Índice de Capítulo

    O silêncio que restou era espesso como fumo. Só o crepitar da lenha na lareira preenchia o ambiente, e o som do vento batendo nas janelas reforçava a sensação de isolamento e solidão.

    Niko permaneceu parado por alguns segundos, diante do caderno. Brigitte continuava encolhida no sofá, de lado, coberta até os ombros. A respiração ritmada e os cabelos bagunçados denunciavam o quão profundamente dormia. Era a primeira vez que ele a via assim: sem falar, sem sorrir, sem aquelas falas teatrais. Apenas quieta. Frágil. Como alguém tentando fugir de um mundo que não a queria.

    Ele se sentou na mesa de jantar. Puxou o caderno para si. Por um instante, hesitou. Pensou se valia a pena mesmo ler aquilo. É claro que vale a pena. Brigitte pode ser uma espiã, ficar sem fazer nada é assinar sentença de morte de Evelyn e dele mesmo. Então, com um gesto lento, abriu a capa.

    A primeira página estava coberta por letras pequenas e ansiosas, escritas com uma caligrafia comprimida, como se Brigitte estivesse tentando fazer caber o mundo em um espaço limitado.

    05/02 — Primeiro dia em Reiken

    Cheguei hoje! A cidade é enorme! Tanta gente diferente… soldados, mercadores, ladrões (provavelmente), e gente poderosa andando por todos os lados. Consegui um lugar num alojamento de viajantes no centro. O quarto é pequeno, mas tem janelas…

    …Amanhã começo a procurar por algum grupo de aventureiros! Quero ajudar em alguma missão de verdade. Nada de entregar carta ou buscar ovelha fujona. Quero algo de herói…

    Acho que vou vestir a jaqueta vermelha. Causa boa impressão…


    07/02 — Ainda nada

    Fui até três bares que disseram que contratavam aventureiros. Só consegui um bico carregando caixas pra uma senhora que vendia raízes medicinais. Ela disse que eu ‘falo demais’ e que devia ‘calar a boca e andar’. Escrevendo agora, percebo que ela tem razão…

    …Acho que preciso aprender a ouvir mais. Talvez isso me ajude a entrar em algum grupo…

    …Mas não é como se eu tivesse muito tempo… os dias passam rápido…


    10/02 — Evelyn e Niko

    Hoje conheci dois mercenários. Um é um albocerno e a outra é uma elfa! De verdade! Eles pareciam experientes. E também pareciam precisar de ajuda…

    …Eles aceitaram no grupo! Acho que aceitaram. Acho que… agora preciso não estragar tudo…

    …Tentei parecer útil. Usei um dos truques de foco e análise da minha vila para… analisar — dãh — as ofertas de missões que receberam. Funcionou? Provavelmente sim, porque eles escolheram a missão que eu queria! Minha primeira missão! Ebaaaaaaa! : D

    As páginas mantinham o mesmo tom entusiasmado, leve, cheio de exclamações bobas e rabiscos nas margens. Também tinham anotações sobre a comida do alojamento, sobre uma criança que trombou nela no mercado, comentários sobre como Evelyn parecia legal, mas difícil de ler, ou como Niko parecia o tipo calado, mas não mau.

    Nada ali parecia perigoso. Nada revelador.

    Justamente por isso, Niko manteve os olhos semicerrados. Aquele estilo bobo, cheio de carinhas felizes e frases confusas, podia muito bem ser uma fachada. Um truque de distração. Ele já tinha lido sobre esse tipo de coisa antes. Espiões bons sabiam se camuflar, sabiam deixar rastros falsos — e ninguém suspeita de alguém que escreve “Ebaaaaaaa! : D” em um caderno pessoal. Se ela realmente fosse uma ameaça, esconderia tudo à vista.

    Mas então, ao virar mais uma página, ele se deparou com algo diferente. A letra mudou ligeiramente, ficando mais contida, menos arredondada. Não havia mais data. O título apenas dizia:

    Plano para hoje:

    1. Ficar de guarda a noite.
    2. Fazer café para o grupo se tiver.
    3. Rever o celeiro.
    4. Tentar ajudar sem parecer irritante.
    5. Fazer perguntas úteis.
    6. Ser útil. SER ÚTIL.

    Niko virou a página.

    A Evelyn é esperta demais. Se eu falar qualquer bobagem ela vai perceber. Preciso pensar antes de abrir a boca. Niko parece sempre desconfiado. Talvez eu esteja atrapalhando ou ele pode estar só me testando…

    …Se eu falhar nessa missão, acho que eles nunca mais vão me chamar de novo. Não sei se aguento isso…

    …Preciso achar alguma pista antes deles. Preciso mostrar que sou capaz.

    As anotações eram obsessivas. Ideias repetidas várias vezes. Pequenos mapas desenhados à mão, hipóteses sobre o ataque ao boi, suspeitas rascunhadas e riscadas em seguida.

    E se o monstro tiver vindo de um túnel? Ou se for um independente capaz de invocar criaturas? Não… muito fantasioso. Preciso ser racional. O Niko odeia quando ouve besteiras…

    …Ele me olhou estranho de novo hoje. Será que ele me odeia? Não posso deixar isso me afetar…

    …Eles são uma equipe. Eu sou só alguém que caiu de paraquedas. Se eu errar mais uma vez, vou provar que não sirvo pra isso. Preciso ficar de guarda hoje a noite de novo…

    Viu listas de falas ensaiadas, estratégias para como se comportar em grupo, como se Brigitte estivesse tentando aprender como ser aceita como se aprende uma língua estrangeira.

    Talvez se eu ficar mais calada, eles gostem mais de mim. Ou talvez eu devesse ser mais útil fisicamente. Eu sou rápida. Posso correr, posso explorar. Talvez mais rápido? Sim, mais rápido.

    Olhou para a outra página. As palavras começavam a falhar, a tinta estava tremida e manchada.

    Por que é tão difícil só… pertencer?

    Niko parou de ler.Fechou o caderno lentamente, como se estivesse segurando algo sagrado — ou quebradiço demais para se continuar tocando.

    O arrependimento bateu como uma pedra jogada em sua cabeça. Não era apenas invasão de privacidade. Era como se tivesse espiado uma confissão não destinada a mais ninguém. Aquela garota não estava escondendo nada. Ela estava implorando, em silêncio, para ser aceita. Para provar seu valor. Para ser alguém que eles quisessem por perto.

    E ele passou os últimos dois dias desconfiando, afastando, encarando com olhos duros cada tentativa dela de tentar se encaixar.

    Se sentiu pequeno. Covarde.

    Devagar, se levantou e voltou até o sofá. Colocou o caderno de volta exatamente como estava, tomando cuidado para não acordá-la. Ela se mexeu, resmungando algo que ele não entendeu, mas logo se aconchegou outra vez.

    Niko a observou por mais um segundo. O olhar ficou baixo. Não devia ter invadido sua privacidade. Não devia ter desconfiado dela daquele jeito. “Eu sou um idiota…

    Então sussurrou:

    — Me desculpa.

    Depois disso, apagou a vela da mesinha e foi se sentar na poltrona mais próxima da lareira, onde o calor ainda existia. Seus olhos encararam as chamas, mas sua mente vagava longe.

    Ele não sabia se Brigitte ouviria suas desculpas um dia. Não sabia nem mesmo se era merecedor daquilo. Ele queria contar o que fez a ela, mas não se imagina fazendo isso. Ele não tinha coragem.

    Queria poder consertar as coisas. Queria poder apagar o que fez. Mas não podia. Não havia gesto que desfizesse a quebra da confiança. Nenhuma palavra que soasse certa.

    Naquele instante, Niko entendeu que talvez a única coisa que ainda podia fazer por Brigitte era confiar nela.

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