Capítulo 84 - Entrando na Escuridão
Brigitte corria pela floresta em um ritmo veloz e confortável — algo em torno de 120 quilômetros por hora. Apesar da velocidade, seus olhos varriam a paisagem com uma atenção cuidadosa, buscando qualquer sinal fora do comum. A neve cobria o chão como um lençol branco, apagando quase todos os rastros, mas ela sabia: até o menor detalhe podia revelar algo grande.
As árvores eram altas e antigas, seus galhos entrelaçados escondiam quase por completo o céu já alaranjado. O ambiente era tomado por um silêncio estranho — não apenas a ausência de som, mas uma estranha ausência de vida. Não havia nenhum pássaro, nenhum esquilo, nenhum sussurro do vento entre as folhas. Nada.
— Credo… que lugar mais sinistro. — murmurou, franzindo o nariz.
Foi então que seus olhos captaram uma clareira onde o solo se mostrava mais irregular do que o restante da floresta. Antes de atravessá-la, freou bruscamente ao segurar-se em um tronco próximo, parando de forma súbita com um leve impulso para frente.
A neve naquela área estava mais rasa, revelando porções de terra escura, folhas secas e um tronco caído parcialmente afundado no chão, como se fosse um banco improvisado — e, curiosamente, sem nenhum floco de neve sobre ele.
Brigitte andava com cautela. Seu olhar se fixou em algo ainda mais curioso: restos de uma fogueira.
Aproximou-se do círculo de cinzas e carvão apagado, analisando com atenção. Não era antiga. As cinzas ainda mantinham tonalidade fresca, e o carvão, embora frio, parecia ter sido extinto há poucos dias — o que batia perfeitamente com o tempo estimado desde o ocorrido na fazenda.
— Hmm… alguém passou por aqui faz pouco tempo… Mas quem será?
Agachou-se e pegou um galho parcialmente carbonizado. Esfregou o carvão nos dedos, sentindo sua textura seca e quebradiça. Se aquilo estivesse ali por muito tempo, a neve já teria engolido tudo — mas claramente não foi o caso. Era uma pista fresca.
Levantou-se e deu alguns passos ao redor da clareira, procurando outros pontos de interesse. Logo percebeu pegadas e marcas no solo, marcas que não eram dela — parcialmente apagadas pela neve, mas ainda visíveis em torno da fogueira.
Foi então que notou algo diferente. Uma marca no galho baixo de uma árvore próxima. Aproximou-se, tocando o tronco com cautela. Havia pequenos riscos na madeira, como se algo leve e afiado tivesse se agarrado ali.
Ele engoliu seco.
— O que será que fez isso?
Franziu os olhos, analisando os arranhões. Não pareciam terem sido feitas pela natureza. Também não tinham o padrão de ferramentas comuns. Passou os dedos sobre os cortes, tentando deduzir sua origem, mas foi interrompida ao ver algo ainda mais perturbador próximo à fogueira.
Pequenos objetos brancos, semi-enterrados na neve, chamaram sua atenção. Apressou o passo, agachou-se e passou a mão sobre a superfície fria.
— O que é isso…?
Puxou um dos objetos e o examinou na palma da mão. Era um osso — pequeno, fino e completamente limpo. Definitivamente não era de um animal grande. Continuou escavando ao redor, e mais ossos surgiram, espalhados por todo o solo.
— Parecem ossos de galinha…
Pegou outro e virou de um lado para o outro. Havia marcas neles. Pequenas marcas irregulares, como se tivessem sido roídos por presas afiadas. Um arrepio subiu pela sua espinha.
— Ok… isso definitivamente não é normal.
Levantou-se em um movimento rápido, sacudindo a neve das mãos e observando a floresta ao redor. O silêncio parecia agora mais pesado. Sentia algo. Uma presença. O desconforto era físico, quase dava para sentir — como se estivesse sendo observada.
— Tá bom, já deu. Acho que já tenho material suficiente.
Guardou um dos ossos no bolso, como prova, e então deu meia-volta. No instante seguinte, desapareceu em um borrão roxo entre as árvores, deixando apenas o silêncio da clareira para trás.
***
Nesse momento, Brigitte estava correndo em uma velocidade maior do que durante toda a sua procura, estava determinada a alcançar a fazenda antes do anoitecer. Quando avistou o campo aberto, com as duas casas, o celeiro e o moinho ao fundo, reduziu o ritmo até parar diante da casa de hóspedes, onde viu Niko e Evelyn sentados na varanda. O garoto estava imerso na leitura de um livro, enquanto a elfa dedilhava um violão com suavidade.
Evelyn parou de tocar ao ver a figura surgir feito um raio na trilha. Brigitte diminuiu a marcha e se aproximou. Niko também levantou os olhos do livro, acompanhando a chegada da companheira.
— Oi, Brigitte. — disse Evelyn, já com um sorrisinho no rosto. — Ué… pensei que você ia chegar aqui antes da gente? Acho que você não é tão rápida assim. — completou, levando a mão à boca para esconder o riso.
— Ei! — protestou a luminar, cruzando os braços e fechando um dos olhos. — Aquela parte da floresta era muito maior do que eu esperava! É natural que tenha demorado mais. — rebateu, cerrando os punhos com convicção. — E além disso, meu trabalho foi bem mais complexo que o de vocês!
Brigitte era o tipo de pessoa que não aceitava perder — nem mesmo para si mesma. Sempre que falhava em um desafio pessoal, tentava de novo ou — quando acreditava ter ganhado — arranjava alguma justificativa que, de algum modo, reafirmasse sua vitória. Era teimosa, corajosa e orgulhosa para falhar.
Evelyn sorriu, apoiando o violão no colo e inclinando-se para frente.
— Sei, sei. Então? Encontrou alguma coisa por lá?
Brigitte subiu os degraus da varanda com passos firmes, ficando entre os dois. Cruzou os braços, assumindo um ar mais sério.
— Descobri que não fui a única a passar por aquela floresta recentemente. Encontrei um acampamento abandonado.
— Um acampamento? — Niko fechou o livro e se inclinou na cadeira. — De quanto tempo atrás?
— Poucos dias, talvez da mesma noite em que o boi foi atacado. Achei vestígios de uma fogueira, pegadas parcialmente encobertas pela neve e… — ela enfiou a mão no bolso do casaco e puxou um pequeno osso branco. — Isso aqui.
Evelyn pegou o objeto, franzindo a testa ao examiná-lo de perto.
— Um osso de galinha…? E parece… muito roído.
— Tinha vários. Espalhados em volta da fogueira. Alguém jantou ali e limpou os ossos até não sobrar nada.
Niko pegou o osso das mãos da elfa e o virou sob a luz fraca do entardecer. Grandes marcas irregulares cobriam a superfície branca, como se tivessem sido deixadas por dentes desalinhados e insistentes.
— Isso é estranho. Que tipo de criatura faria algo assim? Você conhece alguma espécie sapiente que ruiria ossos desse jeito, Evelyn?
— Talvez um híbrido. Meio fera, meio humano. — respondeu ela, pensativa. — Mas essas marcas não batem com o padrão de nenhum híbrido que eu conheça… parece mais primitivo. Pode ter sido só um cachorro, quem sabe. Enfim… está escurecendo. Melhor irmos para dentro antes que anoiteça de vez.
Brigitte assentiu, e os três entraram na casa de hóspedes. Assim que cruzaram a porta, Niko acendeu a lareira. A sala logo se aqueceu, junto do crepitar das chamas.
Evelyn atirou o casaco no encosto do sofá, enquanto Niko retirava as luvas e se sentava à pequena mesa nos fundos. Brigitte permaneceu de pé, batendo a sola da bota no chão, impaciente.
— Certo, minha parte está aí. Agora contem vocês: o que descobriram com os funcionários?
Niko, antes olhando para o osso, colocou o objeto sobre a mesa e cruzou os braços. “Será que o que fez isso foi alguém bestial mesmo?”, pensou ele.
Evelyn deu um suspiro, começando a falar em seguida:
— Conversamos com quase todos. Dois estavam de plantão na noite do ataque. O Alfredo tava em turno, só soube do que aconteceu pela manhã. Foi o Raul quem encontrou o boi morto primeiro.
— Raul… O filho do fazendeiro? — Brigitte ergueu as sobrancelhas.
— Exato. — disse Evelyn. — Ele costuma acordar cedo pra ajudar com os animais. Mas, nesse dia, voltou correndo pra casa, coberto de sangue, tremendo.
— Ele chegou a contar o que viu pros outros?
— Muito pouco. Disseram que ficou calado por dias. Mal quis ir ao celeiro depois daquilo. Só falou que o boi tava morto.
Niko se inclinou para a frente, apoiando os cotovelos na mesa.
— O segundo funcionário que falamos, o Tomás, também estava acordado naquela noite. Não estava em turno, mas teve insônia. Ele andou pela fazenda, passou perto do poço, ficou próximo da estufa. Enquanto ele tava no poço ouviu mugidos fortes vindos do celeiro. Também ouviu batidas, como se algo estivesse empurrando as portas do celeiro.
Brigitte estreitou os olhos.
— E ele não foi verificar?
— Achou que fosse um boi incomodado com o frio ou brigando com os outros. Só foi dormir de novo.
— Entendo…
— Uma das funcionárias, a Berta, comentou algo interessante. Disse que existe um jornal independente em Reiken, focado em histórias antigas, lendas e aparições misteriosas. — disse Evelyn. — Uma mulher chamada Lucinda Velken. Ela escreve sobre criaturas, lendas e desaparecimentos. Talvez valha a pena entrar em contato, vai que a gente consegue mais pistas ou ajuda na investigação.
Brigitte refletiu por um segundo, mas continuou com os olhos estreitos.
— E os outros dois funcionários?
— Um não tava na fazenda no dia. O outro dormiu tão pesado que não ouviu nada. Mas reforçaram um padrão: ninguém viu coisa alguma antes do Raul encontrar o corpo.
Brigitte cruzou os braços, frustrada.
— Que maravilha. Alguma coisa entra no celeiro, mata um boi, destroça tudo… e ninguém vê nada? — respondeu ela com gestos teatrais.
— Parece que sim.
— Mas… como? Até parece que ele era um fantasma. Quer dizer…
Enquanto as duas conversavam, Niko se levantou, caminhando até a janela. A conversa não parecia levar a lugar algum, então não importava sua presença ali. Precisava pensar melhor. Olhou para fora da casa. A escuridão já cobria os campos, embora não fosse tão tarde. O céu limpo e estrelado deixava a noite ainda mais profunda, quase silenciosa. Foi ali, diante da janela, que algo chamou sua atenção.
Era o poço. Bem ao lado do celeiro. Estava ali desde sempre, mas ele nunca tinha realmente notado sua presença. Por quê?
Aproximou-se mais do vidro. A tampa de madeira do poço estava sem neve — como se tivesse sido movida recentemente. E havia uma leve inclinação, como se estivesse mal encaixada. Pode ter sido o Tomás que fez isso… mas por que ele não disse nada sobre mover a tampa do poço?
O silêncio pareceu abraçá-lo por um segundo. Então uma ideia surgiu.
— Eu fico de guarda hoje. — anunciou Brigitte. Niko finalmente voltou a prestar atenção na conversa das duas.
— Quer dividir o posto comigo? Você parece meio cansada. — disse Evelyn.
— Relaxa. Eu tô totalmente acor… — ela bocejou antes de terminar. — …dada…
— Uhum, tô vendo.
Niko virou-se para as duas, ainda pensativo.
— Desculpem cortar, mas… acho que descobri como o celeiro foi invadido.
— Uhm? Como assim? — Evelyn se aproximou, curiosa.
— Melhor eu mostrar pra vocês.
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