para a árvore mais próxima. — Acho que eu vou já voltar pro acamp-

    O resto da frase foi interrompida por um rugido. Não um rugido qualquer. Um som visceral, profundo, com camadas que pareciam ecoar pela floresta, como se estivesse em uma grande caverna.

    Um segundo depois, ouviu o estalo seco da madeira se quebrando. Um estrondo. Um trovão de destruição. Niko viu, assustado, a árvore onde ele tinha acabado de lançar sua faca se partir ao meio. Fragmentos de madeira voaram em todas as direções. Ele perdeu o equilíbrio e quase caiu.

    Seu corpo inteiro congelou — exceto o coração, que disparava em uma frequência assustadoramente alta. As pupilas se contraíram. O ar ficou preso na garganta entre a boca e o pulmão. Suava, mesmo no gelo.

    Isso só pode ter sido o lufador”, pensou ele.

    Sem perder mais tempo, guardou a lanterna. Segurou o rifle com força. Se posicionou de joelhos, olhando através da mira em formato retangular. Então, olhou para o lado oposto de onde vieram os destroços. “Ele deve estar por aqui…

    Mesmo sem uma única fonte de luz, Niko ainda enxergava bem. O susto parecia ter deixado sua visão mais nítida e os ouvidos mais atentos. Foi então que avistou algo. Algo branco, imenso e de oito patas. Era o lufador.

    Quando os olhos atingiram aquele monstro, ele se arrepiou. Engoliu seco. Os braços começaram a tremer involuntariamente. Ele sentiu medo e ainda assim, continuou firme na tarefa.

    A mira alcançou finalmente a cabeça do ser. Bastava um tiro para o garoto completar sua missão. Um único tiro e a caça estaria completa. Os dedos tocaram enluvados, tocaram no gatilho. Era só puxar o indicador para trás… era só isso… não conseguiu fazer isso.

    Ficou relutante em atirar. Não por medo de errar, mas porque não queria matar um animal a troco de nada. Qual o sentido de tirar a vida de um animal a não ser para autodefesa ou para se alimentar? E se aquela criatura, de oito patas, fosse só mais uma engrenagem nesse mundo gigante, tentando sobreviver ao frio, à fome e à solidão — igual a ele? O garoto nem sabia o que era vida, então trazer morte não era agradável. Era o contrário disso. Era doente.

    Esse pensamento o fez hesitar o tiro. Baixou levemente a arma. Não conseguiu fazer a tarefa, pagar sua dívida.

    O lufador então expirou ar e virou bruscamente em sua direção. Sua mandíbula rachou e um rugido bestial rasgou o silêncio. Niko, no susto, apertou o gatilho por reflexo.

    O disparo atingiu uma de suas patas dianteiras. Sangue escorreu, pintando o pelo de vermelho. O lufador respondeu com um uivo ensurdecedor, seguido de um som de ar sendo aspirado em alta velocidade. Um som que Niko reconheceu na hora.

    “Quando um lufador está prestes a soltar sua rajada de ar, ele começa a sugar tudo ao redor… Se ouvir esse som, corra na hora”, lembrou-se das palavras de Evelyn ao ouvir aquilo.

    Se não fizesse algo, logo sua morte seria certa. Niko se jogou da árvore. Bateu em vários galhos, até cair de costas no chão, se separando do rifle. No mesmo instante, o rugido do lufador explodiu como um trovão. A árvore onde ele estava momentos antes foi pulverizada.

    O peito e as costas doíam, mas nada que fosse impossível de lutar. Ele se levantou novamente. Pegou a arma de fogo. Assim que percebeu, o lufador estava preparando outro ataque.

    Niko se lançou para o lado no último instante. O segundo golpe passou a centímetros. Rolou pela neve, levantando-se rapidamente e mirando. Antes de puxar o gatilho, percebeu que o pior tinha acontecido.

    — Merda!

    O cano do rifle estava obliterado. Qualquer disparo agora era suicídio. O cano danificado poderia explodir a arma, ou lançar o projétil para a direção errada.

    A mente do garoto acelerou. Tentou pensar o mais rápido possível em alternativas para a situação. O som do ar sendo sugado voltou. Não foi rápido o suficiente.

    Desesperado, Niko arremessou sua faca para o lado e ativou o Portal. Mal surgiu do outro lado e já rolou para longe. A terceira rajada pareceu uma força invisível que destruiu a floresta em linha reta. Troncos foram arrancados como gravetos, a neve voou como um maremoto branco, e o som parecia uma centena de rugidos comprimidos em um só.

    Se estivesse um segundo atrasado, não haveria mais Niko. Só carne espalhada entre a madeira partida.

    Sem hesitar, começou a correr. As pernas protestavam pela queda anterior, mas ele ignorou a dor. Precisava ignorar a dor. O lufador o ouviu, começando a perseguição. Suas patas enormes esmagavam o chão conforme chegava mais perto do albocerno.

    Estava ganhando distância. Rapidamente. Niko sentiu o hálito da criatura se aproximando. A coisa estava colada atrás dele. Em um movimento desesperado, virou o corpo, segurou a arma pela lateral e atirou à queima-roupa.

    A explosão foi absurda. A boca do rifle, mesmo danificada, cuspiu uma rajada ardente. O projétil perfurou o peito do lufador. Sangue e carne se espalharam. As patas dianteiras e o rosto queimaram.

    Niko desapareceu em meio a fumaça logo depois, reaparecendo ao longe. Estava ofegante. A mão que segurava a arma estava tremendo, dormente. O esforço físico fez ele ter ânsias, ao mesmo tempo que a adrenalina o mantinha acordado.

    O monstro parou. Estava ferido e desnorteado. As patas coçavam os olhos e as orelhas balançavam. Ao se recuperar parcialmente, soltou pequenos rosnados roucos enquanto o olfato tentava localizar o inimigo. Niko não estava mais ali.

    O cheiro do próprio sangue e da carne derretida atrapalhava o animal. Mesmo assim, voltou a sentir o cheiro de Niko, crescendo exponencialmente. Se virou. Ali estava ele. Niko caiu das árvores, cravando sua foice nas costas da criatura. Enquanto o lufador berrava, segurou firme seus pelos com a outra mão.

    O animal estava desesperado, se sacudia para todas as direções, batia nos troncos e rolava no chão — mas o garoto não soltava. Arrancou a foice da carne e escalou pelas costas da fera. Seu objetivo era a garganta.

    Mesmo com o lufador se sacudindo, batendo em tudo que via pela frente, Niko não cedeu. Chegou até o final da espinha, onde estava apoiado no pescoço do monstro. Preparou a lâmina e a enfiou contra ele.

    Porém, antes que a foice conseguisse penetrar, o lufador parou subitamente. Jogou o corpo para o lado e lançou Niko ao chão, bem à sua frente. 

    A freada fez a neve levantar. Niko cambulou pelo chão, com o gelo grudando na roupa. Quando estava para se levantar, aquele som, aquele maldito som de ar sendo aspirado, cobriu novamente a floresta, agora mais alto do que nunca. Aquele monstro estava para lançar aquele ataque de novo.

    É assim que eu vou morrer?”, pensou ele. Enquanto via a morte passar diante de seus olhos, pensou em seu arrependimento. O arrependimento de não ter puxado o gatilho naquela hora quando teve a chance.

    Aquele parecia um momento em que o tempo não passava. A garganta do monstro inchava de ar, o som  ficando cada vez mais alto, ditando o futuro do garoto. O som de repente parou. Aquele era o fim. Então, o rugido veio e uma fumaça branca surgiu, cobrindo Niko e a criatura.

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