Próximo capitulo sai 28 de março

        O Semente do Caos balançava suavemente no estaleiro, a madeira rangendo levemente sob o peso dos novos tripulantes. O céu estava tingido de um laranja suave, marcando o fim do dia, enquanto o cheiro de sal e especiarias pairava no ar.

        Nix caminhava pelo convés com Madoc e Mathew logo atrás. Eles pareciam relaxados, mas seus olhos inquietos analisavam tudo ao redor, como se ainda esperassem uma emboscada.

        — Certo, venham conhecer o resto da tripulação. — Nix abriu um sorriso travesso. — Mas aviso logo, não esperem uma recepção calorosa.

        O primeiro andar do Semente do Caos abrigava um salão de jantar espaçoso, iluminado por lamparinas a óleo e pelo sol do fim da tarde que entrava pelas janelas redondas além de uma maior no fundo. Três mesas redondas de madeira ocupavam o centro do ambiente, cercadas por cadeiras robustas que lembravam as de uma taberna. O cheiro de temperos salgados e peixe fresco misturava-se ao aroma de madeira polida e óleo de ferramentas.

        No canto oposto, Asteria estava encolhida em um banco, os olhos fixos no chão enquanto Panacéia gesticulava, claramente no meio de uma bronca.

        — Você contou para a Nix onde ficava a Guilda, o esconderijo das sombras de Érebo! — A voz de Panacéia carregava exasperação. — Você tem ideia do fez? Lafaiete vai acabar com a nossa raça agora.

        Asteria se encolheu mais, tentáculos se movendo com exasperação.

        — Ela teria descoberto de qualquer jeito…

        — Isso não é desculpa!

        Nix pigarreou, chamando a atenção para si.

        — Vamos deixar isso para depois. Trouxe companhia.

        Os olhos de Panacéia deixaram Asteria e passaram rapidamente para Madoc e Mathew. Ela inclinou a cabeça, avaliando os dois.

        — Não são os assassinos de ontem?

        — Ex-assassinos. — Madoc corrigiu, cruzando os braços.

        Mathew apenas sorriu amarelo, as asas se agitaram levemente. Panacéia deu de ombros, era uma situação desconfortável.

        — Nix, confia neles?

        — Confio.

        Do outro lado da sala, Vênus ergueu os olhos da panela.

        — Não deveria.

        Seu tom não era hostil, mas carregava um peso de julgamento. Os olhos afiados avaliaram os irmãos, e a sala ficou momentaneamente tensa.

        — Eu entendo que são úteis, mas ainda são assassinos. E traidores da própria Guilda.

        Mathew manteve o sorriso, mas Madoc cerrou os punhos.

        — Nixoria nos salvou e nós juramos nossa espada a ela.

        — Fizeram o juramento com magia? — eles se mantiveram em silêncio — foi o que imaginei. — Vênus voltou a mexer a panela calando a boca de Madoc.

        Nix suspirou e agarrou o braço de Madoc,, puxando-o pela porta.

        — Vamos, antes que vocês se matem na cozinha.

        Ela os guiou para fora da cozinha, saltando para um andar mais baixo no convés, onde o mastro principal ficava bem no centro e cinco portas de madeira indicavam os quartos ao redor.

        — O navio tem três andares, além do porão. Os dois acima do convés são a cozinha e, no topo, a sala de mapas, que também uso como quarto. No andar de baixo, dividi o espaço para os quartos. Astéria e Panacéia transformaram o delas em uma oficina. — Nix procurou o quarto mais afastado do de Vênus e abriu a porta. — Aqui é onde vocês vão dormir. Existem cinco quartos, cada um com duas redes e dois armários. Podem decorar do jeito que preferirem.

        Madoc entrou primeiro, analisando o espaço.

        — Sem camas?

        — Camas ocupam muito espaço. Além disso, não se ajustam ao balanço do navio como as redes. São inconvenientes.

        — Já dormimos em lugares bem piores.

        Madoc analisou o quarto como se estivesse inspecionando um campo de batalha. Suas mãos deslizaram pelos suportes das paredes, testando a firmeza da madeira, e ele cutucou a estrutura do armário com a ponta da bota antes de assentir, resignado.

        — Suponho que sim.

        Nix apoiou-se na porta, observando os dois se acomodarem. O peso daquela decisão — tê-los ali como parte da tripulação — finalmente se assentava em sua mente. Inspirou fundo antes de falar.

        — Agora que vocês fazem parte do Semente do Caos, precisam seguir as regras.

        Mathew, já deitado na rede, apoiou o queixo na palma da mão, um sorriso travesso nos lábios.

        — Deixa eu adivinhar… nada de matar ninguém?

        Ela estreitou os olhos.

        — De preferência.

        — Péssima regra para um barco de piratas. — Ele riu, divertido.

        — Não somos piratas. — O tom dela ficou mais sério. — Pelo menos, não no sentido tradicional.

        Madoc, sempre pragmático, inclinou a cabeça para o lado, ponderando.

        — E quais são as regras, então?

        Nix ergueu três dedos.

        — Primeiro: a tripulação vem em primeiro lugar. Se você colocar o navio em risco, ou seus companheiros em risco, assuma a responsabilidade.

        Mathew deu de ombros.

        — Justo.

        — Segundo: sem mentiras entre nós. Se confiar já é difícil, mentir é inaceitável.

        — E terceiro… — Nix abaixou a mão, o olhar suavizando. — Liberdade acima de tudo. Se quiserem partir, a porta está aberta. Eu não irei explulsá-los se quebrarem as duas anteriores, vocês estão aqui porque querem e podem partir de quiserem.

        Madoc cruzou os braços, refletindo sobre as palavras. Era um código de honra incomum para um navio. Ele respeitava isso.

        — Tudo bem capitã, seguiremos suas ordens.

        Nix relaxou os ombros. Pela primeira vez em muito tempo, sentiu que o Semente do Caos começava a se tornar algo real.


        A lua já brincava no céu, Nix e Panacéia estavam sentadas no salão de jantar, com mapas estendidos sobre a mesa.

        — Se o vento ajudar, quatro dias até a Baía dos Sussurros. — Panacéia correu o dedo pelo mapa. — Se pegarmos uma tempestade, seis.

        Nix tamborilou os dedos na mesa.

        — E as provisões?

        — Dez dias se comermos bem. O dobro se racionarmos.

        A capitã suspirou.

        — Espero que a vila tenha o que precisamos.

        Antes que pudesse continuar, batidas pesadas ecoaram do lado de fora, no andar dos quartos.

        — Vamos lá, assassinos, levantem essas bundas mortas!

        A porta do quarto se abriu sem cerimônia, e Astéria surgiu, a luz do corredor desenhando sua silhueta contra a madeira escura. Seus olhos castanhos brilhavam com divertimento, mas a sobrancelha arqueada deixava claro que não estava ali para brincar.

        A madeira do navio rangia suavemente, acompanhando o balanço do mar. No quarto escuro, o cheiro de sal se misturava ao de óleo de lamparina.

        Mathew, deitado na rede, virou-se preguiçosamente ao ouvir a porta se abrir sem cerimônia.

        — Você sempre entra assim nos quartos dos outros?

        Madoc, sentado na beira da rede, não se deu ao trabalho de responder. Apenas ergueu os olhos para Astéria.

        Ela, de pé no batente da porta, cruzou os braços tentáculos balançando com impaciência.

        — Vocês vão jantar.

        Mathew soltou um suspiro exagerado.

        — Estamos bem assim.

        Astéria não se moveu.

        — Não perguntei.

        Madoc ergueu uma sobrancelha.

        — Desde quando você dá ordens?

        Ela deu um passo à frente.

        — Desde que vocês decidiram que viveriam nesse navio. Aqui, todo mundo trabalha, todo mundo come. Não somos uma operação fantasma.

        Mathew soltou um riso curto e sem humor.

        — Você fala como se isso fosse um problema.

        Astéria deu de ombros.

        — Problema é gente que acha que pode ficar à margem da tripulação.

        Madoc exalou devagar e se levantou.

        — Vamos acabar logo com isso.

        Mathew seguiu o amigo, sem resistir dessa vez.

        No salão de jantar, o aroma quente de peixe grelhado e pão assado pairava no ar. As mesas redondas estavam parcialmente ocupadas, a conversa baixa misturando-se ao som das ondas.

        Na cozinha, Vênus os esperava, encostada no balcão, braços cruzados e olhar fixo. Assim que se aproximaram, empurrou dois pratos na direção deles.

        — Comam. Sem sujeira.

        Mathew pegou o prato, arqueando uma sobrancelha.

        — Você fala como se fôssemos crianças bagunceiras.

        Vênus o encarou sem piscar.

        — Não são?

        Madoc pegou o prato sem palavra alguma, mas seus olhos demoraram nela por um instante.

        Astéria rolou os olhos e gesticulou para uma mesa vazia.

        — Venham logo.

        Eles se sentaram, e o silêncio reinou por alguns instantes enquanto começavam a comer.

        Astéria apoiou o cotovelo na mesa, girando o garfo entre os dedos.

        — Então… Assassinos da Coroa. Cresceram no meio da guerra, foram treinados para matar sem hesitação.

        Madoc parou o garfo no meio do caminho.

        Mathew a olhou de soslaio.

        — Você sabe mais do que parece.

        Astéria girou o garfo mais uma vez antes de fincá-lo no peixe.

        — Eu sou carpinteira. Sei ler rachaduras antes que elas destruam um navio.

        Madoc estreitou os olhos.

        — Está insinuando que estamos quebrados?

        Astéria sorriu de canto.

        — Estou dizendo que foram feitos para quebrar e serem descartados. Mas vocês ainda estão aqui.

        Mathew soltou um sopro de riso, balançando a cabeça.

        — Eu gosto dela.

        Madoc retomou a refeição sem responder, mas Astéria não deixou de notar o brilho avaliativo em seu olhar.

        Na outra ponta do salão, Vênus ainda os observava. Ela confiava em Nix, mas não nos assassinos. Não ainda.


       Depois da janta, os quatro estavam reunidos no tombadilho. A noite caía preguiçosa sobre o mar, tingindo as velas com um tom azul profundo. O som das ondas contra o casco do navio trazia uma cadência quase hipnótica, e uma brisa carregada de sal e ervas secas agitava os cabelos e pensamentos.

    Lucius, encostado no mastro com os braços cruzados, foi o primeiro a falar:

    — E agora? Vamos pra onde?

    Nix, sentada sobre um barril, os pés descalços balançando no ar, parecia absorver a pergunta antes de responder. Havia algo de calmo em seu semblante, mas também distante — como se o pensamento já estivesse navegando longe.

    — Eu tava pensando em visitar os Jïa — disse, por fim. — Eles me acolheram quando eu fui expulsa do templo. Me ensinaram muita coisa… Depois de tudo, acho que só quero ficar com a minha família.

    Por um momento, o silêncio voltou. Mas não era o mesmo de antes. Era tenso, denso como uma tempestade a caminho.

    Mathew e Madoc trocaram um olhar rápido, e Madoc foi quem se adiantou, a voz baixa e cautelosa:

    — Nix… Você não soube?

    Ela franziu o cenho, o corpo ainda, como um animal que pressente o perigo.

    — Soube o quê?

    — Os Jïa estão sendo caçados — completou Mathew, o olhar duro como pedra. — Pela Igreja da Lua.

    Nix sentiu o peito esvaziar, como se o ar tivesse sido arrancado de dentro de si.

    — Por quê?

    — Porque eles seguem Mori — explicou Madoc. — A Senhora do Sol. A Igreja declarou que é heresia. Estão queimando caravanas. Levando os mais velhos para interrogatórios. Alguns sumiram.

    Ela não respondeu. Apenas baixou os olhos, os dedos apertando o tecido das calças como se tentassem agarrar alguma firmeza.

        Se levantou e caminhou em direção ao cais. Seu semblante era inabalável, mas havia algo em sua postura — na rigidez dos ombros, no jeito como os punhos se fechavam ao lado do corpo — que revelava o que não dizia em palavras.

        Porque, no fundo, doía.

    A cabeça girava, um turbilhão de memórias misturando-se às emoções. O templo havia sido o primeiro lugar onde ela sentira pertencimento. Lá, aprendeu a cantar. Lá, riu com Fallon debaixo da luz das velas. Lá, foi acolhida — até não ser mais.

    Pensou na caçada.

    Pensou em Fallon, com os olhos vazios e a voz cortante.

    Pensou em Zander.

    E agora… os Jïa.

    Tudo o que amava, destruído ou ameaçado por um lugar que um dia também a amou.

    Ela tinha todos os motivos para odiar. Para querer ver o templo arder. Mas…

    Ela não conseguia.

    Porque parte dela ainda lembrava o cheiro do incenso nas madrugadas frias. Os dedos carinhosos das monjas trançando seus cabelos. O riso abafado de Fallon entre os bancos de pedra. Lembrava-se do bem — e esse bem era o que doía mais.

    Nix passou os dedos pelos olhos, tentando conter a umidade antes que ela se tornasse lágrima. Ergueu a cabeça, olhando para a garrafa mais próxima. Não pegou. Apenas ficou ali, respirando fundo, tentando se lembrar de quem era… e no que estava se tornando.

    Ela não sabia, ainda, o que faria. Mas sabia de uma coisa: ninguém mais ia tocar na família dela.

    Nem o templo. Nem a lua. Nem o destino.

        O lugar que um dia chamou de lar. As pessoas que um dia chamou de amigos. Agora, todas queriam sua morte. Ela não voltou para o navio aquela noite, fez um visita a Amarílis no cabaré, atrás de álcool para secar as lágrimas.

        A brisa salgada da madrugada agitava suavemente as velas do Semente do Caos quando um homem de cabelos longos e cacheados, tingidos de um azul intenso como o oceano sob o sol, pisou no convés. Seus olhos âmbar, preguiçosos e atentos ao mesmo tempo, percorreram a embarcação com um ar de aprovação silenciosa. Vestia roupas leves, apropriadas para uma viagem marítima, e carregava uma mala de couro surrada, os dedos bronzeados firmes na alça.

        — Fizeram um bom navio — comentou, sem se dirigir a ninguém em particular. O tom era calmo, quase indiferente, mas carregava um quê de sinceridade.

        Sem esperar resposta, caminhou com passos lentos e confiantes até a cabine do capitão. A porta rangeu suavemente quando ele a abriu, e, sem cerimônia, o homem simplesmente entrou e se jogou sobre a cama, exalando um suspiro satisfeito antes de fechar os olhos.

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