Índice de Capítulo

    O sol se escondia atrás das copas altas das árvores do campo, tingindo as pedras da igrejas da vila de Alzen com um brilho âmbar desbotado. Ali atrás, o chão estava todo marcado por pegadas pequenas e trilhas de barro seco. Era o local onde as crianças brincavam regularmente. Eram oito ao todo. O campo ecoava com os sons de gritos e risos. As crianças correndo como se fugissem de um predador.

    — Três voltas, depois a besta sai! — gritou Étienne, com os olhos cheios de emoção.

    Brigitte girava no centro do círculo formado pelas crianças, de olhos cobertos por uma venda improvisada feita com o lenço de cabelo da irmã mais velha de Clarisse. Todas as vozes cantavam a mesma melodia antiga, todos no mesmo ritmo:

    Ai vist lo lop dins l’erbeta,

    corria, corria la cambeta.

    Dins lo cercle, fa lo torn,

    tòca l’ombra e lo fuòc es torn.

    Ao fim da terceira volta, a venda foi arrancada com um puxão rápido. Brigitte parou no meio do círculo. O jogo começava. Ela era agora a “besta”. Os outros se espalharam pelo campo, com gritos de euforia e emoção. Seu objetivo era simples: tocar um deles e passar adiante o “espírito da besta”.

    — Alix! Eu vou te pegar! — berrou ela, fingindo escolher um alvo, só para enganar as crianças, mas era Clarisse que Brigitte queria.

    Enquanto todos riam e se dispersavam, ela foi atrás do garoto de olhos verdes, passando entre todas as crianças que observavam com atenção o embate dos dois, fingindo persegui-lo até que encontrou sua verdadeira presa. Clarisse. Sem esperar, mudou de alvo e começou a seguir a garota.

    A menina de tranças vermelhas correu entre duas pedras empilhadas e passou rente ao tronco torto de uma amoreira. Brigitte a seguiu, chutando a poeira, com as pernas queimando e a respiração acelerada. O som da brincadeira ecoava na vila. Então, ela se lançou para frente e agarrou o pulso da menina com força.

    No instante em que encostou no braço da colega, em um instante que pareceu durar mais do que devia, Brigitte sentiu algo diferente — um tremor sutil e interno, como se algo em seu peito tivesse estalado e percorrido todo o seu corpo. Não era dor, nem prazer. Era um sentimento fino, porém, inquietante. Uma sensação eletrizante.

    — Ai! — gritou Clarisse, puxando o braço.

    — O que foi? — perguntou Brigitte, ainda agarrando o braço da menina.

    Outro estalo percorreu sua mão, agora mais forte, passando de forma seca da pele escura de Brigitte para a pele morena da outra. A vibração se expandiu como um fio invisível.

    — AAAAAH! Ela me deu choque!

    Brigitte arregalou os olhos, soltou finalmente o braço de Clarisse — que puxou com força para si — e olhou para as mãos, como se visse algo sagrado ou proibido. Sentia-as quentes, formigando, quase pulsando. Mas elas pareciam normais, sem nenhuma queimadura, mesmo sentindo o choque. Era como se algo dentro de dela tivesse se estendido para fora — por um instante.

    — De verdade? — disse Alix, com a voz baixa.

    — Sim, eu vi! — disse Bastien, apontando para Brigitte. — Juro que fez um som! Tipo… bzz! Bem na hora!

    — Pareceu um trovãozinho! — disse Céline, com os olhos brilhando. — Tu que fez isso, Brigitte?

    Brigitte abriu a boca, mas hesitou por um momento. Ainda estava confusa com o que aconteceu.

    — Eu não sei. Eu juro que não fiz nada. — ela esfregou as palmas das mãos contra o vestido, tentando apagar o acontecido.

    — Você fez alguma coisa, sim! Foi um choque de verdade! Me queimou! — disse ela, mostrando o braço. Lá, havia uma leve vermelhidão, nada de mais. Mas o olhar dela era feroz. — Tu fez isso!

    — Eu só te encostei. Foi sem querer, eu juro!

    As crianças se reuniram ao redor das duas, em um semicírculo, como se presenciassem algum tipo de duelo invisível. O silêncio que se formou entre o grupo era mais de curiosidade do que de medo.

    — Tu consegue fazer isso sempre que quer? — perguntou Aurélio, com um sorriso torto. — Faz comigo! Vai!

    — Não, não, espera — disse Étienne, empurrando o garoto com o ombro. — Deixa eu ir primeiro! Quero ver se é verdade mesmo.

    Brigitte recuou um passo, incomodada com a súbita empolgação do grupo.

    — Gente, eu não sei como fiz isso. Eu nem sei o que foi isso direito.

    — Vocês são bobos. — disse Clarisse, fazendo biquinho. — Ela podia ter me machucado de verdade!

    Clarisse esperou por uma resposta que nunca veio. “Sim, é verdade! Brigitte malvada.”, desse modo, ela se tornaria o centro das atenções, estando certa sobre Brigitte. Mas recebeu apenas o silêncio. Ninguém respondeu ou se importou com ela.

    Céline se aproximou de Brigitte e estendeu os dedos em direção à sua mão antes que a garota pudesse reagir.

    — Ei, espera aí.

    Assim que tocou a mão da garota, um estalo agudo soou — TAC! — e um fio violeta brilhou entre a pele das duas, como uma fagulha viva.

    — Ai! — gritou Céline, recuando com um pulo.

    Céline sacudiu a mão no ar, com os olhos arregalados de surpresa. Brigitte recuou instintivamente, levando a mão ao peito, como se tentasse conter o que quer que tivesse saído dela.

    — Eu vi! — gritou Bastien. — Foi tipo uma faísca!

    — Tá tudo bem contigo, Céline? — perguntou Aurélio, se aproximando.

    A menina de cabelos curtos esfregou os dedos uns nos outros, ainda com os olhos brilhando — não de medo, mas de empolgação.

    — Aham! Foi só um choquinho, tipo… quando tu encosta no corrimão de metal.

    Brigitte estava paralisada, entre assustada e contente. Aquilo não fazia sentido, mas ao mesmo tempo… fazia. Era estranho, inexplicável, e ainda assim, a sensação de ter feito algo único, algo que só ela parecia conseguir, era como uma brasa de orgulho acesa no peito. Olhou para as próprias mãos de novo, e dessa vez, sorriu.

    — Tu tá amaldiçoada ou o quê? — murmurou Aurélio, franzindo a testa, entre surpresa e receio.

    Nesse instante, uma voz se ergueu ao fundo do cenário, como uma enxada cortando o trigo:

    — Clarisse! Clarisse! Quantas vezes já falei pra não se afastar tanto do campo?

    Todos viraram o rosto ao mesmo tempo. A senhora Lemoine estava subindo pela trilha de terra, bufando de raiva e cansaço, com os sapatos cobertos de lama seca e as mãos firmes nos quadris.

    Clarisse, ainda esfregando o braço com fingida dor, virou-se devagar. E sorriu — um sorriso torto e traiçoeiro. Como se finalmente tivesse conseguido o que queria.

    Ela se lançou em um teatrinho calculado, correndo na direção da mãe com os olhos úmidos e piscando rápido.

    — Mãããeee! A Brigitte me machucou! — disse em um tom choroso tão forçado que beirava o cômico.

    As crianças se entreolharam, inquietas. Bastien coçou o nariz. Étienne fez uma careta de dúvida. Brigitte ficou imóvel, olhando para as próprias mãos como se tentasse entender se ainda estavam “ligadas”.

    A senhora Lemoine chegou ao grupo com um olhar duro como pedra.

    — Que conversa é essa? — perguntou ela, firme, encarando a filha..

    Clarisse estendeu o braço com toda a dramaticidade que conseguiu reunir.

    — Olha, mãe! Ela me deu choque! Um choque de verdade! E doeu!

    A mulher se abaixou, observou a leve marca avermelhada no braço da filha. Parecia mais uma picada de mosquito ou uma batida de leve. A mulher levantou uma sobrancelha, sem disfarçar a desconfiança.

    — Um choque?

    — Uhum! E me machucou muito!

    Brigitte deu um passo tímido à frente, coçando a nuca.

    — Foi sem querer… eu nem sei como isso aconteceu…

    — Foi de propósito, mãe! Ela segurou meu braço forte e ficou me dando choque! Depois deu choque na Céline também!

    Céline ergueu uma sobrancelha quando surgiu na discussão. Se colocou na frente, tentando argumentar.

    — Mas eu que encostei nel-

    — ELA MACHUCA TODO MUNDO QUE ENCOSTA NELA, MÃE! — berrou Clarisse, se impondo à qualquer voz contrária com um grito ensaiado.

    O silêncio caiu de repente. Céline ficou muda, com a boca entreaberta e os olhos arregalados. Brigitte piscava, sem entender como tudo havia se virado contra ela tão rápido.

    — Como é que é? — disse a senhora Lemoine, agora erguida, com a voz mais acusante. — Quem te ensinou isso, menina?

    — N-ninguém… eu… eu não sei como aconteceu… — murmurou Brigitte, abraçando o próprio corpo, encolhida.

    — Isso parece bruxaria! — gritou Clarisse, escondendo-se atrás da mãe como se temesse ser atingida por uma maldição.

    A mulher arregalou os olhos por um segundo, surpresa com a palavra.

    — Não diz uma coisa dessas, Clarisse! — respondeu, virando-se para ela. — Isso é grave!

    Brigitte fixou o olhar no rosto da senhora Lemoine. Era a expressão típica de adulto que já julgou e sentenciou sem ver o outro lado. Nada mais importava.

    A mulher limpou a saia com as palmas das mãos e respirou fundo, como quem se prepara para algo inevitável.

    — Eu vou falar com a sua mãe. Hoje mesmo. Você pode ser um risco pra minha filha… e pros outros também.

    Brigitte abriu a boca, mas as palavras não vieram. O silêncio ao redor era ensurdecedor. Mais pesado que qualquer bronca.

    Alix desviava o olhar. Bastien chutava a poeira. Até Étienne, sempre pronto com uma piada, agora parecia não ter mais voz. Clarisse, por outro lado, ajeitou a barra da saia com falsa delicadeza, limpou o rosto — onde nenhuma lágrima havia — e segurou firme a mão da mãe, como uma atriz encerrando seu ato.

    — Vamos, Clarisse.

    E antes de partir, a menina lançou a Brigitte um último olhar. Não era de medo. Nem de repulsa. Era o olhar de quem venceu. Um sorriso presunçoso e irritante.

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