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    Niko permaneceu de pé, respirando pesadamente. Não pelo esforço físico da luta. Havia algo mais. Uma sensação incômoda, crua. Não era culpa. Nem arrependimento direto. Era um vazio estranho — como se tivesse tirado algo de alguém e não soubesse o que fazer com isso.

    “Complexo.” Era a única palavra que conseguiu pensar para descrever aquele sentimento. A vitória era dele. Mas seu gosto era difícil de descrever.

    Evelyn apareceu de repente ao seu lado, sorrindo alegremente. Agarrou o garoto pelo pescoço, como se fosse um abraço de companheirismo.

    — Você mandou muito bem, cara! Meus parabéns!

    Ele não respondeu. Continuava olhando para o cadáver, os olhos fixos, como se esperasse que ele voltasse a respirar em algum momento.

    — Qual foi? Não tá animado? Você devia se orgulhar. Essa foi tecnicamente sua primeira luta… e você venceu. E de um lufador, ainda por cima! Muita gente não teria nem voltado viva.

    — Evelyn…

    — Hm?

    — Como foi matar alguma coisa pela primeira vez?

    Ela pareceu surpresa pela pergunta, mas logo relaxou os ombros.

    — A primeira coisa que eu matei foi um inseto. Depois um peixe. Depois um cervo. Cada um foi um sentimento diferente, mas depois de um tempo, a sensação desaparece. E você começa a pensar menos sobre o que matou e mais sobre por que matou. — ela fez um carinho breve na cabeça dele, como se isso fosse ajudar. — e talvez, de certa forma, ajudasse mesmo. — Relaxa, maninho. Você não fez nada de errado.

    O garoto não disse nada. Mas já sabia que aquilo ficaria com ele por um tempo.

    — Ehh… agora você que vai mandar a gente de volta pro acampamento, né? — disse ela, tentando quebrar o clima.

    Niko piscou devagar, como se voltasse para o presente. Por um instante, pareceu não ter entendido a pergunta.

    — Ah… é. Desculpa.

    Ele caminhou até o corpo do lufador e colocou uma das mãos sobre o pelo grosso da criatura. Com a outra, tocou no ombro de Evelyn. Em seguida, seus olhos se fecharam — a imagem do acampamento passou por sua mente como uma memória recente, e então os três desapareceram.

    O acampamento estava igual desde que saíram para a caçada, só que mais frio e escuro. Niko pegou sua lanterna de mão, acendendo-a, passando o feixe pela barraca, a carroça coberta de neve e os troncos ao redor da fogueira apagada, se lembrando dos momentos que teve durante o dia. Momentos que só restavam em sua memória agora.

    — Eu não sabia que você tinha essa lanterna. Já tava indo pegar a minha na carroça… — comentou Evelyn, esticando os braços com um leve bocejo. — Certo. Agora é só colocar esse bicho na carroça e a gente pode ir pra capital. Quero chegar lá o mais cedo possível. Treze horinhas de viagem, vambora!

    — Mas… a carroça não tem nada que possa puxar ela. — comentou Niko, confuso.

    — Hehehe… é por isso que eu trouxe isso aqui! — disse Evelyn, sorrindo com entusiasmo exagerado, quase teatral. Ela se abaixou, remexeu a mochila e ergueu um frasco de vidro brilhante.

    — O que é isso?

    — Um espírito material. O nome dela é Aguro. Um amorzinho de égua.

    — Então tem um espírito de cavalo aí dentro… e você vai usá-lo?

    — É um espírito material. — Evelyn ergueu o dedo indicador como uma professora pronta pra iniciar a aula e soltou um grande suspiro dramático. — Existem dois tipos de espírito: os materiais e os celestiais. Os materiais — ou artificiais — são espíritos “vivos”, que existem no plano físico. Eles são quase inteiramente feitos de Alma, criados através de rituais ou alquimia, e não morrem no processo — por isso ainda são considerados seres vivos… embora alguns estudiosos teimosos discordem dessa definição. Por serem feitos de Alma, vivem muito tempo — e com um pouco de Alma pura, vivem ainda mais.

    Ela girou o frasco brilhante entre os dedos.

    — Já os celestiais — também chamados de naturais — são o oposto. São espíritos não vivos, que residem no plano espiritual. Eles não podem cruzar pro nosso lado. E eles sempre nascem do mesmo jeito: quando alguém morre.

    Evelyn então respirou fundo, como quem acabara de recitar a enciclopédia inteira sem pausa pra tomar água.

    — Entendi.

    — Eu falo tudo isso com todo carinho e dedicação do mundo e você me responde com só um “entendi”? — ela cruzou os braços e fez uma cara ofendida. — Tô indignada. De verdade.

    Após uma pausa dramática, a elfa voltou a falar:

    — Enfim, vamos nessa. A estrada é longa e minha paciência é curta.

    Algo dentro do vidro pulsava como uma pequena estrela. Ao abrir a tampa, uma esfera luminosa flutuou para fora, girando lentamente até tocar o chão. Em poucos segundos, a esfera começou a mudar de forma. Se alongou, ganhou contornos, patas e cauda, até tomar a forma de um cavalo frísio feito de luz e névoa.

    — E eles não aceitam qualquer dono, sabia? Mas a Aguro me ama.

    A elfa se aproximou do espírito e acariciou o pescoço vaporoso da criatura, que relinchou baixinho, como se correspondesse ao gesto.

    — Niko, consegue mandar o lufador pra carroça?

    — Claro.

    Ele sacou uma de suas facas, jogou-a no compartimento de carga da carroça e tocou no cadáver. Em um instante, o corpo do lufador desapareceu da neve e reapareceu dentro do veículo, com um baque surdo que balançou a estrutura — mas ela logo se estabilizou.

    — Nossa… a gente destruiu esse bicho mesmo. Ainda bem que o contratante não pediu pra trazer em bom estado, se não a gente ia perder um dinheirão.

    Ela subiu no banco da frente da carroça e se sentou com um suspiro satisfeito, esticando as pernas e recolocando a mochila ao lado. Depois, deu dois tapinhas no assento vazio ao seu lado.

    — Vambora. Próxima parada: Reiken, capital de Kyndral!

    Niko se sentou ao lado dela. O banco era duro, gelado, feito para aguentar estrada, não para oferecer conforto. Mas naquele momento, isso pouco importava.

    Evelyn acendeu a grande lanterna da carroça, e a estrada coberta de neve diante deles se revelou.

    — Você mandou bem hoje. — disse ela de repente, sem encará-lo.

    Niko não respondeu de imediato. Mas, após alguns segundos, apenas assentiu.

    Enquanto a carroça começava a se mover, com o espírito de Aguro puxando as rodas sobre a neve, Niko olhou para o céu escuro novamente — e dessa vez, as estrelas não pareciam tão distantes.

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