Próximo capitulo sai 28 de março
Capitulo 10
A taverna “O Porco e o Apito” era menos enfumaçada que a Espinha do Kraken, mas não menos barulhenta. Luzes bruxuleantes de lamparinas a óleo de baleia lançavam sombras dançantes nas paredes de madeira enegrecida. O cheiro predominante era de cerveja azeda, suor rançoso e uma pitada de óleo de máquina – uma combinação que, após algumas canecas, se tornava estranhamente reconfortante. Nix e Madoc se espremeram em um canto próximo ao balcão, longe dos grupos mais ruidosos de marinheiros já bem embriagados.
A primeira rodada foi um silêncio constrangedor. Nix brincava com a caneca de cerâmica esmaltada, evitando o olhar intenso de Madoc. Ele, por sua vez, estudava-a com uma curiosidade renovada, os dedos tamborilando levemente na mesa.
— Então… — Madoc finalmente quebrou o gelo, erguendo sua caneca. — À garota que salva navegadores em becos escuros. E que dança como um sonho. Saúde.
Nix sorriu, um pouco forçado, e tocou sua caneca na dele. O líquido âmbar dentro dela era forte, queimando suavemente a garganta.
— Saúde. E desculpe de novo pelo… incidente. A vida no Cais das Lágrimas anda complicada.
— Complicada? — Madoc deu um gole longo, limpando a espuma do lábio superior com o dorso da mão. — Você tem assassinos profissionais do Templo da Lua no seu encalço e uma cabeça a prêmio que deve valer uma fortuna. Eu chamaria isso de *catastrófica*. Mas, admito, cativante.
Ele tinha um jeito descontraído de falar das coisas terríveis, um escudo de charme e humor negro. Nix sentiu um pouco da tensão se dissipar.
— Cativa poucos, acredite. Principalmente quando atrapalha a vida de navegadores inocentes.
— Inocente? — Madoc soltou uma risada sincera, um som rouco e quente que parecia vir do peito. — Nix, eu bebo em tavernas onde brigas com facas são o aperitivo. Um pouco de emoção extra é bem-vinda. Além do mais… — Ele inclinou-se para frente, os olhos cintilando na luz baixa. — Você lutou *bem*. Não como alguém treinado em salas limpas, mas como alguém que sobreviveu nas ruas. É impressionante. E… bonito de se ver.
O elogio direto fez Nix corar. Ela não estava acostumada. Desviou o olhar, tomando outro gole maior.
— Sobrevivência, só isso. E… obrigada.
A segunda rodada chegou, trazida por uma atendente de olhos cansados. Madoc pagou antes que Nix pudesse protestar.
— Despesas da empresa, capitã. — Ele brincou, erguendo a nova caneca. — À nossa viagem perigosa! Que seja cheia de monstros marinhos, tempestades épicas e tesouros inimagináveis! Ou, pelo menos, que a gente sobreviva pra contar a história.
Dessa vez, o sorriso de Nix foi mais genuíno. O álcool começava a aquecer seu corpo, soltando suas inibições.
— À sobrevivência! E ao Semente do Caos. Ele merece uma aventura de verdade.
— Ah, sim, o navio encantado. — Madoc assentiu, interesse genuíno no olhar. — Conta mais. Como é sentir ele? Ouvir as histórias é uma coisa, mas… comandá-lo?
Nix sentiu os olhos brilharem. Falar do navio era fácil, era paixão pura.
— É… indescritível. — Ela começou, os gestos ficando mais amplos. — Não é como pilotar um barco normal. É como se ele tivesse uma alma, sabe? Uma vontade própria, mas que *escolhe* te ouvir. Quando coloco as mãos no leme… é uma conexão. Ele responde antes mesmo de eu pensar no comando. Antecipa. É como dançar com um parceiro perfeito, só que… maior. Muito maior. E feito de madeira e magia. — Ela riu, um som leve que Madoc nunca tinha ouvido dela. — Eu sei, parece loucura.
— Não parece. — Madoc respondeu, sério por um momento. — Parece incrível. Uma conexão assim… é rara. Quase como um pacto. Você é sortuda, Nix. A maioria de nós só tem o mar, o vento e a sorte. Você tem um aliado.
A sinceridade dele pegou Nix desprevenida. Ela olhou para ele, vendo além do mulherengo charmoso. Havia uma profundidade ali, uma compreensão do mar e das coisas que só vinham com experiência… e talvez com perda.
— E você? — Ela perguntou, impulsionada pelo rum e pela abertura momentânea. — Amarílis disse que você foi expulso do último navio. Por… dar em cima da filha do capitão?
Madoc deu uma gargalhada, mas desta vez havia uma sombra de amargura nela. Ele esvaziou metade da caneca de um só gole.
— Ah, a história corre rápido. Sim e não. A filha do capitão era… fascinante. Uma sereia com olhos como águas profundas. Mas não foi só isso. — Ele olhou para o fundo da caneca, como se buscando respostas lá. — O capitão era um tirano. Cobrava tributos absurdos das vilas costeiras já sofridas. Usava a força, a intimidação. Eu… discuti. Alto e bom som. Disse que aquilo não era pirataria, era bandidagem covarde. Que o mar merecia mais respeito. Que as pessoas mereciam. — Ele encolheu os ombros. — Dar em cima da filha foi só a desculpa perfeita para me jogar ao mar antes que eu virasse a tripulação contra ele. Foi um banho frio, literalmente.
Nix ficou impressionada. A história pintava Madoc sob uma luz completamente diferente – não um mulherengo irresponsável, mas alguém com um código, disposto a arriscar tudo por ele. O álcool tornava a admiração dela mais transparente.
— Você fez a coisa certa. — Ela disse, sua voz um pouco pastosa. — Mesmo que tenha sido burro. Banho frio no mar aberto… podia ter morrido.
— Quase morri. — Madoc admitiu, um sorriso torto nos lábios. — Mas valeu a pena. Durmo melhor sabendo que não ajudei aquele sacana. — Ele ergueu a caneca novamente. — Às más decisões que nos levam a lugares interessantes! E a novas capitãs que salvam nossa pele em becos!
Nix riu e brindou com ele. A terceira rodada chegou. As palavras fluíam mais fácil agora. Nix contou histórias da infância na Ilha das Almas com Vênus, das travessuras que aprontavam, das invenções malucas que tentavam construir. Falou de Zander, brevemente, um tom de dor ainda presente, mas sem o peso esmagador de antes. Falou de Panacéia, a fada atormentada e protetora. Madoc escutava, atento, fazendo perguntas perspicazes, rindo nos momentos certos. Ele, por sua vez, contou histórias de navegação em mares revoltos, de ilhas perdidas com ruínas estranhas, de tempestades que pareciam o fim do mundo e do alívio indescritível de ver o sol raiar depois. Falou de perdas no mar, de amigos que não voltaram, com uma melancolia que o álcool não conseguia disfarçar totalmente.
— O mar… — Madoc murmurou, olhando para a espuma em sua caneca, que agora era a quinta… ou sexta? Nix já tinha perdido a conta. — Ele te dá tudo, mas pode levar tudo num piscar de olhos. É lindo e terrível. Como… — Ele olhou para Nix, seus olhos normalmente tão alertas agora turvos pelo álcool, mas com uma intensidade que a fez prender a respiração. — Como algumas pessoas.
Nix sentiu o rosto queimar. Ela não sabia se era o rum ou o olhar dele. O ambiente da taverna parecia girar suavemente. Ela tentou focar em Madoc, mas sua visão estava dupla.
— Você tá… muito bêbado. — Ela conseguiu articular, apoiando a cabeça na mão.
— Eu? — Madoc apontou para ela com a caneca, derramando um pouco. — Você mal consegue ficar sentada, capitã. Seu navio encantado teria pena de você agora.
Nix tentou rir, mas virou um soluço. O mundo inclinou perigosamente. Ela sentiu uma forte onda de náusea.
— Uh-oh. — Madoc percebeu o perigo. Ele se levantou, um pouco instável, mas muito mais sóbrio que Nix. — Acho que chegou a hora de recolher a tropa.
Nix tentou protestar, mas as palavras saíram como um grunhido. Ela balançou para frente. Madoc reagiu rápido, segurando-a pelo braço antes que ela caísse da cadeira.
— Fácil, guerreira. Vamos te por em pé.
Ele a ajudou a se levantar, colocando o braço dele em volta dos ombros dela para sustentá-la. Nix estava um peso morto, as pernas de borracha. Ela encostou a cabeça no ombro dele, murmurando algo ininteligível sobre o leme do Semente do Caos ser mais estável.
— Tá, tá, capitã. O leme tá seguro. — Madoc acalmou, começando a arrastá-la cuidadosamente em direção à saída. Era um esforço considerável; Nix, mesmo esguia, não era leve, e sua falta total de coordenação motora não ajudava.
Foi quando Amarílis apareceu como um anjo verde de cabelos desgrenhados. Ela estava saindo do turno na Espinha do Kraken e viu a cena.
— Pelas barbas do Kraken! — Ela exclamou, correndo para ajudar. — O que fizeram com a pobre gatinha? Madoc, seu desgraçado, você embebedou a capitã no primeiro dia?
— Eu? Ela bebeu tanto quanto eu! — Madoc protestou, mas aliviado pela ajuda. Ele transferiu o peso maior de Nix para Amarílis, que, sendo sereia, tinha uma força surpreendente. — Ela tem uma resistência de… de passarinho molhado.
— Cala a boca e abre o caminho. — Amarílis ordenou, segurando Nix firmemente. — Onde ela tá hospedada?
— No navio. O Semente do Caos, no cais leste. — Madoc respondeu, afastando alguns curiosos.
Juntos, eles conseguiram levar Nix, que agora murmurava sobre “dragões de obsidiana” e “cartas vermelhas”, para fora da taverna e em direção ao cais. A brisa fria da noite fez Nix estremecer e gemer.
— Echo… — Ela murmurou, seu rosto pressionado contra o ombro de Amarílis. — Vou te ver… logo…
Madoc ouviu o nome. Um leve franzir apareceu entre suas sobrancelhas, mas ele não disse nada. Ajudou Amarílis a subir a precária passarela que levava ao convés do imponente Semente do Caos. Vênus, alertada pelo barulho, apareceu na coberta, de robe, com uma lanterna.
— NIX! — Ela correu para ajudar. — O que aconteceu? Está ferida?
— Só gloriosamente bêbada, querida. — Amarílis informou, entregando Nix para os braços da dragona. — Seu novo navegador aqui a levou pra uma noitada de celebração… pré-viagem.
Vênus lançou um olhar assassino para Madoc, que levantou as mãos em defesa.
— Eu juro, foi mútuo! Ela brindou com entusiasmo!
— Hmph. — Vênus resmungou, mas seu olhar se suavizou ao ver que Nix estava apenas intoxicada, não machucada. — Obrigada, Amarílis. E… obrigada por trazê-la, Madoc. — O agradecimento foi um pouco relutante.
— Nada que não fizesse por qualquer membro da tripulação. — Madoc respondeu, com uma leve inclinação de cabeça. Ele observou enquanto Vênus e Amarílis levavam Nix cambaleante para baixo do convés, ouvindo os murmúrios confusos de Nix diminuírem. O navio, mesmo parado, parecia observar tudo com uma presença silenciosa. Madoc tocou levemente o corrimão de madeira lisa. Sentiu um leve zumbido, uma energia contida. *Um navio vivo*, pensou, com um misto de admiração e algo mais complexo.
Ele ficou parado por um momento, ouvindo as ondas batendo contra o casco, o cheiro do mar limpando um pouco o álcool de seus sentidos. O alívio da briga no beco, a confusão da bebedeira, a vulnerabilidade de Nix… tudo se misturava dentro dele. Havia uma atração ali, inegável – pela garota, pelo navio, pela aventura que se avizinhava. Mas havia também uma corrente subterrânea mais fria, mais escura.
Com um último olhar para a escotilha por onde Nix desaparecera, Madoc desceu a passarela e se dirigiu para a rua escura que levava à parte mais antiga e decadente do cais. O ar estava frio e úmido, e a névoa começava a se formar, envolvendo os lampiões em halos fantasmagóricos. O barulho das tavernas distantes parecia abafado.
Ele mal havia virado a esquina de um armazém abandonado quando as sombras se agitaram novamente. Desta vez, não eram três, mas duas figuras. Mais altas, mais esguias, vestidas com mantos escuros que pareciam absorver a pouca luz. Eles não portavam armas visíveis, mas a aura de perigo era palpável, gelada. Eram diferentes dos assassinos anteriores. Mais calmos. Mais mortais.
Madoc parou. Todo o charme e a descontração evaporaram. Seu corpo ficou tenso, alerta, mas ele não fez nenhum movimento defensivo. Ele os reconhecia.
— Madoc. — A voz que veio da sombra mais próxima era suave, sem emoção, como o sussurro de uma lâmina deslizando na bainha. — Você se aproximou dela.
— Era o plano, não era? — Madoc respondeu, sua voz surpreendentemente estável, sem vestígios da bebedeira. O álcool parecia ter se dissipado completamente diante daquela presença.
— Sim. E agora? — A segunda figura falou, um pouco mais atrás. Sua voz era igualmente fria, mas havia uma nota de expectativa. — A oportunidade se apresenta. Ela está indefesa. Embriagada. Confia em você.
Madoc não respondeu imediatamente. Seus olhos, normalmente tão expressivos, estavam impenetráveis na penumbra. Ele olhou na direção do Semente do Caos, invisível agora atrás dos armazéns. Pensou em Nix rindo despreocupadamente na taverna, nos olhos dela brilhando ao falar do navio, na coragem com que se colocara entre ele e as lâminas. Pensou na vulnerabilidade dela nos braços de Amarílis, murmurando o nome de outro homem.
— Ela é a Filha do Caos. — O primeiro assassino continuou, o título soando como uma sentença. — Sua existência é uma aberração. Um desequilíbrio. O Templo da Lua a caça, sim, mas sua destruição é uma necessidade maior. Uma ordem cósmica. O Caos que ela carrega… ele precisa ser extinto antes que floresça.
Madoc fechou os olhos por um breve instante. Quando os abriu, havia uma decisão fria neles, como o aço polido.
— Eu sei o que ela é. — Ele disse, sua voz um fio de som. — E eu sei o que preciso fazer.
— Erebos aguarda seu retorno, Madoc. — O segundo assassino estendeu a mão, lenta e deliberadamente. Na palma, repousava uma adaga. Não era uma arma comum. A lâmina era curta e estreita, feita de um metal negro que não refletia a luz, parecendo sugar as sombras ao seu redor. O cabo era de osso pálido, entalhado com runas que pareciam se mover quando observadas de relance. Havia um frio emanando dela, um vácuo que prometia não apenas a morte, mas o apagamento. — A Adaga do Esquecimento. Ela corta mais do que a carne. Corta a essência. O Caos. Nada restará. Nenhum vestígio, nenhum eco. Será como se nunca tivesse existido.
Madoc olhou para a adaga. A luz fraca do lampião mais próximo parecia se curvar ao redor dela, evitando-a. Ele sentiu um calafrio percorrer sua espinha, diferente de qualquer frio que o álcool ou a noite pudessem causar. Era o toque do Vazio.
— Você fará isso? — A primeira sombra perguntou, seus olhos invisíveis fixos no rosto de Madoc. — Você cumprirá seu juramento para Érebo? Você matará a Filha do Caos e apagará sua mancha da existência? E, com isso, limpará sua própria dívida? Sua traição será redimida.
O silêncio que se seguiu foi pesado, carregado com o destino de mundos que Nix nem sonhava existir. O murmúrio do mar parecia silencioso. A névoa envolvia as três figuras como um sudário.
Madoc estendeu a mão. Seus dedos não tremiam. Eles se fecharam com firmeza ao redor do cabo de osso da adaga. O frio penetrante subiu por seu braço, uma dor aguda e purificadora. A escuridão da lâmina parecia vibrar em sintonia com algo sombrio dentro dele.
— Sim. — A palavra saiu como um sopro, mas carregada de uma resolução férrea. Era uma confirmação, um pacto selado naquele beco úmido. — Eu a matarei.
Ele ergueu a Adaga do Esquecimento, observando como as sombras pareciam se aglutinar em torno dela, ansiosas. A lâmina negra absorveu até a última partícula de luz ao seu redor.
— Amanhecer. — O primeiro assassino sussurrou. — Enquanto o Caos dorme. Antes que o navio desperte.
Madoc não respondeu. Ele apenas embainhou a adaga em um movimento fluido, escondendo-a sob seu casaco. A arma desapareceu, mas seu peso, físico e metafísico, era uma presença constante, um segredo mortal agora colado a ele.
As duas figuras recuaram, dissolvendo-se nas sombras mais profundas do beco como se nunca tivessem existido. Madoc ficou sozinho na névoa, o som do mar voltando a preencher seus ouvidos, agora parecendo um lamento distante. Ele olhou mais uma vez na direção do Semente do Caos, seu rosto uma máscara impenetrável onde, por um breve instante antes de se endurecer completamente, pôde-se talvez ver um lampejo de conflito – um último eco da amizade que começara a brotar entre canecas de rum e histórias compartilhadas, agora condenada antes mesmo de florescer.
Ele se virou e desapareceu na noite, carregando o frio da adaga e o peso do seu juramento para Érebo. O convés do Semente do Caos, onde Nix dormia um sono profundo e vulnerável, aguardava o amanhecer. E o assassino que ela pensava ser seu aliado.
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