Proximo cap dia 25!

    Lucius ajustou o casaco e puxou as luvas, observando o reflexo no espelho embaçado da cabine. Era ele, mas ao mesmo tempo, não era.

    A ilusão de Nix era perfeita. Cabelos negros bagunçados, olhos turquesa como o mar profundo, a postura insolente de quem desafiaria até um deus. Mas ele ainda era ele por dentro, sentindo o desconforto da magia moldando sua aparência.

    — Não se esqueça — veio a voz rouca de Nix, escondida sob um amontoado de cobertores, a febre ainda evidente em sua pele pálida. — Estou observando. Se fizer merda, eu faço questão de te empurrar do barco eu mesma.

    Lucius soltou um suspiro exagerado, balançando a cabeça.

    — Sim, capitã. Como se eu tivesse escolha.

    Nix abriu um meio sorriso antes de tossir, e ele soube que não deveria provocar mais.

    Com um último ajuste na gola da camisa, Lucius saiu da cabine e atravessou o convés. O vento carregava o cheiro salgado do oceano misturado ao aroma de madeira úmida e alcatrão. Matthew e Madoc que tinham menos intimidade com Nix o cumprimentaram sem suspeitar da troca, e ele seguiu até a cabine de Panacéia, batendo levemente antes de entrar.

    O interior da cabine oscilava suavemente com o balanço do navio, e o cheiro de pergaminho velho e ervas secas misturava-se ao ar salgado. Panacéia, confortável em sua rede, observava Lucius entrar com um olhar afiado enquanto mastigava com calma.

    — Não se deixe levar pela beleza dele — disse, apontando o talher na direção dele. — Eu sei que parece muito divertido bancar o príncipe encantado, mas somos piratas, Nix. E Lucius, bom… ele não é uma donzela em apuros.

    Lucius bufou, ajustando as bandagens no ombro da fada com mais força do que o necessário.

    — Primeiro: que nojo, tia. Segundo: por que você sempre assume que eu estou me apaixonando por qualquer um que aparece no navio?

    — Porque você é jovem, e eu tenho olhos — ela respondeu com um sorriso travesso. — E porque eu já estive nessa fase de achar que o mundo gira ao redor de caras bonitos e conversas misteriosas ao luar.

    Lucius cruzou os braços, forçando-se a parecer ofendido da maneira que achava que Nix reagiria.

    — Então você admite que já foi pior do que eu?

    Panacéia riu, inclinando-se para trás na rede.

    — Oh, com certeza. Mas eu tinha Andréa para me dar sermões sobre responsabilidade. Você tem a mim… que sou muito mais divertida e só te dou conselhos que você não quer ouvir.

    Ele suspirou, passando a mão pelo rosto. Fingir ser Nix já estava se tornando cansativo.

    — Olha, eu não vou me apaixonar por Lucius. Pode relaxar.

    — Hmm… se você diz… — cantarolou ela, claramente duvidando.  — Vamos precisar parar antes de seguir viagem. — Ela murmurou, testando a firmeza da atadura. — Há uma ilha artificial no caminho. Precisamos cumprimentar Mirana Lindell, a rainha pirata.

    Lucius ergueu uma sobrancelha.

    — Rainha pirata? Isso existe?

    — Claro que existe. Você acha que o mundo dos piratas é só caos e liberdade? — Panacéia riu, inclinando-se para pegar um pouco mais de comida. — Se fosse assim, já teríamos sido exterminados há séculos.

    Ela jogou o pergaminho na mesa e apontou para uma área do mapa.

    — Os piratas são mais parecidos com mercenários do que bandidos. Estamos divididos em dois grandes grupos: os ladrões e os aventureiros.

    Lucius cruzou os braços, interessado.

    — E qual é a diferença?

    Panacéia apontou para uma área do mapa marcada em vermelho.

    — Os ladrões vivem do saque. Atacam vilarejos, roubam nobres, invadem embarcações. São os que fazem a marinha nos caçar com tanta obsessão.

    Depois, moveu o dedo para outra região, marcada em azul.

    — Os aventureiros exploram o mar, a maioria sendo cartógrafos e sobreviveram fazendo entregas, transportando pessoas, desenterrando tesouros. Roubam quando precisa, mas não vive disso.

    — E Mirana? — Lúcius perguntou, curioso.

    — Ela mantém o equilíbrio. Todos os capitães reconhecidos pela irmandade deverão apresentar a ela. Isso garante que não sejamos tratados apenas como criminosos e que não nos matemos uns aos outros.

    Lucius passou a língua pelos dentes, absorvendo a informação.

    — Então a gente vai até essa ilha só para dizer “oi”?

    — Algo assim. — Ela murmurou — Ainda não somos nada. Por isso precisamos ir até Mirana. Para que a Irmandade nos reconheça oficialmente.

    Lucius passou a mão pelo queixo, pensativo.

    — E se ela não aceitar?

    Panacéia deu um sorriso malicioso.

    — Então vamos precisar convencê-la. E Nix pode ser muito convincente quando quer.

    Lucius não teve como discordar. Agora, ele só precisava sobreviver até lá sem estragar tudo.

    — Espera… como vc sabe que eu não sou a Nix? 

    — Primeiro, não se entregue assim tão fácil, e você fez o curativo direito.

    Lucius piscou, atordoado. Era um detalhe pequeno, mas fazia sentido. Nix parecia do tipo que lidava com os próprios ferimentos de qualquer jeito, sem muita paciência para algo tão enrolado quanto enfaixar um corte corretamente.

    Ele não conhecia Nix. Não de verdade. Até agora, tudo o que sabia vinha das palavras de terceiros — boatos, profecias e maldições sussurradas. Mas no pouco tempo que passou com sua tripulação, percebeu que essas pessoas não temiam a filha do Caos. Pelo contrário. Havia um respeito genuíno, às vezes irritado, às vezes afetuoso, mas sempre presente.

    Lucius seguiu pelo convés, forçando-se a agir com a mesma confiança despreocupada de Nix. Quanto mais tempo passava com a tripulação dela, mais percebia que cada um ali conhecia suas particularidades, e qualquer deslize poderia ser fatal para sua farsa.

    E então ele cruzou com Vênus.

    A dragão-de-komodo o avaliou com um olhar afiado, os olhos escuros brilhando com suspeita.

    — Hm. — Ela inclinou a cabeça levemente. — Lucius entrou no seu quarto ontem à noite, mas eu não o vi sair.

    Lucius congelou por um instante. Tinha que pensar rápido. Como Nix responderia a isso? Jogou um sorriso travesso no rosto, apostando na audácia.

    — Eu e a princesa nos divertimos.

    Vênus ergueu uma sobrancelha, cruzando os braços.

    — Então é isso? Você o acolheu porque queria um parceiro noturno?

    Lucius piscou, surpreso pela direção que a conversa tomou.

    — O quê?

    Vênus riu, claramente se divertindo.

    — Ah, não me olha assim. Desde o começo, ele flerta com você. Não é de se estranhar que tenha deixado o rapaz ficar.

    Lucius abriu a boca para negar, mas hesitou. Ele realmente tinha flertado com Nix antes de descobrir quem ela era. Para a tripulação, isso devia parecer óbvio.

    Vênus estreitou os olhos.

    — Além disso… comparado com os outros garotos, ele tem um corpo mais delicado. Pouca gente percebe, mas você sempre gostou desse tipo.

    Lucius sentiu o rosto esquentar e precisou tossir para disfarçar.

    — Tô começando a achar que você presta atenção demais em mim.

    Vênus sorriu de canto.

    — Eu apenas noto o que está na minha frente. E, no caso do Lucius, notei que você o aceitou sem nem hesitar. Isso me faz pensar…

    Ela inclinou a cabeça, observando-o com curiosidade genuína.

    — Por que acolheu os dois assassinos e essa princesinha?

    Lucius abriu a boca para responder, mas nada veio. Poderia inventar qualquer desculpa, mas nenhuma pareceria convincente o bastante.

    Então, apenas suspirou.

    — Não sei.

    Vênus piscou, surpresa.

    — Ah. Isso é novo. Mesmo as coisas mais imbecis, você sempre tem um motivo.

    Ela riu baixinho e deu um tapinha no ombro dele.

    — Bem, de qualquer forma, aproveita. Ele é bonitinho.

    Lucius soltou um suspiro pesado quando Vênus se afastou. A conversa deveria ter acabado ali, mas uma pergunta permaneceu em sua mente.

    Por que Nix realmente o acolheu?

    Lucius voltou para o quarto carregando um prato de comida e um copo d’água, mas parou ao cruzar a porta. Nix estava na cama, os lençóis amarrotados e o rosto úmido de suor. Sua respiração era pesada, e mesmo dormindo, sua expressão se contorcia em desconforto.

    A febre havia piorado.

    Ele praguejou baixinho, pousando a comida na mesa antes de se ajoelhar ao lado da cama. Tocou a testa dela com as costas dos dedos e sentiu o calor queimando sua pele.

    — Isso não é normal…

    Lucius conhecia febres. Tinha tratado muitas. Mas havia algo estranho na forma como o corpo dela reagia, como se algo estivesse drenando sua energia. Ele passou os olhos pelo quarto, tentando entender o que poderia estar causando aquilo.

    Foi então que notou um detalhe.

    Os móveis estavam ligeiramente deslocados. Pequenos objetos caídos no chão. E o mais estranho: algumas runas, entalhadas de forma rudimentar na madeira do casco, brilhavam fracamente.

    Seu olhar se voltou para Nix, e então para o chão do navio.

    Era como se ele estivesse… sugando algo dela.

    Um arrepio percorreu sua espinha. Ele não era especialista em magia, mas sabia reconhecer um problema quando via um. Nix não estava simplesmente doente—ela estava sendo drenada.

    — O maldito navio está te matando, não está?

    Lucius soltou um suspiro, esfregando o rosto.

    Ele não deveria se importar tanto. Mal a conhecia. E, no entanto, ver Nix daquele jeito o incomodava mais do que deveria. Sem pensar, pegou um pano limpo, molhou na bacia de água fria e passou com cuidado pela testa dela.

    — Ei… — murmurou, observando-a de perto. — Você precisa acordar e me contar como consertar essa bagunça.

    Nix gemeu baixinho, virando o rosto em direção ao toque, como se buscasse algo familiar. Lucius engoliu em seco, sentindo um calor estranho no peito. O navio rangeu e ele franziu o cenho, levantando os olhos da bacia d’água. O barulho parecia diferente do balanço comum das ondas—mais profundo, como se algo se movesse dentro da madeira.

    Então ele viu.

    Finas raízes escuras começavam a se entrelaçar pelas paredes da cabine, serpenteando pelo chão em direção à cama onde Nix jazia inconsciente. Elas se moviam como dedos buscando algo, e antes que Lucius pudesse reagir, uma delas se enrolou ao redor do pulso da pirata.

    — Merda! — Ele avançou, tentando puxá-la, mas a raiz apenas se apertou mais, subindo pelo braço dela. Outras emergiram do chão, prendendo os tornozelos de Nix. A pele dela parecia brilhar fracamente, como se estivesse sendo drenada de alguma energia invisível.

    Lucius não sabia o que estava acontecendo, mas o instinto gritou para que ele a tirasse dali.

    Sem pensar, pegou sua adaga e tentou cortar as raízes, mas assim que a lâmina tocou a superfície retorcida, uma descarga elétrica percorreu seu corpo. Ele se afastou com um grunhido, sentindo um formigamento intenso na mão.

    As raízes tremularam, como se tivessem percebido sua presença.

    Então, se lançaram sobre ele.

    Lucius tentou recuar, mas uma delas agarrou sua perna, e outra se enrolou ao redor de seu pulso, puxando-o para mais perto de Nix. Um brilho dourado surgiu ao redor deles, e uma sensação avassaladora de exaustão o atingiu. Como se algo estivesse sugando não apenas sua energia, mas sua própria consciência.

    O mundo girou.

    Lucius sentiu as pernas cederem. A última coisa que viu antes de tudo escurecer foi o rosto de Nix, pálido e imóvel.

    Quando abriu os olhos novamente, não estava mais na cabine. 

    O cheiro de sal e madeira foi substituído pelo aroma familiar de incenso e velas. O ambiente ao redor parecia feito de pedra antiga, banhada por uma luz azulada que vinha de vitrais altos.

    Um templo.

    Lucius se virou, tentando entender onde estava. O corredor era amplo, com colunas esculpidas em espirais, e símbolos lunares enfeitavam as paredes.

    Foi quando ele ouviu.

    Risos.

    Duas figuras passaram correndo por ele, pés descalços ecoando pelo mármore frio. Vestiam túnicas simples, mas o que realmente chamou sua atenção foi outra coisa.

    Elas eram idênticas.

    Mesma altura, mesmo cabelo castanhos e olhos turquesa vividos.

    Nix…?

    Lucius ficou paralisado. Não fazia sentido. Como podia haver duas?

    Uma delas olhou para trás por um segundo, e ele viu o brilho travesso nos olhos cor de âmbar.

    A outra puxou sua mão, rindo.

    — Vem logo, Nixoria! Vamos nos atrasar!

    Nixoria? Lucius prendeu a respiração.

    Então, percebeu.

    Estava vendo uma memória.

    O tempo parecia fluir de maneira estranha dentro daquela lembrança. Lucius não conseguia sentir seu próprio corpo, apenas observar—como se fosse um espectador invisível dentro do passado de Nix.

    Nix e Fallon corriam pelos corredores do templo, pés descalços contra o mármore frio. O riso delas ecoava pelas paredes enfeitadas com tapeçarias bordadas em tons de azul e prata. Eram pequenas, talvez sete ou oito anos, e se moviam com a energia inquieta de crianças que nunca temeram aquele lugar.

    O templo da Lua era mais do que um local de adoração—era um lar.

    As sacerdotisas, vestidas com mantos brancos e longos véus, sorriam ao vê-las passar. Algumas balançavam a cabeça com afeto, outras tentavam, sem sucesso, chamá-las de volta à ordem.

    — Meninas, ao menos terminem o café da manhã antes de saírem correndo! — exclamou uma delas, segurando uma bandeja com tigelas de mingau.

    — Depois! — Fallon respondeu entre risadas, puxando Nix pela mão.

    Lucius observou quando elas saíram para um dos jardins internos do templo, onde um pequeno lago refletia o céu nublado daquela manhã. Uma sacerdotisa idosa estava sentada em um banco de pedra, trançando uma coroa de flores.

    — Venham cá, pequenas luas — chamou, abrindo os braços.

    As gêmeas correram até ela, jogando-se no colo da anciã sem hesitar.

    Lucius sentiu um aperto no peito.

    Por todo o templo, as duas eram amadas. Ele via isso nos gestos ternos das sacerdotisas, na forma como suas presenças eram recebidas com carinho. Elas não eram tratadas como estranhas, mas como bênçãos.

    Ainda assim, algo chamava sua atenção.

    Os cabelos castanhos de Nix e Fallon balançavam enquanto conversavam animadamente com a anciã, mas Lucius percebeu algo crescendo entre os fios. Pequenos chifres, ainda curtos e arredondados, mal despontando sobre suas testas.

    Ele franziu a testa, Nix não tinha chifres.

    — Vovó Mira! — Fallon chamou, segurando uma das flores da coroa. — Quando vamos crescer?

    A sacerdotisa sorriu, ajeitando uma mecha do cabelo dela.

    — Tudo tem seu tempo, minha querida.

    Nix bufou.

    — Mas a gente já cresceu! Olha só! — Ela apontou para o próprio chifre minúsculo, inflando o peito com orgulho.

    A anciã gargalhou, e Fallon deu um empurrão leve na irmã. As duas começaram a brincar, girando na grama como se fossem o próprio vento.

    Lucius quase se esqueceu de que aquilo era uma memória, ve-la ali brincando tão felizes como se nada de mal pudesse acontecer.

    Até que a atmosfera mudou.

    Uma sacerdotisa de véu dourado surgiu na entrada do jardim. Seu rosto estava calmo, mas sua postura era rígida.

    — Nixoria, Fallon. — A voz dela era firme. — Venham comigo.

    As gêmeas pararam de brincar. O sorriso de Fallon vacilou, e Nix franziu o cenho, cruzando os braços.

    — Mas por quê?

    A sacerdotisa hesitou por um momento, então suavizou o tom:

    — O sumo-sacerdote deseja vê-las.

    As duas meninas entreolharam-se, e Fallon segurou a mão de Nix. Então, sem questionar, seguiram a sacerdotisa.

    Lucius tentou as acompanhar sendo barrado por um véu fino e então estava de volta ao começo da memória.

    O cheiro suave de incenso e velas perfumadas pairava no ar, misturado ao aroma do pão recém-assado que escapava da cozinha do templo. O mármore sob os pés descalços das gêmeas era frio, mas não desagradável, e a luz do sol filtrava-se pelos vitrais azuis e prateados, pintando o chão com reflexos cintilantes.

    Nix e Fallon corriam pelos corredores amplos, os risos vibrando como um canto alegre. Cada vez que passavam por uma sacerdotisa, recebiam olhares cúmplices e sorrisos indulgentes.

    — Nix! Fallon! — Uma das mulheres, uma sacerdotisa de olhos gentis, surgiu de uma sala lateral, segurando um prato coberto por um pano. — Não esqueçam suas frutas!

    As meninas diminuíram o passo, ainda rindo. Fallon girou nos calcanhares e pegou o pano, revelando um punhado de figos maduros e tâmaras douradas.

    — Obrigada, irmã Elise! — disse ela com doçura, pegando um pedaço e entregando outro para Nix.

    A mulher afagou os cabelos de Fallon e beliscou de leve a bochecha de Nix.

    — Mais devagar nos corredores, pequenas luas, ou acabarão derrubando alguém de susto.

    Nix riu, dando um passo para trás antes que outra bochecha fosse beliscada.

    — Como se a gente não fosse mais rápida que todo mundo aqui!

    A irmã Elise suspirou, mas sua expressão não escondia a diversão.

    — Vão, vão. Antes que alguém ache trabalho para vocês.

    E com isso, as duas saíram em disparada, os chifres curtos e macios reluzindo sob a luz.

    No jardim interno, os galhos de uma grande figueira se estendiam como braços acolhedores. Sob sua sombra, um grupo de aprendizes do templo praticava cânticos sagrados, enquanto, mais ao fundo, um acólito jovem varria as folhas secas com movimentos pacientes.

    As gêmeas desviaram da área de estudos e correram até o lago raso no centro do pátio. Fallon parou na beirada, olhando seu reflexo na água.

    — Nossos chifres tão crescendo rápido. — Ela inclinou a cabeça de lado, comparando o próprio par de pequenas protuberâncias com as de Nix.

    Nix estufou o peito e ergueu o queixo.

    — Eu já disse, os meus vão ser os maiores.

    — Duvido.

    — Vai ver só!

    Sem aviso, Nix mergulhou os pés na água e chutou um punhado de gotículas brilhantes na irmã. Fallon gritou em protesto e revidou, dando início a uma pequena guerra de respingos.

    — Vão assustar os peixes! — Uma voz grave interrompeu, e as duas se viraram para ver um dos cozinheiros do templo, um homem de rosto arredondado e mãos fortes. Ele carregava uma cesta de ervas e olhava para as gêmeas com uma falsa expressão severa.

    Nix deu um pulo para fora da água, os olhos brilhando de travessura.

    — Não são os peixes que a gente quer assustar. É você, tio Loran!

    Fallon sufocou uma risadinha, enquanto o homem arqueava uma sobrancelha grossa.

    — Ah, é? Então vamos ver quem assusta quem!

    Antes que pudessem reagir, ele largou a cesta e avançou na direção delas. Fallon correu primeiro, mas Nix hesitou um segundo a mais e acabou capturada, sendo levantada no ar como um saco de batatas.

    — Ah, não! Fallon, me salva! — gritou ela, fingindo desespero.

    — Você disse que era a maior! — Fallon respondeu entre risadas, correndo para trás do banco onde a sacerdotisa anciã estava sentada.

    O homem girou Nix uma vez no ar antes de colocá-la de volta no chão.

    — Agora se comportem, ou amanhã o pão não vai ter mel.

    — Não! — As duas exclamaram ao mesmo tempo, e o homem riu, voltando ao seu trabalho.

    A sacerdotisa idosa, vovó Mira, observava tudo com olhos ternos. Com dedos hábeis, finalizou uma pequena coroa de flores brancas e a colocou sobre os cabelos bagunçados de Nix.

    — Pequenas luas travessas — murmurou ela, afagando o rosto de Fallon logo em seguida. — Sempre trazendo vida a este templo.

    Fallon sorriu e se inclinou para a sacerdotisa, enquanto Nix ajeitava a coroa e girava nos calcanhares. Lucius sentia a verdade vibrando naquela cena.

    Elas eram queridas.

    O templo era um lar.

    Mas então, como tudo desmoronou?

    Antes que pudesse pensar mais, um véu dourado surgiu na entrada do jardim. A sacerdotisa de postura rígida, mas voz gentil.

    O chamado.

    Nix e Fallon hesitaram.

    Depois, juntas, seguiram-na.

    Lucius tentou se mover, mas a lembrança reiniciou.

    O cheiro de incenso, o toque frio do mármore, os risos.

    De novo.

    Lucius apertou os olhos, tentando agarrar qualquer resquício de controle sobre aquela lembrança. O tempo oscilava como ondas, e ele já não sabia se ainda era um espectador ou algo mais.

    As imagens giraram ao seu redor — o templo, as sacerdotisas, os risos — mas ele não permitiu que a memória o prendesse de novo. Dessa vez, procurou ativamente pelo véu que o barrava, aquela barreira que o impedia de ver o que havia além da felicidade ilusória.

    E então, ele viu.

    Um ponto na realidade distorcida. Um fio invisível puxando tudo para trás.

    Lucius agarrou a sensação e rasgou a membrana. O mundo se fragmentou. Escuridão. O cheiro de sangue e podridão encheu seus pulmões antes mesmo de sua visão se ajustar. O ar era úmido, pesado, impregnado com umidade e dor.

    O chão sob seus pés não era mais mármore, mas pedra bruta, rachada e suja. Correntes pendiam das paredes, algumas enferrujadas, outras manchadas com algo que Lucius não queria identificar.

    E então ele viu.

    Duas garotas. 

    Idênticas às crianças alegres do templo, mas tão diferentes que o choque o fez hesitar. 

    Ambas estavam encolhidas em um canto escuro do calabouço. Fallon tremia, encolhida no colo de Nix, o rosto enterrado contra o ombro da irmã. Os pequenos chifres que antes coroavam suas testas não estavam mais ali — no lugar deles, restavam dois furos vermelhos, cicatrizados de maneira grotesca.

    Nix, mais velha agora, segurava a pequena Fallon com um aperto feroz, como se quisesse protegê-la do próprio mundo. Sua expressão era dura, mas os olhos estavam vermelhos, o rosto manchado de lágrimas secas.

    Lucius deu um passo à frente, sem pensar.

    — O que aconteceu com vocês?

    A Nix mais velha ergueu a cabeça, e os olhos turquesa se fixaram nele. Pela primeira vez, Lucius sentiu algo frio deslizar por sua espinha. 

    Ela não parecia surpresa por vê-lo ali.

    — Você não deveria estar aqui.

    A voz dela era rouca, cansada, cheia de algo que ele não conseguia nomear.

    Lucius tentou se aproximar, mas Nix se moveu rápido. Com um gesto abrupto, empurrou o ar entre eles—e de repente, o mundo ao redor explodiu em pedaços. 

    Luz. O cheiro de floresta invadiu seus sentidos. O canto distante de aves, o farfalhar de folhas ao vento.

    Lucius piscou, desorientado, antes de perceber onde estava agora. Uma clareira, cercada por árvores imensas. A relva macia sob seus pés, a umidade da manhã ainda presente no ar.

    E, bem diante dele, uma Nix mais jovem. Dez anos, talvez, segurando um rifle que parecia grande demais para seu corpo magro.

    Ao lado dela, uma mulher de asas de borboleta e expressão afiada.

    Andréa.

    Lucius ficou imóvel, observando enquanto a cena se desenrolava.

    A menina Nix respirou fundo, os dedos ajustando a posição da arma.

    Andréa, de braços cruzados, observava.

    — Você hesita demais — disse a mulher, o tom de voz firme, mas não cruel.

    — Eu só… — A garota mordeu o lábio, os olhos focados em algo à sua frente.

    Lucius seguiu seu olhar.

    Um cervo. Jovem, com pelos marrons claros e olhos gentis. Ele pastava sem perceber o perigo, alheio à menina de arma em punho.

    — Ele não fez nada — murmurou Nix.

    — E se fosse um inimigo? — Andréa questionou. — Se fosse um homem com uma faca?

    Nix franziu o cenho.

    — Isso não é um homem.

    — Mas um dia você terá que decidir em segundos. Atirar ou morrer.

    A respiração da menina vacilou.

    Lucius viu o conflito estampado no rosto jovem.

    Mas então, algo mudou.

    Andréa tocou o ombro dela, sua voz suavizando-se um pouco.

    — Ninguém gosta da primeira vez, Nixoria. Mas às vezes, a escolha não é nossa.

    A garota engoliu seco.

    Segurou o rifle com mais força.

    E puxou o gatilho.

    O som do disparo ecoou pela clareira, e o cervo caiu com um baque surdo contra a grama. Por um instante, o silêncio tomou conta do lugar. Nix, com apenas dez anos, manteve o rifle erguido por um momento antes de abaixá-lo devagar. Seu olhar fixo no corpo imóvel do animal olhos cheios de conflito.  Ela havia tirado uma vida, mas o rosto de sua tia estava cheio de orgulho, o que significava que ela havia feito algo bom certo. Certo?

    Lucius observava tudo, preso naquela memória.

    Mas então, a cena mudou. O sol estava mais alto, filtrando-se pelas copas das árvores. O cervo já não estava ali. Agora, uma Nix um pouco mais velha— treze anos, talvez mais —se movia entre as sombras da floresta, ágil e despreocupada.

    Ela ria.

    Saltava sobre raízes, desviava-se de galhos, os cabelos castanhos voando ao vento. Desta vez, ela não segurava um rifle, mas duas adagas curtas, equilibrando-as com destreza nos dedos.

    Lucius sentiu algo estranho no peito ao vê-la assim.

    Aquela não era a mesma garota que hesitara diante de um cervo indefeso.

    — Você não me alcança, pai! — Ela desafiou, lançando um olhar por cima do ombro.

    Uma figura grande e sombria moveu-se entre as árvores. Ele não conseguia vê-lo direito, mas algo em sua presença o fez lembrar do Cavaleiro Negro.

    Lucius deu um passo à frente, absorvendo os detalhes ao seu redor.

    Foi então que reconheceu a floresta.

    Aquelas árvores, aquela trilha… ele já estivera ali antes.

    A floresta do castelo.

    Lucius sentiu um arrepio subir por sua espinha.

    Se Nix esteve ali quando mais jovem… significava que ela era da nobreza e poderia conhecê-lo.

    Seguindo seu instinto, ele começou a caminhar na direção que conhecia.

    Pouco tempo depois, entre as árvores, avistou a estrutura imponente do castelo de Spades.

    Ele se moveu com cuidado, mantendo-se nas sombras. A curiosidade fervilhava dentro dele.

    Ao se aproximar mais, viu duas figuras paradas no terraço de pedra que se estendia da construção principal.

    Andréa.

    Ela estava ali, a mesma mulher que treinara Nix com o rifle, mas agora vestindo trajes formais, suas asas de borboleta cintilando sob a luz do dia.

    Diante dela, uma figura imponente trajando vestes pesadas.

    O rei.

    Lucius conteve a respiração.

    Mesmo na memória, mesmo sabendo que ninguém ali podia vê-lo, o peso da presença do rei o fez se encolher.

    Eles estavam discutindo.

    Ele se aproximou mais, tentando captar as palavras.

    — …uma aliança mais forte, Marquesa — a voz do rei era grave. — É a melhor opção para ambos.

    — O senhor me pede muito — Andréa rebateu, o tom ríspido.

    — Peço apenas o que é lógico. A Casa Lafayette e a coroa de Spades sempre estiveram alinhadas. Nada mais natural que selarmos isso com um casamento.

    Lucius arregalou os olhos.

    Casamento?

    Ele tentou entender. Estavam falando de Andréa? Ou de outra pessoa?

    — Meu filho logo estará em idade de noivar — o rei continuou. — E sua família tem uma jovem de idade adequada, não tem?

    O coração de Lucius deu um pulo.

    — Nixoria não é… — Andréa parou, seu semblante se fechando. — Não é algo que eu possa simplesmente decidir.

    Lucius congelou.

    Ele ouviu certo?

    Nixoria?

    Se Andréa hesitou em negar… isso significava que a proposta era sobre Nix?

    Lucius tentou se aproximar ainda mais, desesperado para ouvir mais, para entender—

    — Você não deveria bisbilhotar nas memórias dos outros.

    De repente, mãos quentes cobriram seus olhos.

    O mundo girou.

    Lucius tentou se virar, tentou se desvencilhar do toque, mas tudo ao seu redor se dissolveu.

    O castelo sumiu. O som da conversa desapareceu.

    E, quando a escuridão deu lugar à luz, ele estava de volta a um espaço que não reconhecia.

    Soltou um suspiro trêmulo, o coração ainda acelerado.

    Atrás dele, sentiu a presença de Nix.

    Não a versão criança, nem a adolescente.

    A Nix de agora.

    — Se queria saber sobre mim, podia simplesmente perguntar.

    O tom dela era brincalhão, mas Lucius sentiu algo mais profundo escondido por trás das palavras.

    Devagar, ele se virou para encará-la.

    E, pela primeira vez, começou a se perguntar o quanto realmente sabia sobre a mulher à sua frente.

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