Capítulo 94 - O Estalo
O sol se escondia atrás das copas altas das árvores do campo, tingindo as pedras da igrejas da vila de Alzen com um brilho âmbar desbotado. Ali atrás, o chão estava todo marcado por pegadas pequenas e trilhas de barro seco. Era o local onde as crianças brincavam regularmente. Eram oito ao todo. O campo ecoava com os sons de gritos e risos. As crianças correndo como se fugissem de um predador.
— Três voltas, depois a besta sai! — gritou Étienne, com os olhos cheios de emoção.
Brigitte girava no centro do círculo formado pelas crianças, de olhos cobertos por uma venda improvisada feita com o lenço de cabelo da irmã mais velha de Clarisse. Todas as vozes cantavam a mesma melodia antiga, todos no mesmo ritmo:
“Ai vist lo lop dins l’erbeta,
corria, corria la cambeta.
Dins lo cercle, fa lo torn,
tòca l’ombra e lo fuòc es torn.”
Ao fim da terceira volta, a venda foi arrancada com um puxão rápido. Brigitte parou no meio do círculo. O jogo começava. Ela era agora a “besta”. Os outros se espalharam pelo campo, com gritos de euforia e emoção. Seu objetivo era simples: tocar um deles e passar adiante o “espírito da besta”.
— Alix! Eu vou te pegar! — berrou ela, fingindo escolher um alvo, só para enganar as crianças, mas era Clarisse que Brigitte queria.
Enquanto todos riam e se dispersavam, ela foi atrás do garoto de olhos verdes, passando entre todas as crianças que observavam com atenção o embate dos dois, fingindo persegui-lo até que encontrou sua verdadeira presa. Clarisse. Sem esperar, mudou de alvo e começou a seguir a garota.
A menina de tranças vermelhas correu entre duas pedras empilhadas e passou rente ao tronco torto de uma amoreira. Brigitte a seguiu, chutando a poeira, com as pernas queimando e a respiração acelerada. O som da brincadeira ecoava na vila. Então, ela se lançou para frente e agarrou o pulso da menina com força.
No instante em que encostou no braço da colega, em um instante que pareceu durar mais do que devia, Brigitte sentiu algo diferente — um tremor sutil e interno, como se algo em seu peito tivesse estalado e percorrido todo o seu corpo. Não era dor, nem prazer. Era um sentimento fino, porém, inquietante. Uma sensação eletrizante.
— Ai! — gritou Clarisse, puxando o braço.
— O que foi? — perguntou Brigitte, ainda agarrando o braço da menina.
Outro estalo percorreu sua mão, agora mais forte, passando de forma seca da pele escura de Brigitte para a pele morena da outra. A vibração se expandiu como um fio invisível.
— AAAAAH! Ela me deu choque!
Brigitte arregalou os olhos, soltou finalmente o braço de Clarisse — que puxou com força para si — e olhou para as mãos, como se visse algo sagrado ou proibido. Sentia-as quentes, formigando, quase pulsando. Mas elas pareciam normais, sem nenhuma queimadura, mesmo sentindo o choque. Era como se algo dentro de dela tivesse se estendido para fora — por um instante.
— De verdade? — disse Alix, com a voz baixa.
— Sim, eu vi! — disse Bastien, apontando para Brigitte. — Juro que fez um som! Tipo… bzz! Bem na hora!
— Pareceu um trovãozinho! — disse Céline, com os olhos brilhando. — Tu que fez isso, Brigitte?
Brigitte abriu a boca, mas hesitou por um momento. Ainda estava confusa com o que aconteceu.
— Eu não sei. Eu juro que não fiz nada. — ela esfregou as palmas das mãos contra o vestido, tentando apagar o acontecido.
— Você fez alguma coisa, sim! Foi um choque de verdade! Me queimou! — disse ela, mostrando o braço. Lá, havia uma leve vermelhidão, nada de mais. Mas o olhar dela era feroz. — Tu fez isso!
— Eu só te encostei. Foi sem querer, eu juro!
As crianças se reuniram ao redor das duas, em um semicírculo, como se presenciassem algum tipo de duelo invisível. O silêncio que se formou entre o grupo era mais de curiosidade do que de medo.
— Tu consegue fazer isso sempre que quer? — perguntou Aurélio, com um sorriso torto. — Faz comigo! Vai!
— Não, não, espera — disse Étienne, empurrando o garoto com o ombro. — Deixa eu ir primeiro! Quero ver se é verdade mesmo.
Brigitte recuou um passo, incomodada com a súbita empolgação do grupo.
— Gente, eu não sei como fiz isso. Eu nem sei o que foi isso direito.
— Vocês são bobos. — disse Clarisse, fazendo biquinho. — Ela podia ter me machucado de verdade!
Clarisse esperou por uma resposta que nunca veio. “Sim, é verdade! Brigitte malvada.”, desse modo, ela se tornaria o centro das atenções, estando certa sobre Brigitte. Mas recebeu apenas o silêncio. Ninguém respondeu ou se importou com ela.
Céline se aproximou de Brigitte e estendeu os dedos em direção à sua mão antes que a garota pudesse reagir.
— Ei, espera aí.
Assim que tocou a mão da garota, um estalo agudo soou — TAC! — e um fio violeta brilhou entre a pele das duas, como uma fagulha viva.
— Ai! — gritou Céline, recuando com um pulo.
Céline sacudiu a mão no ar, com os olhos arregalados de surpresa. Brigitte recuou instintivamente, levando a mão ao peito, como se tentasse conter o que quer que tivesse saído dela.
— Eu vi! — gritou Bastien. — Foi tipo uma faísca!
— Tá tudo bem contigo, Céline? — perguntou Aurélio, se aproximando.
A menina de cabelos curtos esfregou os dedos uns nos outros, ainda com os olhos brilhando — não de medo, mas de empolgação.
— Aham! Foi só um choquinho, tipo… quando tu encosta no corrimão de metal.
Brigitte estava paralisada, entre assustada e contente. Aquilo não fazia sentido, mas ao mesmo tempo… fazia. Era estranho, inexplicável, e ainda assim, a sensação de ter feito algo único, algo que só ela parecia conseguir, era como uma brasa de orgulho acesa no peito. Olhou para as próprias mãos de novo, e dessa vez, sorriu.
— Tu tá amaldiçoada ou o quê? — murmurou Aurélio, franzindo a testa, entre surpresa e receio.
Nesse instante, uma voz se ergueu ao fundo do cenário, como uma enxada cortando o trigo:
— Clarisse! Clarisse! Quantas vezes já falei pra não se afastar tanto do campo?
Todos viraram o rosto ao mesmo tempo. A senhora Lemoine estava subindo pela trilha de terra, bufando de raiva e cansaço, com os sapatos cobertos de lama seca e as mãos firmes nos quadris.
Clarisse, ainda esfregando o braço com fingida dor, virou-se devagar. E sorriu — um sorriso torto e traiçoeiro. Como se finalmente tivesse conseguido o que queria.
Ela se lançou em um teatrinho calculado, correndo na direção da mãe com os olhos úmidos e piscando rápido.
— Mãããeee! A Brigitte me machucou! — disse em um tom choroso tão forçado que beirava o cômico.
As crianças se entreolharam, inquietas. Bastien coçou o nariz. Étienne fez uma careta de dúvida. Brigitte ficou imóvel, olhando para as próprias mãos como se tentasse entender se ainda estavam “ligadas”.
A senhora Lemoine chegou ao grupo com um olhar duro como pedra.
— Que conversa é essa? — perguntou ela, firme, encarando a filha..
Clarisse estendeu o braço com toda a dramaticidade que conseguiu reunir.
— Olha, mãe! Ela me deu choque! Um choque de verdade! E doeu!
A mulher se abaixou, observou a leve marca avermelhada no braço da filha. Parecia mais uma picada de mosquito ou uma batida de leve. A mulher levantou uma sobrancelha, sem disfarçar a desconfiança.
— Um choque?
— Uhum! E me machucou muito!
Brigitte deu um passo tímido à frente, coçando a nuca.
— Foi sem querer… eu nem sei como isso aconteceu…
— Foi de propósito, mãe! Ela segurou meu braço forte e ficou me dando choque! Depois deu choque na Céline também!
Céline ergueu uma sobrancelha quando surgiu na discussão. Se colocou na frente, tentando argumentar.
— Mas eu que encostei nel-
— ELA MACHUCA TODO MUNDO QUE ENCOSTA NELA, MÃE! — berrou Clarisse, se impondo à qualquer voz contrária com um grito ensaiado.
O silêncio caiu de repente. Céline ficou muda, com a boca entreaberta e os olhos arregalados. Brigitte piscava, sem entender como tudo havia se virado contra ela tão rápido.
— Como é que é? — disse a senhora Lemoine, agora erguida, com a voz mais acusante. — Quem te ensinou isso, menina?
— N-ninguém… eu… eu não sei como aconteceu… — murmurou Brigitte, abraçando o próprio corpo, encolhida.
— Isso parece bruxaria! — gritou Clarisse, escondendo-se atrás da mãe como se temesse ser atingida por uma maldição.
A mulher arregalou os olhos por um segundo, surpresa com a palavra.
— Não diz uma coisa dessas, Clarisse! — respondeu, virando-se para ela. — Isso é grave!
Brigitte fixou o olhar no rosto da senhora Lemoine. Era a expressão típica de adulto que já julgou e sentenciou sem ver o outro lado. Nada mais importava.
A mulher limpou a saia com as palmas das mãos e respirou fundo, como quem se prepara para algo inevitável.
— Eu vou falar com a sua mãe. Hoje mesmo. Você pode ser um risco pra minha filha… e pros outros também.
Brigitte abriu a boca, mas as palavras não vieram. O silêncio ao redor era ensurdecedor. Mais pesado que qualquer bronca.
Alix desviava o olhar. Bastien chutava a poeira. Até Étienne, sempre pronto com uma piada, agora parecia não ter mais voz. Clarisse, por outro lado, ajeitou a barra da saia com falsa delicadeza, limpou o rosto — onde nenhuma lágrima havia — e segurou firme a mão da mãe, como uma atriz encerrando seu ato.
— Vamos, Clarisse.
E antes de partir, a menina lançou a Brigitte um último olhar. Não era de medo. Nem de repulsa. Era o olhar de quem venceu. Um sorriso presunçoso e irritante.
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