O Cais das Lágrimas ainda respirava o lamento noturno quando Amarílis entrou silenciosa, seus pés descalços evitando as garrafas de rum e vinho esquecidas por Nix na noite anterior. O ar salgado misturava-se ao cheiro ácido do líquido que escorria entre as pranchas podres do porto, e a névoa matinal tingia o ambiente de um cinza fantasmagórico. Nix estava de bruços na cama de Amarílis, a cauda em forma de ponteiro de relógio enrolada em seu tornozelo como uma âncora involuntária. Seus óculos repousavam no chão, ao lado de uma garrafa vazia de rum etiquetada com um adesivo de caveira sorridente.  

    — Acorda, gatinha. O sol nem nasceu, mas o mundo já está pronto para te caçar — disse Amarílis, equilibrando um copo de líquido amarelo sobre um criado mudo.  

    Nix grunhiu, enterrando o rosto no travesseiro. A voz saiu abafada:  

    — Se você trouxe café, eu te perdôo por existir. Se não, vou te transformar num sapo.  

    — Melhor que café. Remédio para ressaca. — Amarílis sacudiu o copo, e o líquido borbulhou, exalando um aroma doce de mel e absinto.  

    Nix sentou-se aos trancos, esfregando os olhos turquesa inchados. A dor latejante na testa fazia seu estômago embrulhar. Agarrou o copo com desconfiança, mas o cheiro adocicado a convenceu a engolir um gole. Imediatamente, tossiu, quase cuspindo o líquido.  

    — Isso é álcool puro, sua maluca! — Nix tossiu de novo, apontando para Amarílis com a cauda.  

    A dançarina riu, sentando-se na beirada da cama com graça felina:  

    — Claro que é. Funciona sempre comigo. Bebida cura bebida, é a lei do universo.  

    — Você é uma alcoólatra com diploma em pseudociência — Nix revirou os olhos, mas tomou outro gole, desta vez preparada para a ardência.  

    Amarílis inclinou-se para frente, o brilho brincalhão em seus olhos dando lugar a uma seriedade rara:  

    — E você? Melhorou?  

    A pergunta pairou no ar como um corte de faca. A noite anterior voltou em flashes: Nix, embriagada de raiva e rum, quase incendiando um bar inteiro quando um marinheiro de Spades a chamou de “abominação”. Ela se lembrava de ter sido arrastada para fora do local por Kaelena, e também do olhar de desespero de Fallon em seus sonhos — sempre presa, sempre distante.  

    — Fora a cabeça querendo explodir, estou ótima — mentiu Nix, ajustando os óculos no nariz com um movimento automático.  

    Amarílis não pressionou. Em vez disso, colocou um comprimido azul-claro na mesa de cabeceira:  

    — Toma isso depois. Neutraliza toxinas… de verdade.  

    Antes que Nix pudesse responder, passos firmes ecoaram na escada. Kaelena desceu ao quarto, já vestindo o gibão de malha prateada. Seus longos cabelos negros estavam presos em um rabo de cavalo austero, e o símbolo do Templo da Lua — uma lua minguante que mais parecia um sorriso — brilhava em sua capa.  

    — Irmã, ajuda com a armadura? — pediu Kaelena, segurando o peitoral gravado com runas de proteção. Sua voz era suave e rouca de alguém ainda não cem por cento acordada.  

    Amarílis levantou-se, ajustando as correias de couro no ombro da irmã com mãos hábeis. Enquanto trabalhava, sussurrou algo em um idioma antigo, e as runas cintilavam em resposta — uma magia psíquica suave, quase imperceptível, magia de localização.  

    — Pronta para outra rodada de salvar o mundo? — provocou Nix, vestindo seu casaco de couro remendado.  

    — Pronta para evitar que você destrua ele — respondeu Kaelena, sem sorrir.  

    Nix engoliu o comprimido e levantou-se, ignorando a vertigem, seguindo as irmãs até a porta da casa.

    — Vamos — disse Kaelena, abrindo a porta para a névoa. — Quanto mais cedo sairmos deste lugar, melhor.  

    Nix hesitou por um segundo, os olhos fixos no líquido tóxico que gotejava entre as tábuas do cais. “Sonhos abandonados”, pensou. “Assim como eu.”  

    Amarílis tocou seu ombro, quebrando o devaneio:  

    — Ei. O caos pode esperar, mas o café do capitão não. Vênus fez pão de alho.  

    Nix sorriu, um sorriso que não chegou aos olhos, e seguiu Kaelena para o porto. Enquanto caminhavam, o eco de vozes distantes chegava da cidade — gritos de caçadores de recompensas, o zumbido de moscas varejeiras. O Cais das Lágrimas não perdoava aqueles que ousavam ficar muito tempo.  

    E Nix, mais do que ninguém, sabia que era hora de partir.  

    O caminho até o navio era uma trilha estreita entre armazéns abandonados, onde o líquido tóxico escorria das telhas como se as próprias estruturas chorassem. A névoa grudava nas roupas de Nix e Kaelena, mas não abafava o som das ondas batendo contra pilares carcomidos, nem o farfalhar dos ratos de Spades fugindo da luz do amanhecer.  

    Kaelena caminhava ao lado de Nix, sua armadura tilintando suavemente a cada passo. Seus olhos, fitavam o horizonte como se buscassem respostas no nascer do sol.  

    — Como ela está?

    — Ela está… dedicada — começou Kaelena, quebrando o silêncio. — Fallon passa dias no altar do Templo da Lua, rezando por almas que nem sabem que existe. Às vezes, esquece de comer.  

    Nix mordeu o interior da bochecha, sentindo a cauda se enrolar em seu braço como uma cobra protetora.  

    — Levo pão de mel e chá de ervas. Ela aceita, mas só depois que eu digo que é oferenda sagrada. — Kaelena sorriu, um gesto breve e triste. — Mas há algo mais.  

    Nix parou, os óculos refletindo o vermelho do céu.  

    — Mais?  

    — Um naga. — A paladina baixou a voz, mesmo não havendo ninguém por perto além de sombras. — Cabelos negros como obsidiana, olhos verdes que brilham no escuro. Ele visita Fallon todas as noites. Amarílis diz que o conhece, é um assassino da Guilda das Sombras de Érebo… mas ele lhe leva isso.  

    Kaelena tirou do bolso um embrulho de papel prateado, desdobrando-o para revelar um pedaço de chocolate, meio derretido.  

    — Chocolate? — Nix arregalou os olhos.  

    — E frutas cristalizadas, balas de mel… coisas que ela adorava quando criança. — Kaelena embrulhou o doce novamente. — Ele a chama de “Estrela do Cais” e insiste para que ela coma. Fallon ri dele. Riu, Nix. Não a vi rir assim desde…  

    — Desde que eu fui expulsa do Templo, Morfeus me contou — completou Nix, a voz rouca.  

    Kaelena assentiu.  

    — Fique de olho nele — pediu Nix, os dedos apertando o embrulho até amassá-lo. — Se ele machucá-la…  

    — Já estou vigiando. — Kaelena colocou uma mão enluvada no ombro de Nix. — Mas cuidado. Ele não é como os outros assassinos. Move-se como fumaça e desaparece nas sombras. Até os guardas do Templo não o veem.  

    Nix soltou um riso seco.  

    — Ótimo. Mais um encantador de serpentes para minha coleção.  

    Chegaram à beira do cais, onde Semente do Caos ancorava, seu casco pulsando em ritmo lento, como um coração. No convés, Panacéia estava sentada no parapeito, um longo cachimbo de prata entre os dedos. A fumaça que exalava era azul-turquesa e cheirava a jasmim e metal queimado.

    — Partimos em cinco minutos, garota! — gritou Panacéia, apontando o cachimbo para Nix. Suas asas translúcidas, escondidas sob um xale remendado, tremeluziam. — E você, Kaelena, diga àquela irmã teimosa que meu guisado de algas está melhor que as porcarias sagradas do Templo.  

    Kaelena sorriu, genuíno pela primeira vez na manhã.  

    — Farei. Cuide dela, tia.  

    — Ela é quem precisa cuidar de mim! — Panacéia deu uma tragada, soltando anéis de fumaça que se transformaram em borboletas azuis. — Agora vá, paladina. Sua lua está te esperando.  

    — Desde quando vocês se conhecem? — perguntou a felina.

    Enquanto Kaelena se afastava, Nix subiu a prancha de embarque, sentindo o peso da conversa grudar em seus ossos. Panacéia a puxou para sentar ao seu lado, oferecendo o cachimbo. Nix recusou com um gesto.  

    — Desde ontem, ela veio avisar que você estava bem. — Panacéia cuspiu uma baforada que formou a silhueta de um gato sorridente no ar.  — Então, onde você se enfiou essa noite, garota? 

    Nix encostou na amurada, os dedos apertando a madeira pulsante do casco. A cauda enrolou-se em sua perna, fria e protetora.  

    — Bebendo. Quase comecei uma guerra. O de sempre.  

    Panacéia soltou um suspiro que carregava séculos de decepção.  

    — Você não é sua mãe, Nix. Não precisa afogar os fantasmas no álcool. — A fada finalmente olhou para ela, seus olhos vermelhos brilhando como faróis. — Prometa que não vai—  

    O som foi quase imperceptível: um sussurro cortando o ar. Nix só teve tempo de gritar antes que a flecha atingisse Panacéia no ombro. A ponta de ébano, encharcada em veneno de pesadelo, cravou-se com um estalo seco.  

    — TIA!  

    O grito de Nix ecoou como um trovão. A fada caiu de joelhos, a fumaça do cachimbo transformando-se em serpentes negras que se dissiparam ao tocar no líquido tóxico que escorria pelo convés. Do cais, figuras emergiram da névoa — assassinos das Sombras de Érebo, vestidos com armaduras de escamas de obsidiana, máscaras de prata cobrindo seus rostos. Eles escalaram o casco com ganchos afiados, silenciosos como aranhas.  

    Nix desenhou uma adaga de caos do ar, sua lâmina feita de pura escuridão pulsante.  

    — Vocês vão morrer por isso!  

    A luta foi breve e brutal. Nix esfaqueou, cortou e retorceu-se entre os ataques, sua magia caótica distorcendo o espaço ao redor. Um assassino caiu com a garganta aberta; outro gritou quando a cauda de Nix o atingiu como um chicote, arrancando-lhe a máscara. Mas quando ela mirou o coração do terceiro, Panacéia, sangrando e pálida, agarrou seu pulso.  

    — Não! — a fada tossiu, sangue negro escorrendo do ombro. — Eles são só sombras… não vale sua alma…  

    Nix hesitou. Foi o suficiente.  

    O som de passos apressados encheu o convés. Vênus surgiu da cozinha, uma panela de ferro em cada mão, chamas dançando em sua língua de dragão. Mathew desceu do céu como um míssil, garras de ave de rapina rasgando as máscaras de dois assassinos enquanto equilibrava uma sacola de pães nos braços. Madoc, emergindo das águas como um demônio aquático, arrastou um inimigo para as profundezas com um jato de água putrefata.  

    — Zarpem! — Nix gritou, segurando Panacéia contra o peito. — Agora!  

    Mas o navio não se mexeu. Ganchos de ébano prendiam-no ao cais, e assassinos continuavam a subir, infinitos como formigas. Foi quando Asteria, que até então estava no proprio quarto, saiu furiosa do quarto.  

    — Que barulheira é essa — murmurou ela, tirando o capuz que escondia seu rosto.  

    Seus olhos brilharam como faróis abissais, e sua pele começou a rachar, revelando tentáculos negros e viscosos por baixo. Com um rugido que fez o mar tremer, Asteria saltou da amurada. Ao tocar a água, seu corpo expandiu-se, rompendo roupas e carne humana, até que um Kraken colossal emergiu, seus tentáculos grossos como torres envolvendo o navio.  

    — Asteria…? — Nix sussurrou, incrédula.  

    O monstro — porque era um monstro agora — ergueu o Semente do Caos como se fosse um barco de brinquedo, suas ventosas deixando marcas luminosas no casco de Éter.  

    — Encontrem-me na Baía dos Sussurros — ecoou a voz de Asteria, agora uma sinfonia de mil sussurros oceânicos. — Se sobreviverem.  

    Antes que alguém respondesse, ela arremessou o navio. O mundo virou de cabeça para baixo; o céu misturou-se ao mar, e a água tóxica do mar do cais explodiu em gotas douradas sob a luz do sol. Quando o navio finalmente estabilizou, já estava em mar aberto, quilômetros distante do porto.  

    Nix correu para o tombadilho, segurando-se na amurada. No horizonte, o Cais das Lágrimas era uma mancha escura, envolta em tentáculos e labaredas. Asteria, em sua forma verdadeira, lutava contra dezenas de assassinos, esmagando navios inteiros com um golpe. Por um instante, Nix jurou ver um olho colossal piscar para ela entre os jatos de água e sangue.  

    — Essa é minha carpinteira! — Comemorou Panacéia, apoiada em Vênus, seu sangue envenenado já escurecendo o convés. 

    Nix correu até o seu quarto atrás dos primeiros socorros. O quarto de Nix era um caos: mapas rasgados pendurados nas paredes, armas empilhadas em cantos escuros e uma rede de corda balançando sob o teto, onde agora jazia um intruso. A luz do amanhecer filtrada pela janela iluminava os cabelos azuis do desconhecido, que caíam em cascatas de cachos e tranças delicadas, como rios congelados sob a lua. Seu rosto era esculpido em linhas nobres, a pele dourada pelo sol, e os cílios longos projetavam sombras sobre maçãs do rosto altas. Respirava calmamente, como se o navio fosse seu berço.  

    Nix congelou, a mão já fechando sobre uma das varias pistolas que tinha no quarto. “Quem diabos…?” Pensou, os olhos turquesa percorrendo o corpo dele — ombros largos, mãos grandes calejadas de marinheiro. “Porra, e ele é gostoso”, admitiu mentalmente, antes de sacar a pistola de pólvora estelar da mesa.  

    — Acorde. Agora — ordenou, pressionando o cano frio contra a têmpora dele.  

    Os olhos do intruso se abriram lentamente, revelando íris âmbar — não um âmbar comum, mas cristalino, como ouro líquido sob luz de farol. As pupilas dilataram ao focar em Nix, e um sorriso desarmante surgiu em seus lábios, tão natural quanto a maré. A felina hipnotizada retribuiu o sorriso inconcientemente.

    — Que devo à presença dessa maravilhosa beldade no meu navio e no meu quarto? — perguntou ele, voz rouca de sono, mas carregada de uma confiança que irritou Nix instantaneamente.  

    Ela riu, um som curto e afiado.  

    — Seu navio? Seu quarto? Acho que o álcool apagou sua memória, marujo. — Aproximou a arma, fazendo-o sentar na rede. — Quem é você?  

    Ele ergueu as mãos em rendição, mas o sorriso permaneceu.  

    — Lucius, capitão do Bruma de Prata. E você… — Olhou em volta, notando os pertences de Nix. — Deve ser a nova cozinheira?  

    — Capitã — corrigiu Nix, os dedos já no gatilho. — E você está a um passo de virar isca para tubarão.  

    Antes que ele respondesse, a porta se abriu com um estrondo. Madoc entrou, encharcado e com uma faca ensanguentada na mão.  

    — Capitã, Panacéia está piorando. Precisamos do… — Parou ao ver Lucius, erguendo a faca. — Intruso.  

    — Relaxa, é só um náufrago confuso — Nix cutucou Lucius com a arma, jogando o kit de primeiros socorros para Madoc. — Cuide dela. Eu resolvo isso.  

    Madoc hesitou, estudando o rosto do intruso.  

    — Capitã… esses olhos. Eles são…  

    — Agora, Madoc!  

    O homem-peixe saiu, mas não sem lançar um olhar suspeito a Lucius. Nix virou-se novamente para o prisioneiro, que agora observava tudo com curiosidade divertida.  

    — Você tem dois segundos para explicar como veio parar aqui — disse ela, puxando-o pela gola da camisa.  

    — Náufrago, lembra? — Ele deixou-se ser arrastado, como quem esperava receber um beijo. — O Bruma afundou no Mar das Miragens. Nadei até esse… encanto de navio. — Olhou em volta, fazendo uma careta. — Precisa de reformas.  

    Nix ignorou o comentário, amarrando-o no mastro principal com cordas de cânhamo encantadas. Lucius não resistiu, mas sua expressão mudou ao ver o sangue de Panacéia no convés.  

    — Ferida de flecha de Érebo? — perguntou, sereno pela primeira vez. — O veneno deles mata em 12 horas.  

    — Como você sabe isso? — Nix apertou as cordas, fazendo-o cerrar os dentes.  

    — Sou… bem-viajado. — Seus olhos âmbar brilharam, e por um instante, Nix viu algo neles finalmente o reconhecendo como o príncipe do reino. 

    O navio sacudiu, afastando-se definitivamente do Cais das Lágrimas. Enquanto Panacéia gritava por mais conhaque abaixo do convés, Nix ficou de frente para Lucius, os braços cruzados.  

    — Se mentir, juro que vou…

    — Me jogar aos tubarões? Já ouvi. — Ele inclinou a cabeça, estudando-a. — Mas você não vai.  

    — E por que não?  

    — Porque preciso de você tanto quanto você precisa de mim, Capitã. — Seu sorriso voltou, mas agora com uma sombra de seriedade. — Se quer salvar sua companheira, vai precisar do antidoto. E adivinhe só… — Inclinou-se para frente, as cordas rangendo. — Sei fazer ele.  

    Nix segurou o queixo dele, forçando-o a encará-la. Os olhos âmbar não piscaram.  

    — Se estiver mentindo…  

    — Vou nadar de volta ao inferno sozinho. Prometo.  

    Ela soltou o queixo dele, desconfiada, mas intrigada. Enquanto se afastava, Lucius gritou:  

    — Ah, e Capitã?  

    — O quê?  

    — Seu quarto é um caos. Precisa de um toque feminino.  

    Nix revirou os olhos, mas não pôde evitar um meio-sorriso.

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